Voto abusivo na recuperação judicial

18/05/2021 às 15:36
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Breve análise do voto abusivo na assembleia geral de credores, sem a menor pretensão de esgotar o assunto, lembrando que os votos mencionados podem decidir sobre o plano de recuperação judicial, que reorganiza as finanças da empresa em recuperação.

Quando uma empresa entra em crise e não vislumbra possibilidade de contorno por meios próprios, pois esta, acaba-se por verificar não se tratar de uma crise circunstancial superável, e sim de uma crise estrutural decorrente de inviabilidade empresarial, de outros problemas, como a falta de demanda por seu produto ou qualquer outro fator, existe a possibilidade de falência, que é aplicada para uma empresa que não gera mais empregos, tributos ou riquezas, objetivando a remoção desta entidade de existência da forma mais adequada e rápida, abrindo espaço para que outro agente econômico o ocupe. A falência não é uma situação vergonhosa ou ruim, e sim, uma solução para esta situação, pois cuida de princípios que decorrem da atividade empresarial, objetivando o bom funcionamento do mercado e da economia.

De outro lado, para empresas em crise, mas que ainda são viáveis, ou seja, que tem condições de permanecer em funcionamento, existe a figura da recuperação, dentre elas, a recuperação judicial, situação em que a empresa adquire uma moratória onde os pagamentos aos credores são suspensos, visando a apresentação de um plano de recuperação que demonstre, mesmo diante das dificuldades, que as empresas conseguem se reerguer com a renegociação de suas dívidas, possibilitando que estas continuem ativas e produzindo riquezas.

O plano de recuperação judicial é a apresentação de como se dará o adimplemento de todas as obrigações pendentes de uma empresa e, quando é movido por esta, ele é apresentado e ocorre a publicação com prazo para objeções, onde não havendo manifestação contrária, este é aprovado, porém, ocorrendo manifestação contrária por qualquer credor, o plano deve ser deliberado em uma assembleia geral de credores. Nesta assembleia é que pode ocorrer o voto abusivo, foco de nosso estudo, que será analisado através de doutrina para um comparativo de suas alterações de compreensão com o advento da Lei nº 14.112/2020, que alterou diversos pontos da Lei nº 11.101/2005.

O VOTO ABUSIVO

1 Histórico

A Lei nº 11.101/2005 foi de suma importância ao realizar a inauguração do instituto da recuperação judicial no país, traçou o objetivo de viabilizar a superação de uma eventual situação de crise econômico-financeira de uma empresa, onde fosse possível manter as fontes de produção, empregos e interesses dos credores para promover a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, conforme podemos verificar em seu artigo 47.

Pode-se dizer que um dos maiores desafios enfrentados pelo aplicador da lei é o de conciliar, em cada caso, dois grandes propósitos da recuperação: a preservação da empresa (com toda a carga social atrelada a esta) e os interesses dos credores.

Quando os interesses dos credores vão de encontro com os da recuperanda, ocorria, no cenário anterior às alterações sancionadas em 24 de dezembro de 2020, a necessidade de uma assembleia geral de credores, no caso de, após a apresentação do plano de recuperação judicial, este ser alvo de objeções dos credores, conforme preceitua a Lei nº 11.101/2005: “Art. 55. Qualquer credor poderá manifestar ao juiz sua objeção ao plano de recuperação judicial no prazo de 30 (trinta) dias contado da publicação da relação de credores de que trata o § 2º do art. 7º desta Lei.” (Brasil, 2005).

Para a análise proposta neste trabalho, vamos isolar o momento da votação do plano de recuperação judicial durante a assembleia geral de credores, visto que na assembleia é que pode ocorrer o voto abusivo, onde verificaremos a aprimoração legislativa, desconsiderando as algumas das novas possibilidades trazidas pelas alterações vigentes a partir de 23 de janeiro de 2021, quais sejam, a possibilidade de termo de adesão ou outro meio que o juiz entender seguro.

2 Voto abusivo na Lei nº 11.101/2005

Na vigência da Lei 11.101/2005 anterior às alterações, o voto abusivo era embasado no artigo 187 do Código Civil, quando era caracterizado por ato ilícito que excedia os limites da boa-fé, dos bons costumes ou do fim econômico ou social pretendido, de forma que gerava ampla interpretação, por exemplo, um credor com voto decisivo, poderia, por ele só, votar contrário ao plano de recuperação judicial, causando a convolação em falência simplesmente pelo desejo frustrado de receber a integralidade de seu crédito, não entendendo a situação da recuperanda e pouco se importando se isso causará prejuízo para a empresa e terceiros dependentes desta.

Portanto, as violações do dispositivo alhures trazido geravam uma série de interpretações, onde a empresa recuperanda poderia, em caso de convolação em falência, buscar apontar a abusividade do direito de voto quando um credor não entendesse o fim social da Lei, que é o de tentar preservar a empresa e sua função social.

Assim, a abusividade do voto é caracterizada pela intenção de prejudicar a recuperanda, buscando a convolação em falência por motivos que violassem a compreensão trazida pelo Código Civil de abuso de direito, fosse este voto fundamentado ou não.

Sobre o voto fundamentado ou não, apenas para esclarecimento da menção, Bezerra Filho (2018, p. 210) tem posição sólida sobre o tema:

Não se pode confundir ‘voto não fundamentado’ com ‘voto abusivo’. Se o juiz tiver condições de verificar que o voto foi abusivo, não importa se o voto está fundamentado ou não. Imagine-se, por exemplo, ser possível constatar que um credor teria adquirido créditos de terceiros apenas para ter poder de decisão na AGC e, nesta, votar pela rejeição do plano e decretação da falência, apenas porque pretende afastar o concorrente em crise. Em tal situação, o juiz declarará o voto abusivo e determinará que não seja computado para aquele determinado fim. Ou seja, se abusivo, não importa se o voto está fundamentado ou não. O voto pode ser abusivo e fundamentado, da mesma forma que outro voto pode não ser abusivo e também não fundamentado; o primeiro não será computado, o segundo será computado.

É necessário restar cristalino que o credor não tem a obrigação, pelo princípio da boa-fé, de concordar com o plano de recuperação judicial apresentado em juízo, mas que esse princípio deve nortear todas as ações de credores e devedores, pois existe o dever de informar e de considerar as situações de ambas as partes nesta relação, assim, a abusividade do voto existiria quando este princípio fosse violado, cabendo ao judiciário a palavra final sobre se realmente ocorreu abusividade ou foi mera interpretação da recuperanda. Nesse sentido, assegura Manoel Justino Bezerra Filho (2016, p. 32):

O credor não tem qualquer obrigação de concordar com o plano, se este não atende suas expectativas empresariais. Claro que, se fundamentar o voto, terá melhores condições de se posicionar em eventual alegação de abusividade de voto. Continuando o pensamento, ao credor não há obrigação de fundamentar o voto; ao devedor, ou mesmo a terceiro credor interessado é que caberá, se for o caso, alegar tratar-se de voto abusivo e comprovar tal alegação.

Para a verificação do abuso de voto é necessário que se tenha de maneira muito clara a exequibilidade dos termos e condições do plano de recuperação e a chance de superação da crise, bem como a previsão de como ficaria o credor com a falência da recuperanda, assim, existindo um plano exequível com um plano de pagamento superior ao que seria recebido na falência pelo credor, não haveria razão para existir rejeição por parte dos votantes, mas se caso acontecesse, seria possível a consideração de voto que poderia ter característica abusiva, no intuito de prejudicar ou pela intenção de obter algum tipo de benefício com a convolação em falência.

Havendo a caracterização do voto abusivo decisivo que, em um primeiro momento, convolasse em falência da recuperanda, este poderia ser invalidado e o credor poderia ser compelido a responder civilmente pelo seu ato, ainda, a assembleia teria novo resultado, desconsiderando àquele invalidado pelo voto viciado.

3 Voto abusivo com a alteração trazida pela Lei nº 14.112/2020

Com as alterações trazidas pela Lei nº 14.112/2020 o tema abuso de direito de voto em assembleia geral de credores possui tratamento específico que veio normatizado pela alteração realizada no parágrafo 6º, do artigo 39, da Lei nº 11.101/2005: “O voto será exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem”. (Brasil, 2020).

Portanto, entende-se que, com a vigência da Lei nº 14.112/2020, o credor está livre para realizar o seu juízo de conveniência e votar na assembleia geral de credores conforme seu interesse, com a única ressalva de que seu voto não poderá ser exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem.

Certamente haverá grande discussão quanto a aplicação deste artigo, uma vez que há forte indício de que um voto abusivo decisivo, da maneira que está inserida no artigo 39, §6º da referida lei, irá extrapolar os limites da boa-fé ou da função socioeconômica conferida ao credor.

Em que pese as mudanças implementadas pela nova lei quanto ao abuso do direito de voto, caberá ao julgador promover a conciliação da nova redação do artigo 39, §6º, da Lei nº 11.101/2005 com o artigo 187 do Código Civil e, assim, fazer a adequada aplicação conforme o caso concreto e caberá à recuperanda demonstrar que um voto abusivo com poder decisivo está eivado de ilicitude, visto que a nova redação deixa claro que não há espaço para interpretações.

A grande preocupação gerada com a alteração legislativa é de que a demonstração de que um voto teve característica abusiva seja uma tarefa penosa ou até impossível, visto que nem sempre será viável a comprovação da ilicitude de um voto que foi decisivo, pois este pode estar viciado apenas pela insatisfação injustificada de um credor ou pela tentativa de obter algum tipo de vantagem com a convolação em falência da recuperanda, mesmo que esta seja lícita, mas que não seja uma vantagem obtida por quem age de boa-fé.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O voto abusivo já era figura existente no âmbito da recuperação judicial, porém sua aplicação era ampla, pois como não havia previsão expressa na Lei nº 11.101/2005, buscava-se amparo no Código Civil, em seu artigo 187, onde a abusividade do voto não necessariamente era caracterizada por ato ilícito, visto que bastava que o credor excedesse manifestamente os limites da boa-fé para obter para si ou para outrem qualquer tipo de vantagem.

Atualmente na vigência das alterações trazidas pela Lei nº 14.112/2020 que reformou a Lei nº 11.101/2005, foi possível constatar, através da análise realizada, que ocorreu uma especificação para a configuração do voto abusivo, pois este somente se dará quando for manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem.

Portanto, ficou possível entender que antes do fim da vacatio legis em 23 de janeiro de 2021, seria possível alegar a abusividade de um voto, por exemplo, de uma instituição bancária com poder decisivo que não aceita os termos do plano de recuperação judicial por julgar não estar recebendo os encargos, multas e juros que lhe são devidos, mesmo que estes termos sejam exequíveis e que o referido plano preze pela preservação dos princípios norteadores da recuperação e dos interesses de todos os credores, inclusive daqueles que não possuem votos decisivos, apenas créditos a serem recebidos dentro de um plano que possa gerar os efeitos pretendidos pela Lei nº 11.101/2005.

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Porém, com o advento das mudanças legislativas, ocorre o regramento da hipótese de voto abusivo, onde a nulidade demandada requer a comprovação da prática de ato somente com o objetivo de obter vantagem ilícita por parte do credor, deixando de acatar a hipótese de um voto abusivo com a intenção de prejudicar a empresa recuperanda.


REFERÊNCIAS

BEZERRA FILHO, Manoel Justino. O abuso do direito de voto em Assembleia Geral de Credores. Revista IBAJUD, São Paulo, Ano 1. 2ª ed., p. 32. Junho, 2016.

BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação judicial de empresas e falência: Lei 11.101/2005 – comentada artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em 27 jan. 2021.

BRASIL. Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 09 fev. 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm>. Acesso em 26 jan. 2021.

BRASIL. Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Altera as Leis nos 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, 10.522, de 19 de julho de 2002, e 8.929, de 22 de agosto de 1994, para atualizar a legislação referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 dez. 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14112.htm>. Acesso em 28 jan. 2021.

MARIANO, Álvaro A.C. Abuso de voto na recuperação judicial. Biblioteca Digital USP, São Paulo, 2012. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2132/tde-12042013-161616/publico/Alvaro_Mariano_tese_doutorado.pdf>. Acesso em 27/11/2020.

SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: Teoria e Prática. Biblioteca Digital USP, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1759357/mod_resource/content/1/Recuperacao%20Judicial%2C%20Extrajudicial%20e%20Fale%20-%20Luis%20Felipe%20Salomao.pdf>. Acesso em 26/01/2021.

SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2016.

Sobre o autor
Peterson Ibairro

Advogado da De Paula & Ibairro Advocacia, graduado pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do RS – Unijuí e Especialista em Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, com Ênfase em Administração Judicial pelo Instituto Brasileiro de Direito da Empresa – IBDE, com registro profissional OAB/SC 57.127, atuante na área empresarial, trabalhista, consumidor, bancária e civil, tendo experiência anterior à advocacia na administração de empresas e equipes, prática trabalhista, cobranças judiciais e extrajudiciais e auditorias. E-mail [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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