Feminicídio: aspectos psicológicos e jurídicos na compreensão da violência contra a mulher

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Ainda com resquícios de descriminação e violência de períodos históricos anteriores, no momento atual a morte de milhares de mulheres todos os anos traz a tona a importância em se debater o feminicídio.

RESUMO:

Ainda com resquícios de descriminação e violência de períodos históricos anteriores, no momento atual a morte de milhares de mulheres todos os anos traz a tona a importância em se debater o feminicídio, que num conceito geral é a morte de mulheres em razão de gênero. Desse modo, o presente estudo tem como objetivo geral discutir as formas de violência doméstica sofrida pelas mulheres. Nos objetivos específicos, foca-se a análise do fenômeno feminicídio, que mata milhares de mulheres todos os dias. Com isso, apresenta-se o posicionamento jurídico sobre esse tema e principalmente as leis e normativas que condenam essa prática, como por exemplo, a Lei nº 13.104/2015. Além disso, apresentam-se as razões que levam o legislador e ao Magistrado a caracterizar o crime de feminicídio. Na metodologia, a realização dessa pesquisa se deu por referência bibliográfica (livros, artigos científicos, legislação, etc.). Nos resultados, foi possível encontrar que o feminicídio ainda é muito praticado na sociedade, mesmo com a sua criminalização. O que deve ser feito é um enfoque maior na eficácia das medidas protetivas e na busca por alternativas fora do âmbito jurídico que possam prevenir a ocorrência de feminicídio.

Palavras-chave: Feminicídio. Violência. Mulher.  Psicologia. Legislação.

ABSTRACT

Still with traces of discrimination and violence from previous historical periods, at the present moment the death of thousands of women every year brings to light the importance of debating feminicide, which in general is the death of women due to gender. Thus, the present study has the general objective of discussing the forms of domestic violence suffered by women. Specific objectives focus on the analysis of the feminicide phenomenon, which kills thousands of women every day. With this, the legal positioning on this topic is presented and mainly the laws and regulations that condemn this practice, such as Law nº. 13.104/2015. In addition, the reasons that lead the legislator and the magistrate to characterize the crime of feminicide are presented. In the methodology, this research was carried out by bibliographic reference (books, scientific articles, legislation, etc.). In the results, it was possible to find that femicide is still widely practiced in society, even with its criminalization. What should be done is a greater focus on the effectiveness of protective measures and the search for alternatives outside the legal scope that can prevent the occurrence of femicide.

Keywords: Femicide. Violence. Women. Psychology. Legislation.

INTRODUÇÃO

A violência contra o sexo feminino é um assunto recorrente nas últimas décadas. Além de discutir as mudanças ocorridas na causa feminista, discutem-se ainda as causas e efeitos do crescimento da violência contra a mulher. Pesquisas recentes têm mostrado o quanto às mulheres são violentadas e mortas diariamente, seja pelos seus companheiros (a) ou pela própria sociedade.

Tão grave quanto os atos de violência contra a mulher está a alta taxa de homicídios. Nesse contexto, a nomenclatura correta é o feminicídio, que é caracterizado como sendo o homicídio praticado contra a mulher motivado pelo simples fato de ela ser ‘mulher’. É um crime de gênero, onde o sexo feminino é causa principal para a sua consumação (SOUZA; BARROS, 2016).

O feminicídio é uma realidade muito presente na sociedade brasileira. A título de exemplo, em dado estatístico feito pelo Monitor da Violência (parceria feita entre o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública) expôs que houve um significativo aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018. São 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média (VELASCO; CAESAR, 2020).

Diante disso, o respectivo estudo tem como objetivo discorrer sobre o feminicídio no Brasil. Para isso, apresentam-se os principais aspectos envolvendo a questão jurídica, sobretudo, a análise da Lei nº 13.104/15, mais conhecida como Lei do Feminicídio que incluiu como qualificador do crime de homicídio, o feminicídio.

Também se faz pertinente discorrer sobre os aspectos psicológicos, uma vez que é preciso entender as causas para essa prática e os efeitos que esse crime traz para à sociedade.

Frente a esses apontamentos iniciais, a respectiva pesquisa busca discorrer a respeito do crime de feminicídio no campo jurídico e encontrar as razões reais e concretas para a sua configuração no campo social. Nesse sentido, discutem-se as razões que se leva em consideração para caracterizar e praticar o respectivo crime.

Na metodologia, esse estudo trata-se de uma revisão da literatura, pois contextualiza o cenário de pesquisa atual, aponta inconsistências conceituais e incita a realização de novos estudos, tudo a partir do resumo e da síntese de trabalhos já existentes (CARVALHO, 2019).

 Os meios de buscas empregados foram as doutrinas jurídicas encontradas em livros, artigos, sites, jornais, revistas, etc. Nos critérios de inclusão e exclusão os materiais utilizados nesta pesquisa são baseados na legislação brasileira e na jurisprudência. Todos os materiais serão adquiridos de forma gratuita, por serem leis vigentes no ordenamento jurídico brasileiro.

1 CONTEXTUALIZANDO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Dentro da conjuntura da violência doméstica, a mulher é de fato a maior vítima. Pesquisas ao longo das últimas décadas mostram que milhares de mulheres são violentadas diariamente em todos os cenários: no trabalho, na sociedade, na família, dentro de casa, na rua, nos estabelecimentos privados, dentre outros. A violência contra o gênero feminino é notória.

A mulher, apesar da evolução social, que lhe permitiu estudar, entrar para o mercado de trabalho, tem certa independência até mesmo no âmbito familiar, mas ainda assim há situações de preconceito, discriminação e, consequentemente, atos de violência.

Importante frisar que mesmo sendo a mulher a principal vítima desse tipo de crime, a Lei Maria da Penha enfatiza que não se restringe a proteção apenas ao sexo feminino, mas a qualquer gênero e a qualquer parentesco. Nesse sentido:

Quando se fala que a Lei Maria da Penha discrimina os homens, isso não é verdade. A Lei Maria da Penha, na verdade, vai manear um sujeito que sofre uma discriminação específica, uma violência específica e que precisa, portanto, de respostas e mecanismos específicos para sanar essa ausência de direitos ou essas violências (BARSTED, 2014, p. 01).

Ainda de acordo com a retro lei, violência doméstica contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, de acordo o artigo 5º da lei 11.340/2006.

A lei explana cinco maneiras de violência doméstica e familiar, mostrando que não ocorre apenas a violência que deixam marcas e evidências. Existe a violência psicológica, que é xingar, humilhar, intimidar ou amedrontar; debochar publicamente, diminuir a autoestima, estes seriam alguns exemplos de violência psicológica. A violência física é bater, espancar, empurrar, torturar, usar arma branca, utilizar arma de fogo, existindo assim inúmeras formas de violentar fisicamente (FRANCO, 2019). 

A lei também fala da violência sexual, que é forçar relações sexuais quando a mulher não quer ou estar sem condições de consentir; forçar a mulher a olhar imagens pornográficas quando a mesma não quer ver, forçar a mulher a ter relações sexuais com outras pessoas, impedir a mulher de se prevenir contra uma gravidez e doenças sexualmente transmissíveis, ou mesmo forçá-la ao aborto (BRASIL, 2006). 

Conforme o Mapa da Violência 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil (Cebela/Flacso, 2012), duas em cada três pessoas atendidas no SUS em razão de violência doméstica ou sexual são mulheres; e em 51,6% dos atendimentos foi registrada reincidência no exercício da violência contra a mulher. O SUS atendeu mais de 70 mil mulheres vítimas de violência em 2011 – 71,8% dos casos ocorreram no ambiente doméstico.

Em dados mais recentes, destaca-se o divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ao qual mostra que o índice de violência doméstica com vítimas femininas é três vezes maior que o registrado com homens. Na pesquisa realizada mostram também que, em 43,1% dos casos, a violência ocorre tipicamente na residência da mulher, e em 36,7% dos casos a agressão se dá em vias públicas (PLATONOW, 2019).

Em Minas Gerais, por exemplo, estima-se que a cada hora 16 mulheres serão vítimas de violência doméstica. Os dados da Polícia Civil mostram que, “somente nos seis primeiros meses de 2019, 405 mulheres foram agredidas por dia no Estado, resultando em 73.457 mulheres vítimas de violência motivada por gênero de janeiro a junho” (BAETA, 2019, p. 01).

Verifica-se, portanto que somente com esses dados a mulher é de fato a maior vítima de violência doméstica, se tornando quase que exclusivamente a vítima única. Em muitos casos essa violência se transforma em homicídio, caracterizando assim, o crime de feminicídio, ao qual será mais bem debatido no tópico seguinte.

2 DO FEMINICÍDIO NO BRASIL

No tópico anterior foi possível verificar o quanto a violência contra a mulher trouxe desde sempre um marco negativo na sua história. Agressões de toda forma fazem com que mulheres sejam vítimas de crimes diariamente. Em alguns casos, essa violência é estendida chegando a causar a morte. Nesse contexto, emerge para o Direito e para a sociedade o feminicídio, ou seja, a morte de mulheres.

Importante frisar, que esse instituto, como a seguir será expresso, se designa ao homicídio causado em razão de gênero. Ou seja, o que motivou o agente a cometer tal crime é exclusivamente a sua aversão ao gênero oposto.

O termo feminicídio (do inglês femicide) surgiu por meio da socióloga sul-africana Diana Russell no ano de 1976 durante um evento ocorrido no chamado Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas, na Bélgica. O termo só seria usado em definitivo apenas na década de 90 pelas autoras Caputi; Russell (1992).

Inicialmente denominado de femicídio, sendo logo substituído pelo termo atual, segundo essas autoras, o feminicídio é entendido como aquele ato de matar as mulheres em razão do ódio, desprezo, prazer ou por um sentimento de propriedade. É uma ação que em muitas situações, representa o ato máximo/final de uma sequência de violência física, moral e verbal, ou de um estupro, assédio ou exploração sexual (SOUZA, 2018).

O Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. De acordo com Galvão (2018, p. 01) “suas motivações mais usuais são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres”.

Num conceito mais amplo e que mostra as raízes para esse crime, cabe citar:

O assassinato de mulheres é habitual no regime patriarcal, no qual elas estão submetidas ao controle dos homens, quer sejam maridos, familiares ou desconhecidos. As causas destes crimes não se devem a condições patológicas dos ofensores, mas ao desejo de posse das mulheres, em muitas situações culpabilizadas por não cumprirem os papéis de gênero designados pela cultura. As violências contra as mulheres compreendem um amplo leque de agressões de caráter físico, psicológico, sexual e patrimonial que ocorrem em um continuum que pode culminar com a morte por homicídio, fato que tem sido denominado de femicídio ou feminicídio (MENEGHEL; PORTELLA, 2017, p. 3.079).

Com isso, nota-se que essa prática fere diretamente a vida e a dignidade das mulheres, podendo ser realizada pela família, pela comunidade ou também pelo Estado, que pela sua ausência no combate a essa violência gera a sensação de impunidade e indiferença, fazendo aumentar ainda mais os números de casos (GEBRIM; BORGES, 2014).

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Opina Souza (2018, p. 02) que esse crime é “uma das formas mais extremas de violência provocadas pela desigualdade de gêneros, exercida pelos homens contra mulheres, a fim de conseguir poder, controle e dominação”.

Sagot; Cabañas (2010, apud MENEGHEL; PORTELLA, 2017, p. 3077) explicam que existem três maneiras de se olhar o feminicídio: a primeira é pelo viés íntimo, onde acontece nas relações amorosas aos quais os parceiros possuem relações íntimas; a segunda pela visão não íntima que envolve ataque contra as vítimas; e por fim, o chamado posicionamento na linha de fogo, onde a mulher ao interferir para evitar a violência morre durante a tentativa.

Caputi; Russell (1992 apud SOUZA, 2017, p. 02) acentuam que o feminicídio é antecedido com em alguns casos pela mutilação ou por estupro, somado a uma escalada de agressões físicas e verbais que acaba resultando na morte da mulher. Essas ações anteriores, ao qual também deve ser analisado nesse crime, mostra o qual enraizado na comunidade a visão masculina e machista do homem sobre a mulher.

Tão grave e crescente o número de casos, que vários países da América Latina, a partir de 2006, começaram a tipificar essa ação como crime de feminicídio. No Brasil, isso só começou a ocorrer em 2015.

O primeiro movimento em relação ao tema em terras brasileiras se deu em decorrência dos resultados encontrados da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) da Violência contra a Mulher em 2012, que mostrou o quadro alarmante de morte de mulheres em decorrência de gênero. Com base nisso, a comissão propôs o Projeto de Lei 292/2013, do Senado Federal, onde altera o Código Penal ao inserir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio (BRASIL, 2013).

A Lei nº 13.104/2015 (a Lei do Feminicídio) modificou o art. 121 do Código Penal Brasileiro, no qual acrescentou no § 2º, inciso VI, dispositivos que dão maior proteção a mulher contra seus agressores, além do aumento da punição.

É importante lembrar que, ao incluir no Código Penal o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, o feminicídio foi adicionado ao rol dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990), tal qual o estupro, genocídio e latrocínio, entre outros. A pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos.

Sobre a importância dessa norma, destaca-se:

A tipificação em si não é uma medida de prevenção. Ela tem por objetivo nominar uma conduta existente que não é conhecida por este nome, ou seja, tirar da conceituação genérica do homicídio um tipo específico cometido contra as mulheres com forte conteúdo de gênero. A intenção é tirar esse crime da invisibilidade (CAMPOS, 2016 apud GALVÃO, 2018, p. 05).

No novo texto, tem-se:

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I - violência doméstica e familiar;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Aumento de pena

§ 7oA pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;

II - contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;

III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” (NR)

Art. 2o O art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte alteração:

“Art. 1o  .........................................................................

I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV, V e VI).

(BRASIL, 2015)

Como bem enfatiza os incisos do § 2º-A, para caracterizar o feminicídio é preciso que haja duas condicionantes: quando há violência doméstica e familiar e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Na primeira, Alencar (2018) explica que quando o homicídio for resultado de uma violência praticada dentro do domicílio exercido pelo cônjuge ou qualquer outro membro familiar da vítima, o agravante feminicídio pode ser atribuído ao caso.

No segundo requisito é preciso que seja motivado por ódio pela mulher e a tudo que remete à feminilidade. Não se fala somente em ser praticado pela simples condição feminina; no feminicídio é fundamental que o homicida sinta total desprezo pela mulher, por entender que ela é inferior a ti (ALENCAR, 2018).

Também necessário informar, que não se enquadra no crime de feminicídio o homicídio culposo (não possui intenção de matar) e o latrocínio (roubo seguido de morte), por serem crimes praticados alheio ao ódio do homicida sobre a mulher (ALENCAR, 2018).

Na praxe forense um aspecto sumamente relevante será o do possível abuso acusatório (excesso na acusação), que ocorre quando se força (sem a devida comprovação, com indícios sérios) uma classificação de crime hediondo. Nem todo femicídio (morte de uma mulher) é um feminicídio (morte de uma mulher por razões de gênero). Essa confusão poderá ocorrer e para isso devem estar atentos a defesa e o juiz. Compete à defesa, de plano, refutar (já na defesa preliminar) o excesso acusatório (BIANCHINI; GOMES, 2016).

A comprovação de uma violência de gênero exige prova inequívoca. Havendo dúvida, in dubio pro reo. A motivação do delito constitui o eixo da violência de gênero. Uma vez comprovada essa circunstância, não se pode mais invocar o motivo torpe: uma mesma circunstância não pode ensejar duas valorações jurídicas (está proibido o bis in idem). (BIANCHINI; GOMES, 2016).

Nesse sentido, importante mostrar o seguinte julgado:

RECURSO ESPECIAL. PRONÚNCIA. FEMINICÍDIO. HOMICÍDIO QUALIFICADO PRATICADO CONTRA GESTANTE. PROVOCAÇÃO DE ABORTO. BIS IN IDEM. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO PROVIDO. 1. Caso que o Tribunal de origem afastou da pronúncia o crime de provocação ao aborto (art. 125 do CP) ao entendimento de que a admissibilidade simultânea da majorante do feminicídio perpetrado durante a gestação da vítima (art. 121, § 7º, I, do CP) acarretaria indevido bis in idem. 2. A jurisprudência desta Corte vem sufragando o entendimento de que, enquanto o art. 125 do CP tutela o feto enquanto bem jurídico, o crime de homicídio praticado contra gestante, agravado pelo art. 61, II, h, do Código Penal protege a pessoa em maior grau de vulnerabilidade, raciocínio aplicável ao caso dos autos, em que se imputou ao acusado o art. 121, § 7º, I, do CP, tendo em vista a identidade de bens jurídicos protegidos pela agravante genérica e pela qualificadora em referência. 3. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1860829 RJ 2020/0028195-4, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 15/09/2020, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/09/2020) (grifo meu)

Ao juiz compete (quando não há prova nem sequer indiciária da violência de gênero) rejeitar a denúncia parcialmente, recebendo-a definitivamente com os expurgos necessários, por falta absoluta de justa causa. A qualificadora do feminicídio tem que ter justa causa específica (provas mínimas sobre esse ponto). Sem isso, rejeita-se parcialmente a denúncia (BIANCHINI; GOMES, 2016).

A respeito da qualificadora do feminicídio, há os que apontam que seja objetiva, enquanto outros afirmam ser subjetiva. A jurisprudência tem entendido se tratar de crime objetivo; a saber:

RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. MOTIVO TORPE. FEMINICÍDIO. PRONÚNCIA. EXCLUSÃO DAS QUALIFICADORAS PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. BIS IN IDEM. NÃO OCORRÊNCIA. NATUREZAS DISTINTAS DAS ADJETIVADORAS. COEXISTÊNCIA. POSSIBILIDADE. FEMINICÍDIO. NATUREZA OBJETIVA. AFASTAMENTO MEDIANTE ANÁLISE SUBJETIVA DA MOTIVAÇÃO DOS CRIMES. INVIABILIDADE. 1. Hipótese em que a instância de origem decidiu pela inviabilidade da manutenção das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, sob pena de afronta ao princípio do non bis in idem quanto a um dos fatos, e, relativamente a outros dois fatos, afastou a adjetivadora do feminicídio, analisando aspectos subjetivos da motivação do crime. 2. Não há dúvidas acerca da natureza subjetiva da qualificadora do motivo torpe, ao passo que a natureza do feminicídio, por se ligar à condição especial da vítima, é objetiva, não havendo, assim, qualquer óbice à sua imputação simultânea. 3. É inviável o afastamento da qualificadora do feminicídio mediante a análise de aspectos subjetivos da motivação do crime, dada a natureza objetiva da referida qualificadora, ligada à condição de sexo feminino. 4. A exclusão das qualificadoras na fase de pronúncia somente é possível quando manifestamente improcedentes, pois a decisão acerca de sua caracterização deve ficar a cargo do Conselho de Sentença. 5. Recurso provido. (STJ - REsp: 1739704 RS 2018/0108236-8, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 18/09/2018, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/09/2018) (grifo meu)

No entanto, quando se reconhece (no júri) o privilégio (violenta emoção, por exemplo), crime, fica afastada, automaticamente, a tese do feminicídio (posição de Rogério Sanches, que compartilhamos). Nesse sentido:

É impossível pensar num feminicídio, que é algo abominável, reprovável, repugnante à dignidade da mulher, que tenha sido praticado por motivo de relevante valor moral ou social ou logo após injusta provocação da vítima. Uma mulher usa minissaia. Por esse motivo fático o seu marido ou namorado lhe mata. E mata por uma motivação aberrante de achar que a mulher é de sua posse, que a mulher é objeto, que a mulher não pode contrariar as vontades do homem. Nessa motivação há uma ofensa à condição de sexo feminino. O sujeito mata em razão da condição do sexo feminino (PORFÍRIO, 2020, p. 02).

De todo modo, a violência de gênero não é uma forma de execução do crime, sim, sua razão, seu motivo. Por isso que é subjetiva. Passado essas informações jurídicas acerca do crime, é necessário apresentar os efeitos que essa ação possui na sociedade e no Poder Judiciário. Sobre essa questão, apresenta-se o tópico seguinte.

3 CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS E PSICOLÓGICAS DO FEMINICÍDIO

No decorrer desse trabalho ficou nítido observar o quanto o feminicídio está enraizado na cultura segregadora e violenta do homem sobre a mulher. O que no decorrer da história da humanidade a mulher sempre tivera papel de coadjuvante, nas últimas décadas elas estão sendo mortas em razão do ódio masculino pelo seu próprio gênero.

Ainda que a legislação brasileira tenha demorado a ser promulgada, a lei em si acabou por não ser totalmente efetiva, uma vez que as mulheres ainda continuam sendo mortas diariamente no Brasil. As razões para esse fato ainda não é definitivo, mas é possível elencar alguns.

O primeiro aspecto a ser analisado é o mencionado por Souza (2018) ao apontar que os feminicídios, estupros e agressões em geral são ignorados ou recebem uma cobertura sensacionalista da mídia, dependendo da raça, da classe social e da aparência física das vítimas, segundo os padrões masculinos.

Para essa autora, “a polícia, a mídia e o público respondem aos crimes contra mulheres de cor, mulheres pobres, lésbicas, prostitutas e usuárias de drogas de maneira abismal, com profunda apatia atada a estereótipos pejorativos e normalmente culpando a vítima” (SOUZA, 2018, p. 04).

Corroborando com essa questão, Bond (2019) aduz que a cobertura midiática brasileira de casos de feminicídio e violência sexual carece de aprimoramento. Para comprovar essa afirmativa, o Instituto Patrícia Galvão, emitiu o relatório Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel Social e Desafios da Cobertura sobre Feminicídio e Violência Sexual, onde mostrou que, na maioria das vezes em que os crimes são noticiados, os veículos de comunicação não humanizam as vítimas, tampouco colaboram para que a sociedade compreenda mais sobre as políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres e sobre como o ciclo de violência pode ser rompido.[1]

Outro ponto a ser observado é que nem sempre pode se imaginar o feminicídio como um ato único, visível, particularmente afeto a uma violência de momento. O que ocorre antes e durante o crime deve ser levado em conta, o que na prática não é feito, nem pelos operadores do Direito e nem pela própria legislação; a saber:

O feminicídio é o término, o fim extremo de um continuum de terror contra as mulheres que inclui uma vasta gama de ações, que vão muito além de abusos verbais e físicos, tais como estupro, tortura, escravidão sexual (particularmente a prostituição), incesto e abuso sexual na infância, agressões físicas e emocionais, assédio sexual (no telefone, nas ruas, no escritório em salas de aula), mutilações genitais (clitoridectomia, excisão, infibulação), operações ginecológicas desnecessárias (histerectomia gratuita), heterossexualidade forçada, esterilização contra a vontade, maternidade forçada pela criminalização do aborto e da contracepção, psicocirurgia, negação de alimentos a mulheres em algumas culturas, cirurgias cosméticas e outras mutilações em nome da estética. Quando essas formas de terrorismo terminam em morte, tem-se o feminicídio (GEBRIM; BORGES, 2014, p. 62).

Desse modo, ao se analisar o crime de feminicídio é preciso que se tenha um olhar mais amplo para a sua ocorrência, e não apenas o ato em si. Essa questão é ainda mais importante quando se observa os efeitos que o feminicídio causa tanto dos criminosos quanto na sociedade.

O crime de feminicídio pode-se dizer é um crime de natureza social. Isso porque a sua ocorrência vem em decorrência pelo fato de há dentro de suas razões motivacionais o ódio e desprezo pela mulher, o que é uma característica perpetuada ao longo da história da humanidade.

Nesse sentido, embasando a concepção acima, Souza (2018, p. 02) afirma que “a violência contra a mulher por razões de gêneros é histórica e tem um caráter estrutural, que se perpetua devido à sua posição de subordinação na ordem sociocultural patriarcal”.

A supracitada autora ainda acrescenta que a imagem que se tem da mulher é influenciada por várias camadas da sociedade, como por exemplo, no âmbito público no âmbito público (governo, política, religião, escolas, meios de comunicação), como no âmbito privado (família, parentes, amigos). Isso acaba por perpetrar uma ideia de poder, “baseada em padrões de dominação, controle e opressão que leva à discriminação, ao individualismo, à exploração e à criação de estereótipos, os quais são transmitidos de uma geração para outra” (SOUZA, 2018, p. 05).

Por outro lado, há os que entendem que o feminicida é por si só um criminoso natural. Nessa visão, Meneghel; Portella (2017, p. 3.079) entendem que “o assassinato de mulheres por seus maridos, pais, amantes, conhecidos e estranhos não podem ser produtos de um inexplicável desvio de comportamento”. Para esses autores, todos aqueles que matam mulheres em razão de gênero são terroristas sexistas, que possuem caráter opressor em relação às mulheres.

De todo modo, partindo desse pressuposto, pode-se sugerir que uma das principais medidas de prevenção para a ocorrência da prática desse crime seja justamente uma conscientização da figura da mulher e do seu papel na sociedade.

Nesse contexto, as políticas públicas devem estar voltadas não apenas para penalizar o autor do feminicídio, mas também criar medidas concretas de informação e conscientização para a população em geral, sobre a importância em se retirar estereótipos de um status quo masculino de gênero.

Uma ação importante que pode ser citada como exemplo é chamados ciclos restaurativos. Denominados também de grupos reflexivos, o objetivo é fazer com que os agressores (em sua grande maioria compostas por homens/companheiros) reflitam não somente sobre seu comportamento agressivo, mas também sobre as consequências negativas existentes na aprendizagem dos papeis de gênero, ou seja, no quanto eles perdem ao terem que reprimir alguns desejos e vontades, além de negarem seus sentimentos mais “frágeis” como a tristeza, saudade, amor, etc. para se enquadrarem dentro do estereótipo de masculinidade criado a partir da cultura da sociedade no qual está inserido. Essas reflexões podem favorecer a mudança em sua forma de se relacionar com as mulheres (VERAS, 2018).

Os grupos reflexivos têm, em geral, papel educativo, reflexivo e preventivo, uma vez que buscam a cessação dos comportamentos violentos perpetrados pelos homens contra as mulheres, tendo como orientação teórica, em grande medida, as perspectivas feministas e de gênero (VERAS, 2018).   

O exemplo mostrado acima é apenas um indicador do quanto é importante que se tenha um respaldo além da penalização do feminicida, para que mais crimes dessa natureza sejam feitos. O feminicídio atinge a toda a sociedade e ao Poder Judiciário, porque é um problema sistêmico, que abrange uma gama de fatores e indivíduos.

Não são somente as mulheres que são vítimas do crime em estudo, mas também as suas famílias, a comunidade ao qual pertence e também a uma sociedade, que a cada episódio desse crime se mostra mais doente e falida. Desta feita, finaliza-se essa pesquisa enfatizando que para além da legislação direcionada na criminalização desse delito, é necessário que haja medidas preventivas de conscientização de atos machistas e de ódio, para que as mulheres possam enfim, ter a liberdade e a vida preservadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A figura feminina sempre foi representada pela história como um alicerce ao homem. Raramente era vista como protagonista no seio social e jurídico. No Brasil, por muito tempo a mulher era relegada apenas ao papel de suporte ao homem, tendo ao longo da história do país nem o direito ao voto. Já nesses períodos iniciais, além do seu papel coadjuvante, a mulher já era vítima de violência física, ocorrida em muitos casos dentro dos seus lares. Ainda que se tenha evoluído várias questões sobre o papel da mulher e sua representatividade na sociedade, ela ainda é vítima de todo tipo de violência e em casos mais graves é morta. Nesse último ponto, estar-se falando do feminicídio.

O feminicídio é hoje considerado no crime no Brasil (Lei nº 13.104/2015). Desse modo, a escolha inicial para discutir sobre o feminicídio se deu devido ao fato de que as mulheres ainda continuam morrendo diariamente no Brasil, em decorrência do seu gênero. São tantas violências contra as mulheres (algumas resultando em morte) que a discussão sobre o feminicídio se torna necessário

É importante que se analise a questão do feminicídio, principalmente pelo fato de que as questões de gênero ainda não foram resolvidas. Há ainda muito preconceito contra a figura da mulher e o que ela representa nos dias de hoje. Por conta disso, observar as causas que levam a essa distorção do papel da mulher e sua imagem, e os motivos que fazem com que os homens as matem também é necessário analisar.

Dessa forma, como demonstrado no decorrer desse estudo, é importante que se analise não somente o texto restrito da norma, mas também observar esse delito com o olhar social, político e psicológico. Ao abordar esses viés, pode-se encontrar ações que permitam que a prática do feminicídio possa ser evitada.

Uma vez que a entrada em vigor da presente lei não tenha ainda sido capaz de diminuir os inúmeros casos de feminicídio ocorridos diariamente, é mais do que urgente que as políticas públicas de educação, de conscientização (como os citados ciclos reflexivos) sejam implantadas nas comarcas brasileiras. Tão importante quanto estudar os preceitos dos artigos penais sobre a matéria, é conscientizar os homens e demais membros da sociedade o quão nocivo pode ser o entendimento sobre a subjugação da imagem da mulher e seu papel numa sociedade ainda machista e cruel.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, Claudia. Feminicídio. 2018. Disponível em: <https://www.historiadomundo.com.br/curiosidades/feminicidio.htm>. Acesso em: 20 mar. 2021.

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[1] Disponível em: <https://assetsinstitucionalipg.sfo2.cdn.digitaloceanspaces.com/2019/12/IPG_RelatorioMonitoramentoCoberturaFeminicidioViolenciaSexual2019.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2021.

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Sobre os autores
Jorge Barros Filho

Professor orientador do curso de Direito

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