Capa da publicação Olhos que Condenam: Direito Penal na série
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O Direto Penal presente na minissérie “Olhos que Condenam”

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O presente trabalho utiliza como plano central a minissérie da Netflix “Olhos que Condenam”, fazendo um paralelo com a realidade brasileira. Assim, tal obra será utilizada de arcabouço para o desenvolvimento de críticas no âmbito social do direito penal.

INTRODUÇÃO

A fim de denunciar a relação do direito e da sociedade, como agentes correlatos de injustiças no meio social, o presente texto utiliza a minissérie “Olhos que Condenam”1, como primeiro plano a ser analisando, e tangencialmente há a conexão com a realidade brasileira. Para tanto, é evidente a denúncia de uma diversidade de problemáticas que aflige tanto os Estados Unidos, quanto o Brasil, apesar de superficialmente as discrepâncias serem notórias, analiticamente é possível vislumbrar semelhanças explícitas.

Cabendo um resumo, a minissérie é dividida em três episódios, e relata um caso real no qual 5 jovens, Korey, Kevin, Raymond, Antron e Yusef, sendo 4 negros e 1 hispânico, foram acusados e condenados por um crime que não cometeram. O primeiro episódio retratada o crime de fato, no qual na noite do dia 19 de abril de 1989, um grupo de garotos do subúrbio de Nova York, foram ao Central Park, e participaram de uma “arruaça” com outros adolescentes. Aconteceu que na mesma noite, Patricia Meili, corretora branca foi estuprada no mesmo local. Assim que o corpo da mulher foi encontrado desacordado na mata, a polícia iniciou uma busca nas redondezas do Central Park, lá encontraram o grupo de jovens e os cinco foram levados para delegacia, junto a mais de 30 jovens também capturados.

Na delegacia, os meninos supracitados acabam sendo acusados injustamente pelo estupro, uma vez que a promotora cria uma narrativa e ultrapassa a lei para que consiga depoimentos favoráveis a sua história, já que não havia indícios e provas que comprovassem tal acusação. Por conseguinte, jovens de 14 e 16 anos, que nem se conheciam foram acusados de um estupro coletivo. Para isso, a promotora faz com que os agentes da NYPD pressionem os cinco, a admitirem de qualquer jeito o crime, sem a presença dos pais ou de advogados, adotando interrogatórios arbitrários, forjando provas e exercendo uma clara coerção psicológica e física, além de fazerem promessas infundadas.

Sob tais circunstâncias, os jovens assinam falsos testemunhos e em seguida seguem para um julgamento, que será trabalhado no segundo capítulo. No fim do julgamento os cinco jovens, após pressões midiáticas e muitas de cunho racista, os cinco são condenados por um crime que não cometeram, apesar de nenhuma evidência física ou prova concreta dos acontecimentos, apenas com tais falsos testemunhos viciados. O terceiro episódio, finaliza tratando das sequelas que as prisões dos garotos de 14 e 16 anos sofreram, tanto em encarceramento quanto libertos, e ainda sua absorção depois de 13 anos, ao comprovarem o dono das evidências de DNA, como sendo de um estuprador em série da mesma época do crime, Matias Reyes.

Assim, nesse artigo no primeiro capítulo será abordada a seletividade penal, embasada pela Teoria do Etiquetamento Social, utilizando como um dos expoentes do direito penal, Winfried Hassemer, bem como Eugenio Raúl Zaffaroni.

Seguindo esse viés, o capítulo dois, por fim, abordará sobre a violência policial e a criminalização racial presente no corpo social, frente à minorias. Dessa maneira, utiliza-se o estudo comparando das polícias do Brasil e dos Estados Unidos, feito por Martha Huggins, docente na Tulane University, de New Orleans (EUA), além do ilustre Adorno (2002) ser evocado, bem como outros autores na medida que se abordar sobre a criminalização racial.


1. TEORIA DO ETIQUETAMENTO E A SELETIVIDADE PENAL

Conforme a Constituição Federal de 1988, no caput do artigo 5°, no qual trata dos direitos e garantias fundamentais diz: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. A seletividade penal e a teoria do etiquetamento presente, no nosso sistema penal, se conduz justamente em sentido contrário ao definido pela garantia constitucional citada. Nesse sentido, cabe ilustrar a correlação existente nos conceitos, a partir de sua conceituação de ambas expressões.

A teoria do etiquetamento, também chamado de labeling approach, trabalhada por Hassemer, consiste em uma teoria criminológica que surgiu na década de 60 nos Estados Unidos, e traz a ideia de que o crime e o criminoso, de forma geral, são construções sociais, originárias das definições legais criadas por instâncias oficiais de controle social e pela sociedade de forma generalizada. Consequentemente, desenvolvem os processos de criminalização primária, secundária e terciária. A primária, consiste na criação dos tipos penais no ordenamento, a partir de demandas da sociedade, surgindo um grupo novo de criminosos. Já a criminalização secundária, é justamente a criação de um estigma de criminoso por parte das instituições policiais, para aplicar tal lei originada pela criminalização primária. Para tanto, a criminalização terciária baseia-se no ingresso no sistema carcerário, realizando justamente a manutenção do estigma criado na criminalização secundária.

Dessa forma, a partir de tal teoria supracitada, conseguimos chegar à conclusão de que o estigma é baseado na construção de um agente policial e dos juristas, que estão inseridos em uma sociedade racista e classista, criando o estigma do preto, pobre como essa figura de criminosos. Analogamente, podemos remeter a cena cujo a promotora Elizabeth Lederer, no segundo capítulo, ao questionar a procuradora sobre a ausência de provas, essa diz só se importar em dar um rosto ao crime, condenando os garotos entre 14 e 16 anos. Embora ciente da fragilidade das provas e de confissões fabricadas, ela aprofunda na narrativa uma construção da imagem violenta do homem negro, retratada com maestria pelo filme “O Nascimento de uma Nação” em 1915 é o ápice da animalização do homem negro. O filme de Griffith apresenta o personagem Gus, ex-escravizado, como matador profissional e que sente atração sexual por mulheres brancas. Faz-se inevitável não lembrar desta construção social ao assistir “Olhos que Condena”. Fairstein, Lederer e a Justiça dos Estados Unidos apostaram na “bestialização” do homem negro como a chave para a condenação. Bastava contar com a força da imprensa, que cumpriu seu papel, em conjunto com expoentes empresários da época.

É evidente que com todo o supracitado a seletividade penal é presente no sistema penal, originário, assim, da teoria do etiquetamento. A seletividade dos estereótipos atua no sistema criminal, de acordo com Eugênio Raúl Zaffaroni como:

“estes espereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com a imagem corresponde à descrição fabricada, deixando de fora outros tipos de delinquentes (delinquência de colarinho branco, dourada, de trânsito, etc.).” (1991, p.130)

No Brasil, tal seletividade penal não é diferente, bem como ilustrado pelo caso que ganhou demasiada notoriedade na imprensa, a qual dia 20 de junho de 2013, Rafael Braga, jovem negro e pobre, durante as manifestações que ocorriam, no qual o mesmo sequer participava, foi abordado por policiais civis, segundo os agentes o jovem carregava dois frascos e acreditaram que se tratava de coquetel molotov. Posteriormente o laudo do esquadrão antibomba da Polícia Civil atestou que os frascos eram de Pinho Sol e Água Sanitária. Porém ainda sim, Rafael Braga foi condenado em Primeira Instância, bem como os cinco jovens que foram condenados apesar da insuficiência de provas. Tais casos não retratam apenas a seletividade penal, mas uma criminalização racial, cujo será trabalhado no capítulo subsequente.


2. CRIMINALIZAÇÃO RACIAL E A VIOLÊNCIA POLICIAL:

Weber, trabalhado por Adorno (2002) identifica o Estado com o monopólio legítimo da violência, cujo fundamenta-se nos ideais kantianos de Estado. Conforme tratado por Adorno (2002, p.274), Kant parte da distinção entre força e potência e conceitua o Estado enquanto a unificação de uma multiplicidade de homens sob leis jurídicas. Ou seja, a violência estatal seja ela qual for, inclusive em julgamentos exteriorizado por injustiças, é legitimado, na medida que o direito autoriza.

Sob essa óptica, a criminalização racial trata-se dos maiores obstáculos no acesso à justiça criminal e as maiores dificuldades de usufruir o direito de ampla defesa e da presunção da inocência, assegurado pela Constituição Federal de 1988, pela população marginalizada, chamada de “estereótipo padrão de bandido”. Como ilustrado em uma sentença proferida pela juíza Lissandra Reis Ceccon, da 5ª Vara Criminal de Campinas, interior de São Paulo, em que disse: “O réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido”.

Dessa maneira, muito ainda se tem que analisar a atuação dos órgãos de justiça que deveria combater a perpetuação do racismo. Trabalhos sobre a atuação do Ministério Público, Polícia, Poder Legislativo, Poder Judiciário e demais agências de controle na perpetuação das desigualdades raciais são escassos e dignos de registro2, uma vez que se tratam de agência de controle social, também, por conseguinte, a produção de dados com foco racial é ainda muito difícil de ser encontrado. Um dos grandes problemas do racismo foi por muito tempo tratado como um problema privado e não de ordem pública.

Ademais, como citado, a violência policial decorre justamente da injustiça com as condenações do judiciário, dada presença do racismo institucional, e ainda, pela teoria do etiquetamento que corrobora com a animalização do povo negro, sendo esse submetido a ações e abordagens desumanas e ilegais.

Ainda, é possível observar a criminalização racial, na medida que por fatores óbvios o judiciário na série “Olhos que Condenam” condenou os 5 jovens, pertencentes a minorias, sem provas substanciais. Principalmente dada a necessidade das autoridades de adotarem rostos a tal crime, para ganharem prestígio, mas também por estarem inseridos em uma sociedade racista, os configurando como racistas, e ainda pela força midiática e de empresários com teor condenatório, e de até pena de morte para os jovens, que foram animalizados nas matérias.

A violência policial, na minissérie, é presente com a forma de tratamento que foi dada aos 5 jovens, por ordem da promotoria, cujo ficaram em condições desumanas, sofrendo ameaças e agressões tanto físicas quanto psicológicas, foram mais de 40 horas de questionamentos, além de passarem fome, e não terem a oportunidade de contatar ninguém, nem aos pais e nem advogado, mesmo sendo menores. É evidente a ilegalidade presente.

Paralelamente, essa violência policial no Brasil consegue ser ilustrada cotidianamente nas matérias que saem na mídia, e ainda nas inúmeras pesquisas de como a polícia militar brasileira é a que mais mata no mundo3. Conforme foi explicitado pelo site Rede Brasil4, a autora do levantamento e especialista em violência policial, Martha Huggins, apesar de apresentar uma letalidade menor que a registrada no Brasil, a polícia estadunidense atua igualmente sob o viés racista e é violenta com as minorias. Por fim, o relatório da relatora especialista da ONU, Rita Izsák, sobre minorias no Brasil, alerta que: “cerca de 23mil jovens negros morrem por ano, muitos dos quais são vítimas de violência pelo Estado. Cenário evidencia “dimensão racial da violência”, que movimentos sociais descrevem como “genocídio da juventude negra”.


CONCLUSÃO

O intuito do presente trabalho foi trazer justamente uma analogia do direito penal com a minissérie da Netflix “Olhos que Condenam”, e tangenciando tais críticas pertinentes que foram trabalhadas com a realidade brasileira. Para isso utilizou de expoentes em cada temática, optando principalmente para aqueles com um viés mais contemporâneo, para não viciar o artigo com anacronias.

Infere-se, portanto, que violência policial, cada vez mais crescente frente a população negra e pobre, e é assim legitimada na medida que há tal criminalização racial, presente no judiciário, uma vez que tais autoridades condenarão, independente de provas e de cabimento legal, ferindo gravemente o princípio da legalidade, os princípios humanísticos, de intervenção mínima e dos princípios de proporcionalidade e razoabilidade penal. Posto isso, é claro a intersecção que tais temas realizam, na medida em que o racismo por parte dos policiais, corroborando uma necropolítica5 estatal, é legitimada pelo seletivismo do sistema penal que criminaliza com base nos estereótipos do negro pobre.

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E ainda, todo o exposto no parágrafo acima é embasado pela Teoria do Etiquetamento social, vide capítulo dois, uma vez que se não criasse o estereótipo do padrão criminoso, não seriam inseridos aspectos racistas, mas uma vez com tal fenômeno social criado, convicções substanciadas da sociedade, assim seriam inseridas, bem como o preconceito racial e a ideologia classista, corroborando pra seletividade penal.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Sérgio. Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea. In: MICELI, Sergio (Org.). O que ler na ciência social brasileira, 1970-2002. São Paulo: Anpocs; Brasília: Capes, 2002. v.4, p.267-307.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 22a ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016.

HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução de Pablo Rodrigo Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.

IZSÁK, Rita. Brasil: Violência, pobreza e criminalização. Nações Unidas. 2016. Disponível em <https://nacoesunidas.org/brasil violencia-pobreza-e-criminalizacao-ainda-tem-cor-diz-relatora-da-onu-sobre-minorias/ >. Acesso em: 19 nov. 2020.

LYRIO, Caroline; PIRES, Thula R. O. P.. RACISMO INSTITUCIONAL E ACESSO À JUSTIÇA: uma análise da atuação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos anos de 1989-2011. Rio de Janeiro: PUC. Disponível em: <https://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7bf570282789f279>. Acesso em: 20 de nov. 2020.

PINA, Rute P. Símbolo da seletividade penal, caso Rafael Braga completa cinco anos. Brasil de Fato. [S.I.] 2018. Disponível em:<https://www.brasildefato.com.br/2018/06/20/simbolo-da-seletividade-penal-caso-rafael-braga-completa-cinco-anos>. Acesso em: 19 nov. 2020.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidadedo sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.


Notas

1 Minissérie americana criada e produzida por Ava DuVernay, tem como título original “When They See Us”, cujo ganha no Brasil a tradução “Olhos que Condenam”. Tal minissérie de gênero dramático, baseada em fatos reais, foi distribída pelo popular distribuidora Netflix e a estreia de sua única temporada foi no dia 31 de maio de 2019.

2 É de suma importância lembrar que não há a pretensão de esgotar tal temática, uma vez que a omissão importará em injustiças, urge, portanto, sugerir alguns trabalhos nesse sentido como os realizados por ADORNO (1995); GUIMARÃES (1998); LIMA, TEIXEIRA E SINHORETTO (2003); CONCEIÇÃO (2010) e PAIXÃO (2008 e 2011).

3 Conforme mostra o relatório da Anistia Internacional. Disponivel em: <https://www.amnesty.org/en/latest/news/2015/09/amnesty-international-releases-new-guide-to-curb-excessive-use-of-force-by-police/>. Acessado em: 20 nov. 2020.

4 Letalidade contra negros e pobres marca ações policiais do Brasil e Estados Unidos. Rede Brasil Atual. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2018/08/letalidade-policial-de-negros-e-pobres-marcam-policias-do-brasil-e-estados-unidos/> . Acessado em: 20 nov. 2020.

5 Moreira (2019), sobre o conceito de necropolítica de Mbembe destaca que “o autor parte do pressuposto “que a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais.”. Disponível em: https://www.justificando.com/2019/01/08/a-necropolitica-e-o-brasil-de-ontem-e-de-hoje/ . Acesso em: 19 nov. 2020.

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Sobre a autora
Larissa Martins Quintino Ribeiro

Graduanda em direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF, cujo objetiva produzir estudos em áreas diversas e buscando, assim, uma democratização e acessibilidade do saber jurídico para operadores do direito e leigos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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