Resumo: O presente artigo tem por objetivo investigar se o reconhecimento das uniões poliafetivas seria viável perante o ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, num primeiro momento, foi abordada a evolução da regulamentação da família pelo direito, apontando para uma mudança de paradigma nesse âmbito, após a promulgação da Constituição Federal de 1988. A partir de então surgiu o que se chamou do direito civil constitucional, como metodologia de interpretação do direito civil à luz dos mandamentos constitucionais, tendo tal metodologia trazido grandes avanços ao direito de família, especialmente quanto a uma visão dos institutos desse ramo do direito baseado no macroprincípio da dignidade da pessoa humana e outros princípios constitucionais. Foram então analisados, dentro dessa metodologia, os princípios constitucionais aplicáveis ao tema, bem como a questão da monogamia, abordada pelo STF no julgamento do RE 1045273, cuja repercussão geral foi reconhecida, no intuito de identificar sua natureza jurídica e se este seria um elemento impeditivo ao reconhecimento jurídico das uniões poliafetivas como entidades familiares, chegando-se à conclusão da inexistência desse impedimento. Após, foram identificados os elementos da união estável e sua aplicabilidade à união poliafetiva, com base na configuração do que seria o poliamor e na decisão do STF em Ação Direta de Constitucionalidade que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar equiparável à união estável. Por fim, foram apresentados os argumentos levantados pelo CNJ como impeditivos para elaboração de escrituras de uniões poliafetivas, os quais foram então analisados à luz do da metodologia do direito civil constitucional, chegando-se à conclusão pela possibilidade de reconhecimento de tais uniões como entidades familiares sem necessidade de modificação legislativa, mas com a necessária manifestação do Poder Judiciário para tanto.
Palavras-chave: Direito Civil Constitucional. Direito de Família. Princípios constitucionais. Monogamia. Poliafetividade. União Estável poliafetiva.
Sumário: Introdução. Evolução da família no ordenamento jurídico brasileiro. A família do Código Civil de 1916. Mudança de paradigma após Constituição Federal de 1988 – a constitucionalização do Direito Civil. Princípios constitucionais e o direito de família. A metodologia do Direito Civil Constitucional. Da função dos princípios constitucionais. Os princípios do Direito de Família. Monogamia como princípio jurídico?. União poliafetiva como entidade familiar. Família: conceito e requisitos. Poliafetividade. Requisitos da união estável e possibilidade de enquadramento das uniões poliafetivas. O pedido de providências 0001459-08.2016.2.00.0000 perante o CNJ. Argumentos levantados para determinar a proibição da lavratura de escrituras declaratórias de união poliafetiva. Conclusão. Bibliografia
INTRODUÇÃO
A sociedade do século XX passou por inúmeras transformações que influenciaram na forma da composição familiar, dando novos contornos à família contemporânea.
Com a revolução industrial, a consequente necessidade de inserção da mulher no mercado de trabalho e a migração das famílias do campo para a cidade fizeram com que o papel da família alterasse completamente.
Nesse cenário, as mulheres foram conquistando sua emancipação, os núcleos familiares foram ficando mais reduzidos, estabelecendo uma convivência mais íntima e mais restrita. A família como unidade de produção foi dando espaço a família provedora de afeto, ganhando ares de solidariedade, as diferenças dos papéis entre homem e mulher na família não mais se justificam, em virtude de aos poucos ambos irem assumindo as mesmas funções dentro daquele núcleo cuja função passa a ser a realização e o desenvolvimento pessoal de seus membro.
Dentro desse espaço de valorização do afeto, a diferença entre filhos conforme a origem perde o sentido, não se visa mais preservar a entidade família e sua perpetuação a todo custo. Há, nesse sentido, um desmoronamento do instituto em nome da dignidade humana de seus membros, havendo um processo de despatrimonialização e repersoalização familiar.
Outra mudança muito relevante diz respeito a revolução sexual pela qual a sociedade passou diante desse novo cenário de exaltação do ser humano e a valorização de seu desenvolvimento e da busca da felicidade. Novas formas de famílias surgiram, ou ao menos, saíram da escuridão e passaram a se mostrar aos olhos sociais, uma vez que questões morais envolvidas de preconceitos não poderiam mais prevalecer frente a valores mais relevantes.
Tudo isso não podia passar desapercebido pelo direito, o qual, ao menos no Brasil, vêm tentando acompanhar tais mudanças e reconhecê-las, seja por meio de reformas legislativas ou pelo esforço jurisprudencial. Contudo, o faz de forma lenta e muitas vezes atrasada. Espera-se os problemas das questões sociais eclodirem perante o Judiciário para então se começar a tomar atitudes, o que vai colaborando para uma sobrecarga jurisdicional.
Muitas vezes o Poder Legislativo fecha os olhos para questões sociais que envolvem certa moralidade e desconforto social, de modo que é relegado à nossa Corte Constitucional questões com essa carga, como foi a questão das uniões homoafetivas, da filiação socioafetiva e como será a questão das uniões poliafetivas.
Assim também agiu o CNJ, ao proibir, no ano de 2018 a lavratura de escrituras declaratórias de uniões poliafetivas, sob argumentos de ordem moral, falta de maturidade social e jurídica, dentre outros. Não que coubesse a esse órgão algum papel de reconhecimento das uniões poliafetivas como entidades familiares, mas a decisão teve por efeito calar uma parcela da sociedade, da qual desconhecemos a dimensão, que está em busca de uma proteção jurídica e estatal.
Essas famílias estavam em busca de um mínimo de segurança jurídica quanto ao destino da regulação de uma realidade que vivenciam, por meio de um instrumento público, com o intuito de assegurar algum efeito para a entidade familiar que de fato existe, dando um mínimo de parâmetro a eventuais ações judiciais futuras. Mas veio o Conselho Nacional de Justiça e ceifou tal possibilidade. Uma decisão talvez moralmente ou politicamente “correta”, mas questiona-se se foi juridicamente correta.
É isso que se busca analisar nesse artigo, se seria viável o reconhecimento de uniões poliafetivas diante do ordenamento jurídico brasileiro atual, se realmente tais escrituras estariam eivadas de ilicitude por conta de seu objeto e questiona-se até que ponto a monogamia deve prevalecer em tais situações. Passa-se então a tal análise, feita sob a visão de um direito civil constitucional.
1. EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O tratamento jurídico da família no ordenamento jurídico brasileiro sofreu significativas mudanças após o advento da Constituição Federal de 1988, fato que se deve ao fenômeno conhecido pela constitucionalização do Direito Civil, pelo qual, os institutos deste ramo do direito passam a ser vistos e interpretados com base nos princípios constitucionais. Nas palavras do professor Anderson Schreiber1, trata-se do surgimento do que pode se chamar de direito civil constitucional, o qual pode se conceituar da seguinte forma:
Para quem busca desde logo um conceito, o direito civil constitucional pode ser definido como a corrente metodológica que defende a necessidade de permanente releitura do direito civil à luz da Constituição. O termo “releitura” não deve, contudo, ser entendido de modo restritivo. Não se trata apenas de recorrer à Constituição para interpretar as normas ordinárias de direito civil (aplicação indireta da Constituição), mas também de reconhecer que as normas constitucionais podem e devem ser diretamente aplicadas às relações jurídicas estabelecidas entre particulares. A rigor, para o direito civil constitucional não importa tanto se a Constituição é aplicada de modo direto ou indireto (distinção nem sempre fácil). O que importa é obter a máxima realização dos valores constitucionais no campo das relações privadas.
A partir de então, o individualismo, anteriormente tido como valor supremo pela codificação civil, abre espaço para uma preocupação mais coletiva, no sentido de que os direitos do indivíduo não devem ser exercidos apenas no seu interesse exclusivo. Deve-se levar em consideração também a função que cada um desses direitos exerce na coletividade, de modo que essa função, tida como função social dos institutos civis, passa a ser requisito para legitimar tais direitos, no sentido de estarem conformados com a nova ordem constitucional.
No direito de família, contextualizado pela constitucionalização dos direitos civis, dois fenômenos importantes se observam, a repersoalização e a despatrimonialização da família, fenômenos importantes para a análise do presente tema. Nos dizeres de Paulo Lobo:
A família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade humana e da dignidade cada um de seus membros, marca o deslocamento da função econômica-política-religiosa-procracional para essa nova função. Essas linhas de tendência enquadram-se no fenômeno jurídico-social denominado repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais.
Ainda nesse sentido:
A família tradicional aparecia através do direito patrimonial e, após as codificações liberais, pela multiplicidade de laços inidividuais, como sujeitos atomizados. Agora, é fundada na solidariedade, na cooperação, no respeito à dignidade de cada um de seus membros, que se obrigam mutuamente em uma comunidade de vida. A família atual é apenas compreensível como espaço de realização pessoal afetiva, no qual os interesses patrimoniais perderam seu papel de principal protagonista. A repersonalização de suas relações revitaliza as entidades familiares, em seus variados tipos ou arranjos.
Antes de abordar o tema da união poliafetiva, importante trazer uma visão de como a família era tratada pelo Código Civil anterior e a quebra de paradigma que ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, para se compreender o atual contexto do direito de família.
1.1. A FAMÍLIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916
O Código Civil de 1916 apenas reconhecia como entidade familiar aquela formada pelo matrimônio, e tinha um padrão de formação que envolvia as seguintes características: paternalista, heterossexual, monogâmica e patrimonialista.
Dessa forma, não havia igualdade entre os cônjuges, o homem era considerado o chefe da família e o ditador de todas decisões a serem tomadas, sendo inicialmente a mulher tratada como uma relativamente incapaz.
Havia extrema discriminação dos filhos, conforme sua origem, sendo diferenciados entre legítimos ou ilegítimos, conforme fruto da relação matrimonial ou não. Os ilegítimos, eram tratados como naturais, se fruto de relação sem impedimentos para o casamento, ou espúrios, os quais eram classificados entre adulterinos, ou incestuosos. O tratamento a cada uma dessas classes de filhos era totalmente diverso, especialmente no que diz respeito ao direito sucessório.
Explicitando, Rodrigo da Cunha Pereira2:
O Código Civil de 1916 regulava essa família patriarcal sustentada pela suposta hegemonia de poder do pai, na hierarquização das funções, na desigualdade de direitos entre marido e mulher, na discriminação dos filhos, na desconsideração das entidades familiares e no predomínio dos interesses patrimoniais em detrimento do aspecto afetivo.
Em virtude de uma visão patrimonialista, a família era tida como uma instituição, quase considerada como um ente independente de seus membros, e que deveria ser protegida a todo custo, inclusive em prejuízo dos indivíduos que a formavam, esses deviam viver em prol desta, e pela sua manutenção, ainda que significasse abdicar de seus legítimos sentimento e realizações pessoais.
De forma elucidativa, maria Berenice Dias3 descreve a família regulamentada pelo CC de 1916:
Em uma sociedade conservadora, para merecer aceitação social e reconhecimento jurídico, o núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal. Necessitava ser chancelado pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Tratava-se de uma entidade patrimonializada, cujos membros representavam força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos.
1.2. MUDANÇA DE PARADIGMA APÓS CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL.
A Constituição Federal de 1988 veio com um regramento que quebrou com todo o tratamento jurídico até então despendido às relações familiares. A Família passa a ser considerada como base da sociedade, à qual o Estado deve assegurar especial proteção. Paulo Lôbo4:
A Constituição de 1988 proclama que a família é a base da sociedade. Aí reside a principal limitação ao Estado. A família não pode ser impunemente violada pelo Estado, porque seria atingida a base da sociedade a que serve o próprio Estado.
Assim, a família tutelada constitucionalmente, de forma mais adequada à realidade atual, traz uma configuração adaptada as transformações sociais, exigindo, portanto, uma nova fórmula interpretativa, com fundamento em novos princípios, que permitem sua atual compreensão. Nesse sentido, o professor Paulo Lôbo5 leciona:
A família atual parte de princípios básicos, de conteúdo mutante segundo as vicissitudes históricas, culturais e políticas: a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a afetividade. Sem eles, é impossível compreendê-la.
A base estruturante da família passa a ser o afeto, este que determinará a existência ou não de uma relação entre as pessoas como família a receber a especial proteção do Estado, independentemente de ter sido ou não formalizada conforme às leis estatais. Chega ao fim o monopólio do matrimônio como critério essencial para a configuração familiar. Tratando desse importante quebra de paradigma, menciona Paulo Lôbo6:
Como a crise é sempre perda de fundamentos, a família atual está matrizada em um fundamento que explica sua função atual: a afetividade. Assim enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida não hierarquizada.
Neste sentido, a Constituição passa a reconhecer expressamente a existência de outras entidades familiares, como as formadas pela união estável e a família monoparental. Tal previsão, ressalte-se, não vem no intuito de mencionar de forma taxativa as possíveis formas de configurações familiares a serem reconhecidas e protegidas juridicamente, mas trata de mero rol exemplificativo, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial.
Trata-se aqui do princípio da pluralidade familiar, pelo qual não cabe ao Estado taxar restritivamente o que seria família ou não, mas apenas reconhecer sua existência e protegê-la, como base da sociedade que é, bastando para tanto que se identifique os elementos necessários para sua configuração, dentre os quais se destaca o afeto.
Todos esses princípios constitucionais em prol da família favorecem uma interpretação no sentido de ser necessário o reconhecimento de toda e qualquer entidade familiar pelo ordenamento jurídico. Para demonstrar tal constatação, se faz necessário analisar alguns desses princípios, ao menos os mais relevantes para o tratamento do tema. Além disso, conveniente neste momento tratar da monogamia, se pode ser considerado um princípio constitucional ou não, uma vez que se trata, de um dos grandes empecilhos para o reconhecimento da união poliafetiva como entidade familiar.
3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O DIREITO DE FAMÍLIA
Como já dito anteriormente, frente à constitucionalização do direito civil, se faz necessário que os institutos desse ramo do direito sejam interpretados em conformidade com a Constituição, e mais especificamente, com base nos princípios constitucionais, explícitos e implícitos, os quais darão o norte para compreensão dos institutos do direito civil.
Nesse sentido, se faz necessário, nesse momento, abordar com mais cautela os princípios constitucionais relacionados ao direito de família, a fim de definir os requisitos e os parâmetros constitucionais e, finalmente, verificar a compatibilidade da suposta família poliafetiva com o ordenamento jurídico e com a ordem constitucional brasileira.
São princípios que auxiliarão nesse trabalho interpretativo: dignidade da pessoa humana; afetividade; menor intervenção estatal; pluralidade das formas de família; solidariedade familiar e monogamia. Quanto a este último, cabe a discussão se realmente se trata de um princípio e qual seria sua abrangência, o que será adiante tratado, pois fundamental para a abordagem do tema ora proposto.
Mas antes de abordar cada um desses princípios de forma mais detalhada, é preciso identificar os fundamentos da metodologia de interpretação jurídica do direito civil constitucional, bem como a função dos princípios no ordenamento jurídico e como se dá sua aplicação.
3.1. A METODOLOGIA DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
Conforme Anderson Schreiber7, o direito civil constitucional constitui, na verdade numa corrente metodológica que surgiu no Brasil, após os anos 90, com o intuito de compatibilizar a interpretação do direito civil então vigente, o qual era impregnado de uma ótica individualista, patrimonialista, liberal e voluntarista, com as inovações e os novos valores introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro pela CF/88, tendo na redemocratização um campo fértil para seu desenvolvimento.
O objetivo da metodologia do direito civil constitucional, portanto, é proporcionar uma releitura do direito civil sob essa nova perspectiva e com base nos seguintes fundamentos: a natureza normativa da Constituição; a complexidade e unidade do ordenamento jurídico e o pluralismo de fontes do direito; e o desenvolvimento de uma renovada teoria da interpretação, de fins aplicativos.
Por esses fundamentos, no que diz respeito ao âmbito de incidência do direito civil, a aplicabilidade das normas constitucionais se dá de forma direta, de modo que passam a ser consideradas com força normativa, nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira8:
Com a evolução e o desenvolvimento de um Direito Civil-Constitucional, os princípios ganharam uma força normativa muito maior e, consequentemente, perderam seu caráter de mera supletividade (...). São equivocados a ideia e o pensamento de que os princípios vêm por último no ato interpretativo integrativo. Ao contrário, os princípios, como norma que são, vêm em primeiro lugar e são a porta de entrada para qualquer leitura interpretativa do Direito.
Além disso, deve-se buscar a compreensão do sistema jurídico como um todo, exatamente porque interpretado de forma uniforme com base nos valores constitucionais. Essa proposta de compreensão e aplicação do direito civil exige que o intérprete viabilize a máxima observação dos valores constitucionais, ainda que de forma criativa, se assim demonstrar necessário o valor fundamental extraído da constituição, sendo que será tal valor que trará legítimo fundamento para a aplicação da interpretação criada para o caso concreto.
O que se propõe, portanto é uma atuação criativa do aplicador da lei quando da sua interpretação, não de forma discricionária, mas sim fundamentada nos valores assegurados constitucionalmente, a fim de se amparar as situações fáticas por meio de um direito civil de viés constitucional.
3.2. DA FUNÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Os princípios são conhecidos por serem mandamentos gerais de otimização. Diferentemente das regras, que, caso incompatíveis, serão válidas e aplicáveis, ou serão inválidas e deverão ser eliminadas do ordenamento jurídico, os princípios convivem de forma harmônica, eventuais colisões diante de um caso concreto serão solucionadas por meio da técnica da ponderação dos bens que estão em jogo para determinar qual princípio deverá prevalecer. Para a aplicação desta técnica deve-se levar em consideração aquele princípio que melhor atenderá os valores constitucionalmente garantidos e, principalmente, ainda mais se tratando de direito de família, a dignidade da pessoa humana.
Rodrigo da Cunha Pereira9, ao tratar da abordagem do tema pelos estudos de Robert Alexy assim leciona:
Robert Alexy, por exemplo, entende que regras devem ser aplicadas na forma do tudo ou nada, por serem forma mais herméticas, fechadas, de dizer o Direito. Já os princípios são mandados de otimização, que devem ser aplicados na maior medida do possível. E, um conflito entre princípios, devemos tentar encontrar uma forma de aplica-los e impor-lhes o menor grau de sacrifício possível. Devemos, portanto, ponderar os princípios em jogo, atribuindo-lhes pesos, de modo a encontrar o conteúdo e grau de aplicabilidade de cada princípio no caso concreto. Princípios são mandados prima facie e não definitivos, ao passo que as regras são mandados que se aplicam ou não.
Além disso, diante dos fundamentos acima mencionados, relativos à forma de aplicação do direito civil sob a ótica constitucional, importante destacar, quanto à força normativa da Constituição, que as normas constitucionais, incluindo os princípios constitucionais, portanto, não constituem regras de hermenêutica, mas sim normas de aplicação direta às relações sociais, independentemente de qualquer lei que as intermedeiem. Nesse sentido, Anderson Schreiber diz:
O reconhecimento de que os princípios constitucionais são normas aplicáveis (indireta ou diretamente) às relações privadas é indispensável para compreender que o direito civil não representa um mundo à parte, um campo jurídico guiado por valores próprios e autônomos, mas se insere no ordenamento jurídico, que é uno e gravita todo em torno do projeto constitucional.10
Ainda quanto à força normativa dos princípios constitucionais, Maria Berenice11 ensina:
Com a constitucionalização do direito civil, os princípios elencados na Constituição tornaram-se fontes normativas. Diante do vazio da lei, nem a interpretação gramatical, nem a sistemática, nem a histórica servem. O moderno jurista prefere o chamado método teleológico, que se constituiu em um método pluridimensional. Surge daí a proibição de retrocesso social, como garantia constitucional.
Segundo a professora, portanto, diante da força normativa dos princípios constitucionais, decorrente da constitucionalização do direito civil, deve o jurista, ao interpretar o direito civil, levar em consideração o conteúdo desses princípios, principalmente no que diz respeito a novas situações fáticas, não tratadas de forma explícita pela legislação vigente, mas merecedoras de tutela pelo direito, pois passíveis de produção de eventuais efeitos jurídicos.
Já quanto uma “renovada teoria da interpretação, de fins aplicativos”, como um dos fundamentos de aplicação da metodologia do direito constitucional, importante destacar o papel que os princípios constitucionais exercerão nessa forma de interpretação criativa diante de casos aos quais a legislação vigente não seja suficiente para a realização dos valores fundamentais constitucionais.
Através da constante evolução social, que trazem consigo novas realidades, antes não pensadas pelo legislador, situações surgem e que não encontram respostas imediatas na lei, mas que merecem uma atenção jurídica adequada.
Nessa situação, surge a função do interprete e do aplicador do direito, que, de acordo com a forma de interpretação aqui proposta, deverá buscar na Constituição e principalmente nos princípios constitucionais, qual será a melhor forma de dar um tratamento jurídico adequado às novas realidades, ainda que para tanto, seja necessário criar normas não previstas expressamente na lei, mas que possuam um fundamento constitucional adequado. Elucidando, Anderson Schreiber12:
Muito ao contrário: o que a metodologia civil constitucional propõe não é uma releitura exigida pelo envelhecimento da codificação, mas uma releitura permanente, voltada à máxima realização dos valores constitucionais nas relações privadas. A edição de uma nova codificação civil não suprime, nem atenua o papel da Constituição. A atuação do legislador ordinário não substitui o projeto constitucional, nem isenta o intérprete de buscar a permanente adequação do direito civil aos valores constitucionais.
Nesse sentido, apresentando o que seria a função de otimização dos princípios, explica Rodrigo da Cunha Pereira13: “Os princípios exercem uma função de otimização do Direito. Sua força deve pairar sobre toda a organização jurídica, inclusive preenchendo lacunas deixadas por outras normas, independentemente de serem positivados, ou não, isto é, expressos ou não expressos.”.
Em complementação ao raciocínio, Andreson Schreiber14:
A interpretação jurídica não pode ser tratada como procedimento lógico apartado da avaliação dos resultados da aplicação do direito, mas deve, ao contrário, perseguir sempre a concretização do plano constitucional, respeitando a “hierarquia das fontes e dos valores, em uma acepção necessariamente sistemática e axiológica.
Assim, os princípios que serão tratados a seguir, considerando o caso concreto ora analisado, qual seja a possibilidade de reconhecimento das uniões poliafetivas como entidades familiares merecedoras de proteção jurídica adequada, devem ser interpretados levando em consideração esses pressupostos: de força normativa dos princípios constitucionais, sejam eles explícitos ou não; da necessária ponderação em caso de eventual colisão entre mais de um princípio aplicável ao caso concreto; e da possibilidade de uma atividade criativa e integrativa de interpretação pelo aplicador do direito, desde que pautado em um fundamento constitucional legítimo, que normalmente se extrai dos princípios constitucionais cujo conteúdo tende a ser sempre mais genérico e permeável à novas interpretações.
3.3. OS PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA
Para melhor contextualização do tema, passa-se agora a uma breve abordagem dos principais princípios norteadores do direito de família, para que se possa fazer uma adequada interpretação constitucional das questões a este ramo do direito civil relacionadas, e mais especificamente à questão das uniões poliafetivas.
Portanto, serão aqui tratados dos seguintes princípios: dignidade da pessoa humana; afetividade; menor intervenção estatal; pluralidade das formas de família e solidariedade familiar. Não se pretende aqui exaurir o tratamento de todos os princípios relacionados ao direito de família, mas apenas abordar aqueles que podem influenciar de alguma forma a discussão quanto as uniões poliafetivas.
A dignidade da pessoa humana é trazida pela Constituição Federal15 como um fundamento da ordem jurídica, constituindo, portanto um macroprincípio que deve seguir de guia para interpretação de todo ordenamento jurídico, inclusive do direito civil, e que ganha no âmbito do direito de família especial destaque, em virtude do caráter pessoal do qual se reveste e da função social da família, pautada no objetivo de proporcionar pleno desenvolvimento da pessoas humanas que as integram. Nesse sentido, Maria Berenice Dias16:
Na medida em que a ordem constitucional elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento da ordem jurídica, houve uma opção expressa pela pessoa, ligando todos os institutos à realização de sua personalidade. Tal fenômeno provocou a despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos, de modo a colocar a pessoa humana no centro protetor do direito.
Assim, diante de qualquer caso concreto que exija interpretação envolvendo o direito de família, seja quanto ao conflito de regras, quanto na hipótese de colisão de princípios, a dignidade da pessoa humana deverá servir de guia do intérprete para uma adequada fundamentação da opção que dê o amparo jurídico mais adequado, levando em consideração a constitucionalização do direito civil, e a estrutura de um Estado Democrático de Direito fundamentado neste princípio.
Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, os seres humanos não podem ser tratados como instrumentos para perseguição de finalidades de qualquer ordem, seja com relação aos outros, ou mesmo com relação ao Estado. O ser humano, portanto, tem reconhecida sua dignidade, e deve ser visto como portador de um fim em si mesmo, de modo que nenhum ato que desvirtue essa finalidade, a qual diz respeito à realização pessoal do indivíduo, deve ser tolerado, pois eivado de inconstitucionalidade, principalmente no que diz respeito ao âmbito familiar, no qual a pessoa deve encontrar um campo fértil para seu pleno desenvolvimento psíquico e emocional.
Quanto ao princípio da afetividade, base fundamental para configuração das entidades familiares, trata-se de princípio implícito da ordem constitucional, o qual se identifica a partir do momento que esta passa a reconhecer relações familiares não mais formadas com base na lei ou em laços biológicos, mas no afeto em si, o que pode se extrair, exemplificativamente, da menção à união estável como entidade familiar e na equiparação dos filhos independentemente de sua origem.
Tal princípio é elemento essencial, portanto, na busca da identificação relação familiar, conforme a atual ordem constitucional, neste sentido, Pablo Stolze17:
Mas o fato incontestável, e isso deve ficar claro ao nosso amigo leitor, é que toda a investigação científica do Direito de Família submete-se à força do princípio da afetividade, delineador dos standards legais típicos (e atípicos) de todos os institutos familiaristas.
O princípio intervenção mínima do Estado nas relações familiares, por sua vez, determina que o Estado somente deve intervir nas relações familiares sob uma perspectiva protetiva, e não interferir no sentido de limitar a forma como a família deve se configurar, cabendo a determinação de tais regras internas à unidade familiar, ou seja, aos próprios integrantes que a compõem. Nesse sentido, afirma Rodrigo da Cunha Pereira18:
No seio da família, são os seus integrantes que devem ditar o regramento próprio da convivência. Dessa órbita interna exsurgem disposições que farão com que a sociedade e o Estado respeitem e reconheçam tanto a família, enquanto unidade, como os seus membros individualizadamente.
E quanto a forma de intervenção do Estado na família, prossegue:
A intervenção do Estado deve apenas e tão somente, ter o condão de tutelar a família e dar-lhes garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e de que seus membros vivam em condições propícias à manutenção do núcleo afetivo.
O princípio da pluralidade das formas de família pode ser extraído do artigo 226, CF19, que traz em seus parágrafos o reconhecimento de outras formas de família além das constituídas pelo patrimônio, quais sejam, a família formada em virtude da união estável e a família monoparental, num rol exemplificativo, e que permite o reconhecimento de outras formas de família não trazidas de forma expressa no dispositivo.
Tal compreensão, de que o rol de famílias trazidos pela Constituição não é exaustivo, é o que melhor se coaduna com o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade das pessoas decidirem quanto a forma de família que melhor proporciona seu desenvolvimento íntimo e pessoal, colaborando de forma mais eficaz para que alcancem a tão almejada felicidade.
Também é a melhor forma de compreender a família como fenômeno cultural e social dinâmico, e que exige constante adaptação das normas jurídicas para que se dê proteção adequada à família, a qual existe nas mais variadas formas, independentemente de previsão legal e que, portanto, não podem ficar invisíveis ao direito.
Nesse sentido é possível dizer que a pluralidade das formas de família configura um princípio constitucional que assegura às mais diversas formas de família que se formam baseadas no afeto e que promovem a realização pessoal de seus membros, o direito à proteção estatal. Assim explica Rodrigo da Cunha Pereira20:
É, portanto, da Constituição da República que se extrai o sustentáculo para a aplicabilidade do princípio da pluralidade de família, uma vez que, em seu preâmbulo, além de instituir o Estado Democrático de Direito, estabelece que deve ser assegurado o exercício dos direitos sociais e individuais, bem como a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos da sociedade. Sobretudo da garantia da liberdade e da igualdade, sustentadas pelo macropincípio da dignidade, é que se extrai a aceitação da família plural, que vai além daquelas previstas constitucionalmente e, principalmente, diante da falta de previsão legal.
A solidariedade familiar, que decorre da solidariedade social como fundamento da Republica, conforme art. 3º, inciso I, da Constituição Federal21, impõe aos integrantes da família um dever de cuidado e preocupação mútuos, a necessidade de um amparo tanto econômico quanto afetivo e de respeito constante no sentido de que propicie o pleno desenvolvimento da personalidade de todos os indivíduos pertencentes àquela entidade familiar.
Nos dizeres de Rolf Madaleno22: “A solidariedade é princípio oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário”. E complementa: “Na vida social o cônjuge é solidário e prestativo ao respeitar os direitos da personalidade do seu companheiro, estimulando e incentivando sus atividades sociais, culturais e profissionais, que compõem, afinal de contas, a personalidade de cada um dos integrantes do par afetivo”.
Tendo sido abordados os principais princípios que servirão de base para o reconhecimento da união poliafetiva como entidade familiar, necessário se faz tratar da questão da monogamia, no sentido de entender qual a sua natureza jurídica e seu conteúdo para que se possa chegar a conclusão no sentido se seria ou não um fator impeditivo para tal reconhecimento.