4. MONOGAMIA COMO PRINCÍPIO JURÍDICO?
Há forte discussão doutrinária quanto à natureza jurídica da monogamia e seu papel no ordenamento jurídico brasileiro, havendo doutrinadores que entendem tratar-se de um princípio do direito de família e outros que a compreendem como uma regra de estruturação da família formada pelo matrimônio.
Quanto à compreensão de que a monogamia representa uma regra de estruturação das relações formadas pela participação estatal de formalização pelo matrimônio, podemos citar Maria Berenice Dias23, segundo a qual:
Uma ressalva merece ser feita quanto à monogamia. Não se trata de um princípio do direito estatal de família, mas de uma regra restrita à proibição de múltiplas relações matrimonializadas, constituídas sob a chancela do Estado. Ainda que a lei recrimine de diversas formas quem descumpre o dever de fidelidade, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até porque a Constituição não a contempla. Ao contrário, tanto tolera a traição que não permite que os filhos se sujeitem a qualquer discriminação, mesmo quando se trata de prole nascida de relações adulterinas ou incestuosas.
A professora faz questão de enfatizar o caráter ultrapassado da compreensão da monogamia, no sentido de que sua compreensão deve ser aplicada às situações restritas de participação estatal na formação da família. Com base nesse entendimento, seria incompatível sua imposição a toda e qualquer formação familiar, levando em consideração as diversas formas de famílias existentes atualmente, que se formam com base no afeto e na solidariedade, apartadas do caráter de patrimonialização que se verificava na concepção de família anterior à CF/88:
O Estado tem interesse na mantença da estrutura familiar, a ponto de proclamar que a família é a base da sociedade. Por isso, a monogamia sempre foi considerada função ordenadora da família. A monogamia não foi instituída em favor do amor. Trata-se de mera convenção decorrente do triunfo da propriedade privada sobre o estado condominial primitivo. Serve muito mais a questões patrimoniais, sucessórias e econômicas. Embora a uniconjugalidade disponha de valor jurídico, não passa de um sistema de regras morais. De qualquer modo, seria irreal negar que a sociedade ocidental contemporânea é, efetivamente, centrada em um modelo familiar monogâmico, mas não cabe ao Estado, em efetivo desvio funcional, se apropriar deste lugar de interdição. 24
Adepto do mesmo entendimento, Carlos Eduardo Pianovski25, trata a monogamia como um padrão-médio de formação familiar, mas que não pode ser considerada como a única forma de possibilidade de configuração familiar a ser aceita. Defende, assim, que a monogamia não pode ser considerado um princípio a ser imposto coercitivamente a todos, sendo considerada uma regra restrita às relações chanceladas pelo Estado pelo matrimônio, conforme dispõe:
Não se pode afirmar, pois, que a monogamia seja um princípio do direito estatal de família, mas, sim, uma regra restrita à proibição de múltiplas relações matrimonializadas – e, portanto, constituídas sob a chancela prévia do Estado. Não cabe ao Estado realizar um juízo prévio e geral de reprovabilidade contra formações conjugais plurais não constituídas sob sua égide, e que se constroem no âmbito dos fatos. Assim, para além da multiplicidade de relações matrimonializadas, a monogamia somente é relevante para o direito de família quando seu avesso violar a dignidade da pessoa humana. Se assim não for, não cabe ao Estado ser o tutor da construção afetiva coexistencial, assumir o lugar do “não”. A negação ao desejo mútuo, correspectivo, nesse caso, já se apresenta por meio do juízo de reprovação social movido por uma moral média. A coerção estatal não encontra, aqui, o espaço em que legitimamente possa ser exercida.
Por fim, entendimento dos professores Rodolfo Pamplona Filho e Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas 26, que afasta a possibilidade de compreensão da monogamia como princípio jurídico, numa interpretação baseada nos valores constitucionais atuais:
Classificar a monogamia como princípio jurídico, como consta no acórdão do CNJ, implicaria em afirmar que a busca da felicidade conjugal só seria possível a dois, implicando em inferência autoritária e intolerante, que desconsidera a circunstância elementar de que cada ser humano é único, detentor de subjetividade e individualidade constitucionalmente reconhecidas. Em pleno século XXI, mostra-se inadmissível determinar o modo de viver de uma pessoa com base em padrões desejados pela maioria. Tal imposição contrária a hermenêutica constitucional da pluralidade familiar, autonomia privada, ferindo de morte, a promoção da dignidade humana da pessoa não monogâmica.
De outro lado, dentre os que entendem que a monogamia constitui um princípio, podemos citar Rolf Madaleno27 e Rodrigo da Cunha Pereira. Segundo este último28:
O princípio da monogamia, embora funcione também como um ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência no ordenamento jurídico que o adotam tem a função de um princípio jurídico ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da família do mundo ocidental. Se fosse mera regra moral, teríamos que admitir a imoralidade dos ordenamentos jurídicos do Oriente Médio, onde vários Estados não adotam a monogamia.
Segundo o autor, portanto, a monogamia seria o princípio que determina o modo de organização de constituição das famílias como um todo, o qual restará desrespeitado pela eventual existência de relações paralelas que configurem a simultaneidade de famílias, princípio esse necessário, no seu entendimento, atuando como um interdito proibitório no sentido de se viabilizar a organização social e jurídica no que diz respeito à família.
Rolf Madaleno29, ao tratar do princípio da monogamia, aborda a questão da fidelidade como elemento informador das entidades familiares:
A fidelidade supõe exclusividade do débito conjugal, pois como no casamento, também na união estável cada cônjuge ou convivente renuncia a sua liberdade sexual e cada qual dos modelos de entidade familiar espera de seus protagonistas que lancem mão do direito de unir-se em relação carnal ou em íntima afetividade com qualquer outra pessoa diversa do seu consorte ou companheiro.
E prossegue no tema fazendo referência ao princípio da monogamia especificamente:
Ademais disso, só pode existir nos estritos limites da monogamia, a constituição de uma família, direcionando os cônjuges ou conviventes a sua união para a ética correspondência da mais absoluta fidelidade de sentimentos, propósitos e atitudes e de valores, conferindo seriedade e harmonia à sua união, que só nestes termos haverá de gerar os típicos efeitos de uma relação livre e imaculada.
Ante o aqui exposto, cabe neste momento já verificar se a monogamia seria um impeditivo ao reconhecimento das uniões poliafetivas como entidades familiares merecedoras de tutela jurídica.
Para aqueles que não consideram a monogamia como um princípio do ordenamento jurídico, a resposta seria mais direta, no sentido de se admitir o reconhecimento de tais uniões, existentes no âmbito social, uma vez verificados a observância dos demais princípios acima tratados. Ou seja, uma vez existente uma relação entre mais de duas pessoas, que se funde no afeto, na solidariedade familiar, na liberdade, bem como na igualdade de seus membros, e que preencha a função de pleno desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, não haveria porque o ordenamento jurídico negar-lhe proteção, o que iria contra os princípios da pluralidade familiar, da afetividade, da mínima intervenção estatal no âmbito familiar e da dignidade da pessoa humana.
Já para aqueles que trazem a monogamia como princípio, ao menos da forma pelos autores aqui exposta, necessário fazer duas observações. Como qualquer outro princípio, sendo a monogamia reconhecida como tal, não teria tal princípio caráter absoluto, e em caso de colisão com demais princípios familiares, deveria ser feito um juízo de ponderação, o que no caso concreto, poderia se levar a conclusão de que na conformidade da metodologia do direito civil constitucional, reconhecer a união poliafetiva como família seria o que respeitaria os valores constitucionais de forma mais plena.
Outra observação que se coloca diz respeito ao conteúdo colocado pelos autores a este possível princípio. A monogamia, conforme exposto acima, seria uma forma de organização familiar que inviabilizaria a existência de famílias simultâneas e se pauta na fidelidade como compromisso estabelecido entre os integrantes da unidade familiar.
Tratando-se de uma união poliafetiva, o que se verifica como se verá adiante, em regra, seria a composição de uma unidade familiar por mais de dois integrantes, ou seja, não há simultaneidade de unidades familiares. Além disso, não se poderia verificar a fidelidade no sentido de não se ultrapassar os limites impostos dentro daquela unidade, ou seja, se uma família formada por três pessoas, que se respeitam mutuamente, e preenchem os demais requisitos de configuração familiar, e se comprometem a não ter relações com uma quarta pessoa, além das formadoras da unidade familiar, estaria preenchida a questão da fidelidade, ou ao menos da lealdade entre seus integrantes.
Importante decisão que tangencia o tema foi tratada recentemente pelo STF no julgamento do RE 1045273 / SE30, o qual tratava da possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis paralelas para fins previdenciários, o que foi negado, por seis votos a cinco, com base no princípio da monogamia. Dois aspectos referente a tal julgado merecem ser destacados, não tratava o caso de uma união poliafetiva, mas sim de uniões paralelas, em que o princípio da lealdade restava ferido, e a apertada vitória da tese de impossibilidade de tal reconhecimento, pela diferença de um único voto, o que pode indicar que se estivesse em julgamento hipótese de possibilidade de reconhecimento de união poliafetiva, o entendimento do STF poderia ir noutro sentido.
Assim, pode-se concluir que a monogamia não é elemento impeditivo do reconhecimento da família poliafetiva, sendo necessário contudo se estabelecer os critérios configuradores da união poliafetiva como entidade merecedora de reconhecimento e proteção jurídica, a fim que que não sejam ignoradas pelo Estado que lhe deve proteção, pois como qualquer outra família consiste na base da sociedade, nos termos do artigo 226, CF31.
Ressalte-se, contudo, que não seria esse o único argumento contrário a tal reconhecimento, de modo que serão trazidos e rebatidos mais a frente aqueles argumentos mencionados pelo CNJ ao decidir pela proibição da elaboração de escrituras de união poliafetivas, pois pautado nos principais argumentos levantados pela doutrina com relação ao tema, mas antes se faz necessário identificar a conformação da família poliafetiva, o que se fará a seguir.
4.1. UNIÃO POLIAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR
Neste momento se faz necessário identificar a configuração da poliafetividade, bem como, quais os requisitos e elementos identificadores da entidade familiar e qual o conceito de família que podemos extrair do ordenamento jurídico brasileiro, levando em consideração os princípios anteriormente elencados, a fim de se analisar a possibilidade de enquadramento da união poliafetiva como uma entidade familiar, mais especificamente como uma modalidade de união estável entre mais de 2 pessoas.
4.1.1. FAMÍLIA: CONCEITO E REQUISITOS
Pablo Stolze apresenta um conceito de família, sem ocultar a dificuldade de definir tal instituição levando em conta os parâmetros atuais:
No entanto, por conta do desafio que assumimos ao iniciar esta obra, e registrando a pluralidade de matizes que envolvem este conceito, arriscamo-nos a afirmar que “família é o núcleo existencial integrado por pessoas unidas por vínculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes”, segundo o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.32
Assim, o autor apresenta como elemento estruturante da família o afeto, e destaca a sua função de promover o pleno desenvolvimento de seus membros com base na dignidade da pessoa humana.
Também cabe destacar como um conceito que leva em conta a evolução pela qual passou o direito de família após a Constituição Federal de 1988, aquele apresentado pela Lei Maria da Penha, em seu artigo 5º, inciso, II, segundo o qual: “no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.
Como se vê, o conceito trazido pela lei abarca as mais diversas formas de família, pois o faz de forma ampla, sem preconceitos e pautado na questão volitiva e afetiva das pessoas envolvidas.
Rodrigo da Cunha Pereira traz também uma formulação do conceito de família dando destaque aos sujeitos que a compõem:
A partir da compreensão de que família é um núcleo estruturante do sujeito e o que interessa na vida é nos tornarmos sujeito, uma simples lógica nos conduzirá à conclusão de que não faz diferença para um ordenamento jurídico, pautado na ética, a maneira como a família se constitui. O importante é saber se ela é capaz de ser fundante e estruturante da pessoa para torna-la um sujeito. 33
Como elementos necessários para a configuração da família, pode-se citar: a afetividade, a ostensibilidade e a estabilidade, conforme ensina Rodrigo da Cunha Pereira34, citando Paulo Lôbo:
Mas, além da afetividade, quais os elementos necessários para que haja uma família? Paulo Lobo identifica como elementos definidores de um núcleo familiar, além da afetividade, a ostensibilidade e a estabilidade. A afetividade é o fundamento e a finalidade da família, com desconsideração do “móvel econômico”; a estabilidade implica comunhão de vida e, simultaneamente, exclui relacionamentos casuais, sem compromisso; já a ostensibilidade pressupõe uma entidade familiar reconhecida pela sociedade enquanto tal, que assim se apresente publicamente.
Uma vez verificado tais elementos, ou ainda que falte um deles, mas a família esteja cumprindo a função social que lhe é constitucionalmente imposta, qual seja, a promoção do desenvolvimento pleno da personalidade de seus membros, favorecendo o alcance da felicidade de cada um individualmente, será então, a família merecedora de tutela jurídica não como instituição em si, mas sim em virtude da própria proteção da dignidade de seus membros.
Com efeito, não se pode ceder à tentação de enxergar o direito de família como um conjunto de normas destinado à proteção de entidades familiares, quando seu objeto consiste, em verdade, nas relações de família ostentadas por cada pessoa humana, cuja dignidade merece a mais elevada proteção do ordenamento constitucional. A família não deve ser enxergada como valor em si, mas tão somente como comunidade funcionalizada à proteção e ao desenvolvimento da personalidade daqueles que a integram.35
4.1.2. POLIAFETIVIDADE
Nos dizeres de Pablo Stolze36, poliamorismo, conforme termo por ele utilizado, consiste na “situação em que uma pessoa mantém simultaneamente relações de afeto paralelas com dois ou mais indivíduos, todos cientes da circunstância coexistencial, vivenciando, pois, uma relação sobremaneira aberta”.
No conceito acima apresentado, se enquadra o conceito da família poliafetiva nos termos que aqui se investiga, mas também se enquadra a configuração das famílias simultâneas, pela qual mais de um núcleo familiar existem com um dos integrantes comum entre eles, o que não se confunde com a união poliafetiva que aqui se pretende demonstrar.
Rolf Madeleno37, por sua vez, apresenta o seguinte conceito, que vai mais de acordo com o que seria a união poliafetiva:
Esta é a família poliafetiva, integrada por mais de duas pessoas que convivem em interação afetiva dispensada da exigência cultural de uma relação de exclusividade apenas entre um homem e uma mulher, ou somente entre duas pessoas do mesmo sexo, vivendo um para o outro, mas sim de mais pessoas vivendo todos sem as correntes de uma vida conjugal convencional. É o poliamor na busca do justo equilíbrio, que não identifica infiéis quando homens e mulheres convivem abertamente relações apaixonadas envolvendo mais de duas pessoas. Vivem todos em notória ponderação de princípios, cujo somatório se distancia da monogamia e busca a tutela de seu grupo familiar escorado no afeto.
Na verdade, diante a fluidez em que se inserem as relações poliamorosas, e das suas diversas formas de configuração conceituar tais relações consiste num verdadeiro desafio, porém há a possibilidade de identificar alguns elemento uniformes nessas relações, possibilitando certa segurança quanto a configuração de uma relação como sendo uma relação de poliafetividade ou não. Nesse sentido, Rafael da Silva Santiago, em sua tese de mestrado, na qual faz uma longa e exaustiva pesquisa acerca das relações poliamorosas menciona:
A despeito dessa dificuldade, podem ser identificados, a partir do estudo de diversas definições, alguns pontos em comum, que ilustram o que seria e o que não seria uma relação de poliamor. Nesse sentido, perceber-se-á que a maioria das definições compreende a ideia da possibilidade de se manter várias relações amorosas e da necessidade de se pautar por condutas abertas e honestas no âmbito dessas relações.
Um dos destaques a se fazer dentre esses pontos em comum às mais diversas formas de configuração do poliamorismo, diz respeito à honestidade como um de seus elementos identificadores. Sob esse aspecto, todos integrantes da relação poliafetiva têm ciência da abertura desse relacionamento, convivem bem com isso e por meio deles se realizam e desenvolvem sua personalidade de forma plena e envolvidas por um afeto mútuo.
Outro ponto importante diz respeito ao que o autor chama de manutenção de várias relações amorosas, enfatiza-se aqui a ideia de que para que se enquadre como uma relação poliamorosa, não pode se tratar de relações circunstanciais com intuito meramente de satisfação sexual. Exige-se certa continuidade dessas relações e a presença do vínculo afetivo, que diz respeito ao amor.
Nesse sentido o autor destaca: “Aliás, não obstante a concepção de amor possa ser bastante ambígua, aqueles que praticam o poliamorismo definem esse sentimento como um vínculo afetivo sério, íntimo, romântico ou, ao menos, estável que uma pessoa tem com outra ou com um grupo de Pessoas”.
Diante da demonstração do que consiste as relações poliamorosas ou poliafetivas, usando aqui tais termos como sinônimos, o que se pretende demonstrar a partir de então é a possibilidade de enquadrar essa forma de manifestação de afetividade que leva à formação de uma entidade familiar, dentro das características da união estável, ou seja, busca-se analisar se seria possível dentro desse cenário de poliamor se estabelecer com segurança o que seria a união poliafetiva em sentido estrito, com a observância dos requisitos legais caracterizadores da união estável.
4.1.3. REQUISITOS DA UNIÃO ESTÁVEL E POSSIBILIDADE DE ENQUADRAMENTO DAS UNIÕES POLIAFETIVAS
Conforme estabelece o CC/200238, a união estável é entidade familiar formada entre o homem e a mulher que apresente as seguintes características: convivência pública, contínua e duradoura e objetivo de constituição de família. E impõe ainda que tais relações deverão obedecer aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos. Trata-se de entidade familiar reconhecida constitucionalmente de forma expressa, devendo a ela ser assegurada a devida proteção estatal39.
Trata-se da verdade de situação de fato, que independe de qualquer formalidade para sua configuração, bastando que sejam preenchidos os requisitos elencados pela lei. E é exatamente neste ponto que a união estável se diferencia e se distancia do casamento, pois este exige uma série de formalidades com a participação estatal para que se configure. Por outro lado, a este se aproxima no que diz respeito à solidariedade familiar. Neste sentido, Anderson Schreiber40:
Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre regimes, quando baseado na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável.
Agora passa-se a análise dos elementos caracterizadores da união estável para se verificar se adequável a união poliafetiva, quais sejam: publicidade, continuidade e estabilidade da convivência somados à uma real intenção de constituir família.
Nas lições de Pablo Stolze41 tais requisitos podem ser identificados nos seguintes termos: quanto à publicidade, diz respeito à ideia de reconhecimento social desta união como família, que não viva na clandestinidade. Com relação à continuidade, enfatiza a necessidade de uma intenção de permanência e definitividade naquela relação, que não seja marcada pela eventualidade. Já a estabilidade diz respeito a uma certa durabilidade do relacionamento, não se configurando a união estável em relações fugazes. Por fim, o objetivo de constituição de família, visto pelo autor como o “principal e inafastável elemento para o reconhecimento da união estável” e que o diferencia de uma relação de namoro.
Maria Berenice Dias42, traz a configuração da união estável, nos seguintes termos:
Com segurança, só se pode afirmar que a união estável inicia de um vínculo afetivo. O envolvimento mútuo acaba transbordando o limite do privado, e as duas pessoas começam a ser identificadas no meio social como um par. Com isso o relacionamento se torna uma unidade. A visibilidade do vínculo o faz ente autônomo merecedor da tutela jurídica como uma entidade familiar. O casal transforma-se em universalidade única que produz efeitos pessoais com reflexos de ordem patrimonial. Daí serem a vida em comum e a mútua assistência apontadas como seus elementos caracterizadores. Nada mais do que a prova da presença do enlaçamento de vida, do comprometimento recíproco. A exigência de notoriedade, continuidade e durabilidade da relação só serve como meio de comprovar a existência do relacionamento. Atentando a essa nova realidade o direito rotula a união de estável.
Após a exposição dos elementos caracterizadores da união estável previsto entre duas pessoas, necessário se faz analisar a compatibilidade deles com a questão da poliafetividade, ou seja, se seria possível enquadrar a união poliafetiva dentro dos elementos configuradores da união estável.
Quanto à publicidade da relação, como será abordado adiante, o que se buscou pela elaboração de uma escritura pública de união poliafetiva foi exatamente sair da invisibilidade jurídica dessas uniões que de fato existem, mas são por muitos ignoradas, e até repudiadas, por questões de ordem moral. Ou seja, difícil fica cobrar a publicidade plena de tais relações quando encontram na sociedade a barreira do preconceito, ainda assim, há alguns, que na busca de reconhecimento e amparo jurídico, tiveram a coragem de explicitar essa forma de formação familiar, abrindo caminho para a abertura à toda sociedade da existência de tais relações, que não admitem mais ficar na penumbra imposta socialmente.
A estabilidade e continuidade da relação também é elemento de fácil constatação, a poliafetividade, como visto acima, não diz respeito a relações efêmeras ou sem qualquer seriedade, mas exigem certa manutenção da relação e a formação de um vínculo afetivo, que só é possível com certa continuidade e estabilidade.
A intenção de constituição de família também é elemento que não está fora da conformação da união poliafetiva, ao menos destas que buscam seu reconhecimento, o qual tem exatamente a intenção de se ver reconhecidas como entidades familiares merecedoras do amparo jurídico e da proteção estatal como tais.
Assim, como nem toda união entre duas pessoas configurará uma união estável, nem toda união entre mais de duas pessoas poderá ser identificada como entidade familiar, mas uma vez preenchidos esses requisitos essenciais da união estável, merecedoras se tornam da mesma proteção jurídica àquelas dispendidas.
A discussão maior que cabe aqui é no que diz respeito a exigência legal de formação da união estável entre homem e mulher, ou seja, entre duas pessoas. Contudo, o STF43 já interpretou tal disposição conforme a Constituição no sentido de se admitir a união homoafetiva, se valendo em sua fundamentação, dentre outros argumentos, da vedação da discriminação no âmbito familiar, da inexistência de proibição no ordenamento jurídico para o reconhecimento das uniões homoafetivas, da liberdade sexual, do pluralismo familiar assegurado pela Constituição, todos, devidamente adaptados, aplicáveis às uniões poliafetivas. Se destaca aqui, trecho do voto do Ministro Luiz Fux que corrobora para essa forma de entendimento:
O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional.
Diante da fundamentação apresentada, levando em consideração os princípios acima expostos, de dignidade da pessoa humana, da pluralidade familiar, da afetividade, da solidariedade e da intervenção mínima do Estado na entidade familiar, dentro de uma metodologia de um direito civil constitucional, não há razão para se afastar a possibilidade de interpretação conforme a Constituição, nos termos elaborados pelo STF às uniões homoafetivas, às uniões poliafetivas.