O dever de fundamentação das decisões nas causas compensatórias por descumprimento do dever de fidelidade

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03/07/2021 às 12:51
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Fidelidade recíproca. Dano. Dever de Fundamentação

RESUMO: Este artigo científico é resultado de uma pesquisa realizada no campo do direito processual civil em sua aplicação direta no direito privado, especificamente no campo da responsabilidade civil no direito das famílias. O problema investigado se circunscreve em torno do dever de fundamentar as decisões que legitima a intervenção do estado-juiz para decidir - por meio do devido processo legal - na esfera privada dos litigantes. Hodiernamente, decisões judiciais baseadas na discricionariedade judicial têm ameaçado o Estado Democrático de Direito, sobretudo no direito das famílias em causas de responsabilidade civil do cônjuge/companheiro (a) pelo dano extrapatrimonial decorrente do descumprimento do dever de fidelidade. Desse modo, a pesquisa realizada buscou responder questões sobre o sentido de fidelidade; se o dano decorre tão somente do seu descumprimento; como o Poder Judiciário Goiano decide e fundamenta as decisões nesses casos; se a fidelidade nos termos do Código Civil é constitucional, uma vez que à união estável se aplica o dever de lealdade. Estas questões foram respondidas a partir de uma teoria da decisão de viés pós-positivista, denominada Crítica Hermenêutica do Direito em interlocução com a teoria sobre Constitucionalização Prospectiva do Direito. A partir destas premissas teóricas foi possível atribuir sentido ao dever de fidelidade e encontrar os fundamentos que justificam a decisão utilizando o método fenomenológico-hermenêutico, além é claro, da Metodologia de Análise das Decisões.

Palavras chave: Fidelidade recíproca. Dano. Dever de Fundamentação

 

1 INTRODUÇÃO

 

A fundamentação das decisões judiciais e administrativas é um direito do jurisdicionado, bem como um dever para o Estado-juiz e a administração pública sempre que estes estiverem a decidir em favor ou desfavor do particular. Destarte, em tempos em que a dogmática jurídica se diz “pós-positivista”, se torna incompatível com o Estado Democrático de Direito insistir na discricionariedade judicial presente em todas as formas de positivismo.

 

Pensando nisso, através do método fenomenológico-hermenêutico, que objetiva resolver o chão linguístico em que se assenta a tradição, reconstruindo a história do fenômeno investigado de modo que seja revelado o seu sentido, a pesquisa que resultou no presente artigo científico responde acerca dos fundamentos jurídicos que justificam a compensação do cônjuge/companheiro que suporta danos extrapatrimoniais em decorrência da quebra do dever de fidelidade recíproca.

 

O método hermenêutico utilizado para encontrar respostas para o problema não é do tipo passo-a-passo, mas um método que permite alcançar uma resposta adequada constitucionalmente (RAC) eliminando qualquer forma de interpretação solipsista. Nele, a compreensão toma frente à interpretação dando o horizonte de sentido (os), sem dar azo à atribuição pelo interprete a partir de um grau-zero de sentido (o que acontece com os métodos dedutivo e indutivo), isso porque, vai além da simples interpretação do texto e assume uma dimensão ontológica compreendendo o ser em sua existência.

 

Com efeito, trata-se, ainda, de uma teoria da decisão de uma linha pós-positivista denominada Crítica Hermenêutica do Direito (CHD), autoria de Lenio Luiz Streck, onde não se admite que a atribuição de sentido esteja à disposição do intérprete. Aqui ela foi utilizada em interlocução com a teoria sobre Constitucionalização Prospectiva do Direito (CPD) de Luiz Edson Fachin, objetivando desvelar o sentido do dever de fidelidade e as implicações do seu descumprimento para se chegar a uma RAC acerca da fundamentação das decisões em causas nesse sentido.

 

Ambas as teorias são utilizadas aqui a fim de obter uma resposta adequada constitucional. O direito, não está à disposição do intérprete, não pode ser enclausurado a conceitos pré-determinados e vai além da codificação. O direito está submetido à observância de princípios constitucionais, a exemplo da função social, nisto reside a CPD, o que também não significa, nos termos da CHD, deixar de aplicar uma lei infraconstitucional de forma discricionária sob o argumento de estar julgando por “princípios”.

 

Destaca-se que além do método hermenêutico foi utilizado em conjunto a Metodologia de Análise das decisões (MAD), aplicada especificamente na análise dos julgados sobre o tema investigado. A MAD consiste na formulação de um protocolo que permite ao pesquisador analisar as informações das decisões coletadas por meio de um recorte institucional e objetivo, verificando a coerência decisória para então, explicar os sentidos do conteúdo decisório.

 

Tal recorte institucional feito durante a pesquisa se deu por meio da coleta de decisões proferidas por um único órgão colegiado, a saber, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO). Justifica-se o presente recorte pela pertinência da problematização acerca do dever de fundamentar de forma democrática os sentidos atribuídos a fidelidade recíproca e pelo impacto dos seus efeitos que tende a reproduzir os sentidos da decisão paradigma em outras decisões, levando em conta o dever de coerência e integridade encampado no art. 926 do Código de Processo Civil (CPC).

 

Destarte, a partir dos marcos teóricos e com a metodologia utilizada será exposto a seguir a respeito do dever de fidelidade, o seu sentido; a intervenção do Estado por meio deste dever; a problemática fidelidade x lealdade; os danos decorrentes da quebra do dever de fidelidade e, por fim, como devem ser fundamentadas as decisões judiciais nas causas relacionadas à quebra do dever de fidelidade recíproca levando em consideração o direito fundamental de fundamentação previsto na Constituição Federal (CF) e regulado pelo CPC.

 

 

2 O DEVER DE FIDELIDADE RECÍPROCA

 

Inicialmente será abordado sobre o sentido[1] em que é compreendido o dever de fidelidade recíproca, sempre fundamentando o (os) sentido (os) a partir das premissas teóricas que orientaram a presente pesquisa. A partir deste capítulo será buscada uma exposição, se possível exaustiva, da interpretação dada ao respectivo efeito que decorre da união de duas pessoas; a intervenção do Estado no direito das famílias pela imposição de tal dever; se é (in) constitucional a diferenciação dos deveres aplicados ao casamento e a união estável e, por fim, os danos decorrentes do descumprimento.

 

2.1 Sentido de Fidelidade

 

Adianta-se que o sentido do que vem a ser quebra do dever de fidelidade recíproca é pouco densificado pela dogmática jurídica, por este motivo a pesquisa foi além, dialogando com a psicologia sem que, por ela, fosse permitida qualquer correção moral do direito.

 

Sentido, nos termos aqui trabalhados, vai além da semântica ou expressão jurídica considerada abstratamente, está em saber como ela é compreendida no direito dentro da tradição. O sentido é atribuído, não de um modo subjetivo, pois, “a “vontade” e o “conhecimento” do intérprete não permitem a atribuição arbitrária de sentidos” (STRECK: 2017; 111), mas sempre de maneira intersubjetiva, que é “a necessidade do outro para compreender o mundo, impende-se de nos bastarmos (exclusivamente) em nós mesmos{C}[2]”.

 

Assim, assentado no marco teórico (CHD) que possui suas raízes na hermenêutica de Gadamer, fala-se em atribuição de sentido, não mais em sua reprodução porque o intérprete não pode retirar do texto algo peculiar do próprio texto, como se o texto existisse em si mesmo, autônomo ao direito. Isto porque, o direito não é dado pelo texto, é construído, dentro de um contexto social, fático e histórico, por isso também não faz sentido a cisão entre questão de fato e de direito, uma questão de fato é também uma questão de direito.

 

Feitas as devidas considerações a respeito da atribuição de sentido, salienta-se que o dever de fidelidade recíproca, nos termos em que está no art. 1.566, I do Código Civil (CC), surge como um efeito jurídico do casamento. Ele já existia no código de 1916, foi repetido no código atual e decorre tradicionalmente do casamento monogâmico. Remontando o chão linguístico até o código civil de 1916, a doutrina civil clássica – escrita em um período em que o código civil era essencialmente patrimonialista – tratava o dever de fidelidade apenas como uma proibição de se manter relações sexuais com terceiros (fora do casamento).

 

Em leitura de alguns desses autores “a fidelidade recíproca sempre foi entendida como impedimento de relações sexuais com terceiros” (LOBO: 2011; 143). Lecionavam que “a quebra do dever de fidelidade somente se caracteriza pela prática de relações sexuais com outra pessoa” (PEREIRA: 2017; 214). Na mesma linha, Pontes de Miranda (MIRANDA: 1983; 110) considerava como infidelidade apenas o adultério[3], ou seja, a copula carnalis. “A fidelidade representa a natural expressão da monogamia; não constitui ela, tão somente, dever moral; o direito a exige igualmente em nome dos superiores interesses da sociedade” (MONTEIRO: 1983; 109).

 

Parece obvio, pois, que a conjunção carnal praticada por pessoa casada com um terceiro ou terceira implica em quebra do dever de fidelidade. Entretanto, não é tão obvio assim. Pense a hipótese de um casal que pratica swing - “prática que envolve relações eróticas-sexuais ‘fora’ do relacionamento (do contexto doméstico) e mediante o consentimento das partes envolvidas” (OLIVEIRA: 2015; 228). Se há consenso entre o casal, sendo a fidelidade recíproca um dever, o descumprimento implicaria em quebra da monogamia?

 

O art. 1.521, VI, do CC dispõe que não podem se casar as pessoas casadas, daí a doutrina entende que o casamento brasileiro é monogâmico. A pratica do swing não se confunde com casamento poliafetivo, casais que têm essa pratica, consensualmente se relacionam com outros casais, portanto, em que pese a fidelidade seja um dever, o mútuo consentimento nesta pratica não parece se enquadrar nas definições de infidelidade e consequentemente não quebra a monogamia.

 

Hodiernamente, com o avanço das tecnologias, internet e redes sociais, alguns civilistas têm entendido como quebra do dever de fidelidade não só a pratica de relações sexuais, mas também outras situações em que há um envolvimento moral e afetivo do cônjuge com quem é estranho à relação do casal, pois “não necessariamente haverá tal violação, ou mesmo a copula, no ato de infidelidade, expressão melhor adaptada à realidade contemporânea” (TARTUCE: 2016; 75). Destaca-se ainda na dogmática jurídica alguns sentidos atribuídos à infidelidade.

 

Adultério ou infidelidade virtual – nos casos em que um dos cônjuges mantém contatos amorosos com outra(s) pessoa(s), pela internet.

 

Adultério ou infidelidade casto ou da seringa – nos casos em que a esposa realizava uma inseminação artificial heteróloga com material genético de terceiro colhido em banco de sêmen, sem a devida autorização do marido (DINIZ: 2002; 291).

 

A personalização da infidelidade moral, também denominada de injúria grave, caracterizada por uma deslealdade que não chegou aos extremos da cópula carnal com terceiro ou terceira que não o outro cônjuge, exige-se que qualquer desvio que imprima excessiva intimidade ou afeição a outra pessoa, cujo resultado prático é similar ao adultério (FREIRE e CAMILLO: 2006; 180).

 

Desse modo, infidelidade é toda quebra de confiança, relacionada a sexualidade, não sendo necessária a prática de relações sexuais com outra pessoa, bastando condutas libidinosas sem a conjunção carnal, ou mesmo a simulação de infidelidade (TEPEDINO: 2014; 119).

 

Para além da pesquisa no direito, o psicanalista Moisés Groisman, diz que “a infidelidade é um sintoma de uma crise conjugal, como a dor de cabeça e a febre podem ser sintomas de muitas doenças” (COSTA: 2018). Já a psicologia traz algumas definições de infidelidade que se aliam às definições da doutrina jurídica considerando a infidelidade de três maneiras: infidelidade emocional; infidelidade sexual; e infidelidade mista (SANTANA: 2018).

 

A partir dos resultados acima, se entende que os sentidos de fidelidade devem sim abranger outras situações além da exclusividade de relação sexual entre o casal. Com o devido respeito aos autores clássicos, a sociedade está em constante mudança, portanto “há de se pensar o sistema jurídico como um sistema que se reconstrói cotidianamente, que não é pronto e acabado, que está à disposição dos indivíduos e da sociedade para nele se retratarem” (FACHIN: 2012; 145).

 

Neste item, que foi destinado apenas a expor os sentidos da fidelidade recíproca, não houve um aprofundamento em seu aspecto como dever. Se a fidelidade recíproca é um dever que surge como efeito do casamento monogâmico, os efeitos jurídicos que surgem quando há um descumprimento desse dever e a intervenção do Estado no planejamento familiar diante destas circunstâncias serão o enfoque no próximo ponto.

 

2.2 Intervenção do Estado no planejamento familiar

 

Relativamente ao dever de fidelidade recíproca é que se indaga se há ou não uma intervenção do Estado no planejamento familiar pela sua imposição, pois, se a fidelidade recíproca é um dever (Flávio Tartuce afirma que é), quando quebrada, deveria resultar em alguma sanção-civil para o cônjuge inadimplente, assim como, numa compensação para o cônjuge ofendido.

 

A habilitação e celebração do casamento é em primeira análise um contrato solene, cuja força vinculante exige dos cônjuges a boa-fé e a fidelidade conjugal que decorre como efeito automático do casamento monogâmico. A quebra desse dever pode resultar no fim do casamento e causar danos ao cônjuge que permaneceu fiel, consequentemente reclamando a intervenção do Estado em seu favor.

 

Portanto, há sim uma intervenção e a Constituição Federal enfatiza isso no art. 226 quando diz que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Ora, se o Estado assume que protegerá a família, e ele ainda justifica por considerá-la base da sociedade, fica implícito que há uma intervenção, ainda que seja mínima. O que poderia ser discutido seria os limites dessa intervenção.

 

Ocorre que a função social do contrato, que também tem aplicação no direito de família, funciona como uma limitação da autonomia privada. Isso porque ao menos na cultura ocidental ainda há um claro interesse social na preservação das famílias que, parafraseando Rui Barbosa, é a célula mater da sociedade, de sorte que a quebra da fidelidade por um dos cônjuges autoriza, através do exercício do direito de ação, intervenção do estado-juiz visando a compensação pelos danos ao cônjuge ofendido.

 

O dever de fidelidade recíproca não resultou de um moralismo do legislador, como já foi dito, ele está assentado na tradição da família ocidental. É possível afirmar que ele encontra suas bases tanto na proteção da família quanto no §7° do art. 226, da CF que a justifica pelo princípio da dignidade da pessoa humana[4]. Sequer poderíamos falar em Estado Democrático de Direito se a liberdade do planejamento familiar fosse ilimitada, “pois não há democracia onde haja poder ilimitado” (STRECK: 2017; 207).

 

Não se olvide, porém, que a intervenção do Estado no casamento deve ser mínima e excepcional, pois, apesar de o casamento brasileiro exigir a fidelidade recíproca dos cônjuges, a concordância ou aceitamento tácito de um dos cônjuges com o comportamento infiel do outro é contraditório à alegação de dano.

 

Nesse sentido, importantes definições interpretativas da boa-fé contratual foram trazidas pela Lei nº. 13.874/2019. Em que pese o objetivo principal seja os contratos empresariais, ela tutela interesses aplicáveis a qualquer negócio jurídico. A racionalidade econômica (art. 113, §1º, V) por exemplo, como critério interpretativo da boa-fé, pressupõe a capacidade ativa, proba e racional dos contratantes de se vincularem, o que para o casamento tem aplicação quando da decisão de celebrá-lo pelos nubentes, sabendo dos seus efeitos, consequências e finalidade.

 

Entrando já na seara do direito civil constitucional, imprescindível também compreender sobre tudo o que já foi dito anteriormente a respeito do dever de fidelidade recíproca como um efeito do casamento civil, traçando um paralelo com o dever de lealdade, efeito da união estável. O que significa esta diferenciação e se ela é constitucional ou não será aprofundado a seguir.

 

2.3 (In) constitucionalidade da diferença: Dever de fidelidade e dever de lealdade

 

Inicialmente se destaca que nas decisões trabalhadas durante a pesquisa através da MAD percebeu-se o uso indiscriminado das palavras fidelidade e lealdade, como se fossem sinônimas e, em nenhuma das 12 (doze) decisões houve qualquer atribuição de sentido a elas, embora em todas elas a causa de pedir estivesse relacionada a relações sexuais extraconjugais.

 

 A doutrina já entende que o dever de lealdade seria mais abrangente, que ele seria gênero do qual a fidelidade seria espécie, e atribuem isso ao princípio da monogamia que tradicionalmente está presente nos relacionamentos ocidentais. Em julgamento do recurso especial nº. 1.157.273/RN, cuja pretensão da recorrente era obter o reconhecimento de união estável com o companheiro que também mantinha relacionamento semelhante em outro seio familiar – duplicidade de relacionamentos - o Superior Tribunal de Justiça (STJ) assim decidiu:

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Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade - que integra o conceito de lealdade - para o fim de inserir, no âmbito do Direito de Família, relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar do fato de que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade{C}[5].

 

Nesse caso concreto, o STJ entendeu que o dever de fidelidade estaria intrínseco ao dever de lealdade, decorrente da estrutura monogâmica dos relacionamentos da sociedade brasileira. Como dito, seria ele gênero, do qual a fidelidade seria espécie. Nesse mesmo sentido, alguns doutrinadores asseveram que:

 

A lealdade, qualidade de caráter, implica um comprometimento mais profundo, não apenas físico, mas também moral e espiritual entre os parceiros, na busca da preservação da verdade intersubjetiva; ao passo que a fidelidade, por sua vez, possui dimensão restrita à exclusividade da relação afetiva e sexual (GAGLIANO e FILHO: 2017; 1.176).

 

Dever de lealdade, que guarda relação com o dever de fidelidade, mas que com ele não se confunde. Isso porque a fidelidade é decorrência do casamento exclusivamente. Já a lealdade é gênero do qual fidelidade é espécie. Assim, pelo senso comum, a lealdade inclui a fidelidade, mas não necessariamente, o que depende de uma opção dos companheiros (TARTUCE: 2016; 216). 

 

Salienta-se que o Flávio Tartuce, em que pese considerar que a fidelidade recíproca seja um efeito que estaria intrínseco ao dever de lealdade, entende que alguém poderia ser leal mesmo sem ser fiel. Ele exemplifica com uma hipótese em que os companheiros informem previamente ao outro sobre a possibilidade de traição, e justifica dizendo que a união estável não é igual ao casamento. Mas há também outro autor que possui entendimento diverso, a saber, Paulo Lôbo, dizendo que:

 

Os deveres de lealdade e respeito configuram obrigações naturais, pois são juridicamente inexigíveis, além de não consistirem em causas da dissolução. O conceito de lealdade não se confunde com o de fidelidade. A lealdade é respeito aos compromissos assumidos, radicando nos deveres morais de conduta (LÔBO: 2011; 178).

 

Imprescindível reverberar que o direito não é estático, não podendo ficar preso a conceitos predeterminados ou a mera exegese da codificação, mas não pode também por ato discricionário (e não se confunda este ato com o da administração pública) do legislador ultrapassar aquilo que a tradição constrói democraticamente. “E é por isso que o direito acaba sendo um instrumento móvel e profundo da linguagem e, onde está, serve como forma de explicar aquilo que os conceitos, em relação à realidade, não dão conta” (FACHIN: 2018; 118).

 

Dito isto, concorda-se que a união estável não é idêntica ao casamento – isso juridicamente, se comparada à característica contratual formal do casamento -, mas como instituição social que é, se iguala ao casamento, pois, tem por requisito essencial a intensão de constituir família, assim, por mais livre de formalidades que ela possa ser não há motivos justos para dar tratamento desigual às pessoas. Compreendê-la de uma maneira que lhe entregue menor proteção parece-nos que seria contrário ao disposto no caput do art. 226 da CF, sobretudo à dignidade da pessoa humana.

 

Nesta perspectiva, se entende que não deve, ou que pelo menos não deveria haver menor proteção à família formada pela união estável (sobretudo aos companheiros enquanto indivíduos) que também possui igual dignidade. É compreensível que não só a família, mas também o indivíduo que a integra tem proteção do Estado. Destarte, a partir daqui, será exposto o (os) dano (os) que podem sobrevir ao cônjuge/companheiro (a) pela quebra do dever de fidelidade recíproca.

 

2.4 O dano decorrente da quebra do dever de fidelidade recíproca

 

Desde o advento da emenda constitucional nº. 66 que o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio, tornando inutilizável o instituto da separação judicial que depende da imputação de violação dos deveres do casamento. À parte a possibilidade da separação judicial, poderia se dizer que o descumprimento do dever de fidelidade recíproca se tornaria completamente inócuo, “[...] pois não há qualquer sanção jurídica para seu inadimplemento durante a convivência conjugal” (LÔBO: 2011; 147), a não ser é claro, pela responsabilidade civil do cônjuge/companheiro que descumpri-los.

 

Realizada a pesquisa de decisões proferidas pelo TJGO, foram encontrados 12 (doze) acórdãos sobre o tema que constituíram, num primeiro momento, um banco de dados organizado em ordem cronológica (2002 a 2018) com o objetivo de permitir, também, a análise de eventual evolução do conteúdo decisório.

 

No segundo momento, foi verificado como os órgãos julgadores utilizavam os conceitos: dano moral, fidelidade e lealdade, e como esses conceitos são interpretados por ocasião da construção das razões de decidir em cada caso concreto. Feito isso, foi verificada a prática decisória de justificações retóricas preponderantemente axiológicas. Isso porque, em nenhum dos acórdãos houve qualquer densificação de sentido dos conceitos investigados. Têm em comum em 10 (dez) deles{C}[6], que a quebra do dever de fidelidade por si só não gera direito de “indenização”, condicionando-o à comprovação de dano, este considerado genericamente como ofensa à moral objetiva. Dois acórdãos, divergiram apenas neste ponto, tratando o dano nesse caso como presumido.

 

Os danos suportados pelo 1º agravado decorrem da frustração das expectativas legitimamente depositadas no cumprimento, pela 1ª agravante, dos seus deveres conjugais, após 19 (dezenove) anos de casamento, que gerou, in re ipsa, danos aos seus direitos de personalidade, objetivamente consideráveis para efeito de responsabilização daquela[7].

 

Primeiramente, vale lembrar que dano moral é a lesão aos direitos da personalidade, não havendo mais a necessidade de prová-lo, pois agora a prova é in re ipsa. Assim, para constituir o dano moral basta a violação de um direito, independentemente do sentimento negativo consequente, o qual terá relevância apenas para a quantificação do dano[8].

 

Como foi exposto linhas acima, e exposta a única divergência nestes dois acórdãos em parte transcritos – presunção do dano em decorrência do ato ilícito -, não há nas doze decisões fundamentos que revelam a aplicação do direito. Não obstante o tratamento do dano moral como gênero em todos eles seja comum, Pablo Malheiros assevera:

 

Frisa a importância da divisão dentro dos danos à pessoa em danos à saúde, biológicos ou corporais, traduzidos na lesão à integridade psicofísica e danos anímicos ou morais em sentido estrito, ofensas relacionadas aos sentimentos, vida afetiva, cultural e social, nos quais perturbam a alma do ofendido (FROTA: 2008; 202).

 

Esclareça-se que o dever de fidelidade não é assumido para com o Estado, mas para com a pessoa do cônjuge/companheiro, logo, aquele que o descumpre está inadimplente com o outro e, a menos que o ato de infidelidade tenha sido praticado com o consentimento da pessoa que suportou a infidelidade do outro, se estará diante de um dano certo à integridade psíquica do ofendido.

 

Não se pode tratar o descumprimento do dever de fidelidade recíproca somente como dano à moral objetiva. Tampouco arguir que os diversos sofrimentos que decorrem do fim de um relacionamento sério como o casamento e a união estável por causa da infidelidade não significam a existência de dano. Ora, se são inúmeros os sofrimentos em diversos níveis de gravidade, está a se reconhecer o dano a integridade psicofísica da pessoa.

 

Para além do corpo, o ser humano possui um acúmulo de relações que o integram e lhe dão sentido, como seus sonhos, projetos de vida, sentimentos. Nesse passo, admite-se que a pessoa humana não sofrerá dano em sua vida e/ou desenvolvimento social, esportivo, criativo, artístico, sexual, a gerar a proteção integral dela (FROTA: 2008; 90).

 

Salienta-se que discordam deste posicionamento as doutrinas de Carlos Roberto Gonçalves argumentando o seguinte: “O que nos parece, contudo, carecer de fundamento legal, no atual estágio de nossa legislação, é o pedido fundado no só fato da ruptura conjugal, ainda que por iniciativa do outro cônjuge” (GONÇALVES: 2012; 195) e Maria Berenice, asseverando que “[...] a infidelidade não gera o pagamento de indenização” (BERENICE: 2016; 160).

 

Em contraposição dos autores que entendem não haver dano com o descumprimento do dever de fidelidade, por coerência com a responsabilidade civil, sobretudo com a garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, há de se concordar que o descumprimento do dever de fidelidade pode sim gerar outros danos extrapatrimoniais como o dano psíquico, definido pela psicologia como:

 

[...] a sequela, na esfera emocional ou psicológica, de um fato particular traumatizante (Evangelista &Menezes, 2000). Pode-se dizer que o dano está presente quando são gerados efeitos traumáticos na organização psíquica e/ou no repertório comportamental da vítima (LAGO, TEIXEIRA, ROVINSKI e BANDEIRA: 2009; 488).

 

É de conhecimento até mesmo do senso comum que a ruptura de um casamento ou união estável motivado pela infidelidade pode acarretar danos inimagináveis à pessoa humana, e os efeitos desses danos podem ser desde a quebra da expectativa no outro e a frustração de sonhos até patologias psíquicas graves. De sorte que a quebra do dever de fidelidade é capaz sim de causar danos aos direitos da personalidade, o que justifica a condenação ao pagamento de compensação à pessoa que o suporta mediante decisão que deverá ser fundamentada nos termos que será tratado a seguir.

 

3 O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA  

 

A fundamentação das decisões judiciais é verdadeiramente um direito para a sociedade e especialmente para os indivíduos envolvidos no processo, ao passo que se torna um dever para o Estado-juiz como forma de legitimação do uso do poder que emana do povo. Qualquer decisão judicial que não se encontra devidamente fundamentada é considerada nula nos termos do art. 93, IX da Constituição Federal.

 

Entretanto, o texto constitucional relativo ao dever de fundamentação não regula diretamente como devem ser fundamentadas as decisões judiciais, o que por muito tempo permitiu decisões baseadas em teorias positivistas como a teoria pura do direito de Kelsen que permite ao juiz proferir decisões eivadas de subjetivismos exatamente por apostar na discricionariedade judicial.

 

O exercício da jurisdição, para que tenha legitimidade e seja aceito pela vontade geral, deve sempre ser realizado de maneira democrática, aplicando as leis de forma clara, fundamentada, e revelando a norma[9] adequada no caso concreto, pois isto dá credibilidade ao Poder Judiciário. E é assim porque quando os indivíduos acessam a justiça por meio do direito de ação não buscam a “opinião” subjetiva do juiz, mas uma decisão assentada no direito democraticamente construído.

 

Com o advento da Lei nº. 13.105/2015 que instituiu o atual código de processo civil (CPC) ficou ainda mais claro, por meio do art. 489, §1º, como pode ser controlado o ato decisório do juiz pelo dever de fundamentação. Os princípios que devem ser observados e a construção das decisões devem se manter de forma estável, integra e coerente (art. 926 do CPC), que na lição de Dworkin, seria a ideia do romance em cadeias.

 

3.1 Direito fundamental e democracia

 

O atual CPC que teve clara influência e contribuição da CHD na formação do art. 489, §1°, de forma pedagógica estabeleceu os vícios mais comuns que afetam a validade da decisão. Além desse dispositivo, todo o código foi sistematicamente construído com observância do texto constitucional. Por mais óbvio que seja, o legislador ainda teve o cuidado e redundância de deixar isso claro no art. 1º, logo, foi extirpado o antigo axioma do “livre convencimento motivado” que já não havia razão de ser desde a promulgação da CF/88, mas que ainda assombra o direito em pleno estado democrático.

 

O “livre convencimento motivado” que tem servido de álibi retórico para subjetivismos e arbitrariedades, deita raízes na tese da discricionariedade que “diz respeito à liberdade que teria ou tem o juiz para decidir quando o ordenamento jurídico não estabelece claramente como deve ser decidido o caso”(STRECK: 2017; 33). Em qualquer teoria do direito contemporânea, sobretudo na CHD, a discricionariedade judicial não é democrática, isto porque o juiz não é livre para decidir, mesmo que motivadamente, pois o ato judicante sempre deverá ser vinculado ao direito no caso concreto. Nesse sentido, Eduardo Rodrigues assevera:

 

Numa perspectiva democrática discursiva, comparticipativa e policêntrica, o processo deve ser visto como instrumento garantístico dos direitos fundamentais das pessoas, vez que possibilita um espaço público de comunicação entre os sujeitos envolvidos na demanda, de modo que o cidadão afetado pelo provimento judicial participa efetivamente da formação desse provimento (SANTOS: 2016; 45).

 

Nesse modelo de processo democrático as partes têm o direito de saber como influenciaram na decisão do juiz que tem o dever de enfrentar todos os argumentos deduzidos por elas, dizendo ainda, se aplica a norma do modo em que suscitado por uma ou outra, ou que o caso reclama a aplicação de outra norma, sempre fundamentando suas razões por adotar os argumentos levantados por um dos envolvidos ou até mesmo outro que seja constitucionalmente adequado.

 

Salienta-se que há uma tentação ainda maior do julgador em decidir de forma discricionária quando a lei não é clara, incompleta ou quando contém contradições, se valendo o juiz de argumentos morais, econômicos e políticos. Daí que a CHD, à par das teorias positivistas, que permitem tanto objetivismos como subjetivismos, se coloca no meio dos dois posicionamentos criando uma teoria da decisão “[...] sobre a responsabilidade interpretativa do juiz, que não permite que ele se exonere por um fundamento pré-dado objetivamente, nem por uma construção subjetiva, mas o situa num contexto intersubjetivo de fundamentação” (STRECK: 2017; 256).

 

A fundamentação da decisão, “é, em síntese, a justificativa pela qual se decidiu desta ou daquela maneira. É, pois, condição de possibilidade de um elemento fundamental do Estado Democrático de Direito: a legitimidade da decisão” (CANOTILHO, SARLET, STRECK e MENDES: 2013; 1324). A contemporaneidade democrática não comunga com decisões solipsistas, carentes de justificação no e pelo direito - no direito porque é o meio legal e socialmente aceito, e pelo direito porque não se basta em simples subsunções da “norma” abstrata, devendo o julgador sempre explicar sua relação com a causa decidenda.

 

Por meio da fundamentação é que se torna possível que os envolvidos na causa e a sociedade{C}[10], possam ser convencidos de que o decisum se revela como justo ou injusto. Provavelmente, quase sempre haverá uma insatisfação da parte vencida na demanda (principalmente se a decisão for carente de fundamentos). O que é inerente em quase todas as causas é que esta parte, inconformada com a decisão queira manejar algum recurso que, a depender de se estar diante de uma decisão de cognição sumária ou exauriente, implicará em recurso para o próprio juízo ou para outro hierarquicamente superior.

 

A recorribilidade das decisões (lato sensu, sejam interlocutórias, sentenças ou acórdãos), à par das motivações de direito que podem implicar o manejo de um recurso, se dá também por uma necessidade intrínseca da pessoa que normalmente tende a não se conformar com uma decisão que lhe seja desfavorável sem antes ouvir uma “segunda opinião”. E é aqui que surge o ponto crucial do dever de fundamentação das decisões, pois, a partir dela, exsurgirá o interesse e delimitação recursal da parte que sucumbiu.

 

Nesse sentido, a fundamentação das decisões, segundo a doutrina processualista, possui dupla função, a saber, uma endoprocessual, que permite as partes conhecer as razões que formaram o convencimento do juiz, e outra exoprocessual, que permite um controle democrático pela via difusa.

 

Com efeito, pode-se dizer, de forma muito singela, que a fundamentação possui função de dizer o que foi decidido e porque foi decidido daquele modo, é a ratio decidendi. Essa ratio decidendi, que é (ou deveria ser) a “justificação/explicação” do juiz sobre os sentidos e interpretações que foram atribuídos à lei abstrata e aos fatos no caso concreto, e é esta razão de decidir, que foi pesquisada e analisada nas causas de dano extrapatrimonial por descumprimento do dever de fidelidade conjugal que delimitou o problema de investigação.

 

Parcialmente já foram supracitados os resultados da análise das decisões, no que tange ao sentido de fidelidade, mas se faz mister salientar que os acórdãos pecam na falta de coerência e integridade que ainda será aborda, bem como no emprego indeterminado do conceito de dano moral. Por mais que chegassem a conclusão de que o descumprimento do dever de fidelidade não gera dano extrapatrimonial, o problema da fundamentação nesses casos está na forma de tratar dano moral como gênero, empregando-o como um conceito vago sem a explicação da impossibilidade de adequação em um dano stricto sensu.

 

A justificação encontrada em 10 (dez) decisões, com as duas exceções precitadas, revela um aprisionamento a conceitos vagos que não dão conta da realidade. Nesse aprisionamento a conceitos e codificações reside a crítica de Edson Fachin. Para ele, “o codificador invadiu as relações sociais e foi capaz de estatuir todo um regime de nulidades e de incapacidades em torno de uma noção clássica de pessoa, ou seja, com total ausência de valores. O Direito axiológico respira fora da codificação” (FACHIN: 2012; 296).

 

Não se está aqui a defender que deixe de ser aplicada uma lei infraconstitucional, mas que o direito é mais amplo do que a estrutura dos textos jurídicos e conceitos estanques. Por isso a necessidade de uma teoria da decisão como a CHD para que seja assegurada a autonomia do direito. Essa autonomia é verificável através da fundamentação, pois a decisão tomada pelo juiz, antes, deve explicitar como ele chegou àquela conclusão para não incorrer em nulidade:

 

[...] deixará de cumprir o seu dever funcional o julgador que se limitar a decidir, sem revelar como interpretou e aplicou a lei ao caso concreto, ou, mesmo, a fazer simples remissão a fundamentos expendidos em razões, pareceres, decisões, ou seja, em atos processuais produzidos em outro processo (TUCCI: 2016; 113).

 

Isso implica em dizer que o juiz não pode tratar todos os casos semelhantes como iguais. A decisão proferida precisa se revelar como uma norma específica daquele caso, mas também não significa que poderá haver decisões diferentes para casos idênticos, essa é a ideia de coerência e integridade de Dworkin que também está presente na CHD e são inerentes ao dever de fundamentação que será abordado a seguir.

 

3.2 Coerência e integridade

 

Foi dito que as decisões proferidas nas causas de compensação por descumprimento do dever de fidelidade pecam na vagueza pela maneira como tratam o dano moral, além da falta de coerência e integridade. Foi dito ainda que o juiz em casos idênticos não pode dar diferentes soluções. Daí a importância em falar sobre estes dois últimos pontos encontrados na análise das decisões que são essenciais no que diz respeito ao dever de fundamentação.

 

O direito deve ser entendido como um todo, como uma unidade indivisível, em que pese didaticamente sejam feitas algumas divisões. A coerência e integridade deverá estar presente na atividade interpretativa das práticas sociais garantindo um mínimo de objetividade e eliminação de incertezas no direito:

 

Analiticamente, pode-se dizer que: a) coerência liga-se à consciência lógica que o julgamento de casos semelhantes devem guardar entre si. Trata-se de um ajuste que as circunstâncias fáticas que um caso deve guardar com os elementos normativos que o direito impõe ao seu desdobramento; e b) integridade é a exigência de que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, numa perspectiva de ajuste de substância (STRECK: 2017, 34).

 

Coerência e integridade são atributos do novo CPC claramente exigidos no art. 926 nessa nova sistemática processual democrática que tem por escopo a efetivação de direitos, superando a ideia de livre convencimento motivado que não exprime na decisão a adoção de critérios públicos na conclusão do julgador que acaba lançando mão de argumentos retóricos, morais, econômicos, políticos e por vezes até mesmo de enunciados que possuem uma interpretação de sentidos a priori.

 

Trata-se de uma responsabilidade política do julgador que tem o dever de “legalizar” sua decisão adotando critérios de fundamentação dentro do direito democraticamente construído e, além disso, observar as decisões dos casos passados, respeitando as especificidades da causa sub examine para decidir com igualdade (se o casos forem idênticos), como num romance em cadeias, em que o escritor do capítulo seguinte dará continuidade a história contada no capítulo anterior.

 

Nesse panorama de decisões passadas num mesmo sentido, o juiz não estaria necessariamente obrigado a enfrentar os fundamentos da decisão paradigma, mas está obrigado a fazer um confronto analítico entre o caso paradigma e o que está em julgamento para explicar porque ambos guardam semelhanças que justificam uma decisão no mesmo sentido, da mesma forma, está também obrigado a fazê-lo fundamentadamente no caso de eventual distinção (distinguishing):

 

E é preciso que a decisão justifique até mesmo os motivos que levam a se considerar que aquele caso em julgamento é igual a outros já julgados, demonstrando-se que realmente as circunstâncias fáticas deles são idênticas. Não sendo feita essa demonstração, a decisão será nula por vício de fundamentação, pois não estará adequadamente fundamentada (CÂMARA: 2017; 297).

 

Com esse controle de fundamentação é possível eliminar decisões baseadas em convicções pessoais do juiz e incoerências como as que foram encontradas na análise das decisões do TJGO. Como dito, 10 (dez) das 12 (doze) decisões encontradas sobre o tema proferidas pelo Tribunal entendem que o descumprimento do dever de fidelidade recíproca não é suficiente para gerar o direito de compensação se não houver prova do dano e duas entendem que o dano seria presumido.

 

Entendimentos conflitantes como estes (mormente dentro de um mesmo Tribunal), além de gerar incertezas, faz com que o direito fique relativizado, dependente de convicções pessoais do juiz. Um dia se decide em um sentido, no outro, sem qualquer justificativa mudam-se os sentidos. Decisões que estão fora dos padrões democráticos de fundamentação fragilizam a credibilidade do Poder Judiciário, sobretudo do direito.

 

Por fim, apesar de a pesquisa ter se debruçado sobre um tema delimitado será abordado ainda sobre o problema dos princípios como meio de fundamentação das decisões. O próximo e último ponto não abordará uma explicação conceitual de alguns princípios especificamente, mas sobre o seu uso na fundamentação.

 

3.3 Princípios

 

O que acontece com os princípios é por vezes mais um reflexo do positivismo normativista que aposta em discricionariedades, assim como na técnica da ponderação, que inclusive foi escrita no §2º do art. 489 do CPC, motivo de críticas de teorias substancialistas como é o caso da CHD. Há uma proliferação de enunciados e teorias que são revestidos de aparência de princípios sem qualquer origem no texto constitucional. Piora quando nos hard cases (e em qualquer outro que não tenha uma lei clara) os juízes lançam mão da “ponderação” como um “método” para escolher entre um princípio e outro.

 

Bom, sem aprofundar nas críticas feitas à técnica da ponderação, mister tecer alguns comentários, uma vez que ela está presente no texto do CPC. Alexandre Freitas Câmara, apesar de criticar o uso do termo ponderação advoga que para uma fundamentação válida “basta considerar que, no caso de colisão de princípios, deverá o julgador esclarecer, discursivamente, como se justifica o afastamento de um princípio, excepcionado pelo outro” (CÂMARA: 2017; 301). Entretanto, se for feita uma interpretação sistêmica do código ela se revelará incompatível, principalmente em relação a coerência e integridade.

 

Salienta-se que a técnica da ponderação tem sido utilizada de maneira equivocada, de modo que o julgador incriteriosamente escolhe como prevalente o princípio que ele acredita ter mais “peso” no caso concreto. Todavia, “a ponderação será o modo de resolver os conflitos jurídicos em que há colisão de princípios, num procedimento composto por três etapas; a adequação, necessidade, e a proporcionalidade em sentido estrito” (STRECK: 2017; 153). Nesse caso não haveria uma escolha direta pelo julgador.

 

Outrossim, um dos princípios mais presentes em todo o CPC é o do contraditório, que passa por todo o sistema processual, especialmente no que diz respeito ao dever de fundamentação:

 

[...] E daí se extrai a íntima ligação que há entre o princípio do contraditório e o da fundamentação das decisões. É que, sendo a decisão construída em contraditório, através da comparticipação de todos os sujeitos do processo, torna-se absolutamente fundamental que a decisão judicial comprove que o contraditório foi observado, com os argumentos deduzidos pelas partes e os suscitados de ofício pelo juiz, todos eles submetidos ao debate processual, tendo sido considerados na decisão (CÂMARA: 2017; 293).

 

É pelo contraditório que os envolvidos podem se tornar protagonistas na construção da decisão. Atento ao princípio constitucional, o CPC ainda reforça no art. 10 que “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Tal princípio se aplica em qualquer fase do processo, a exemplo na decisão saneadora em caso de inversão do ônus probatório.

 

No caso das ações com pedido compensatório por descumprimento do dever de fidelidade, a motivação estaria presente no dano psíquico suportado pela vítima do ato de infidelidade. Desse dano, a vítima não teria que produzir provas dos efeitos (quebra da expectativa, sonhos frustrados e patologias psíquicas) porque se presumem com o rompimento da comunhão de vida do casal. Então, em nome do contraditório o réu participaria do processo produzindo provas da inexistência de dano (provando por exemplo o consentimento da vítima). E essa participação não é apenas a oportunidade de falar nos autos:

 

Há, porém, ainda, a dimensão substancial do princípio do contraditório. Trata-se do “poder de influência”. Não adianta permitir simplesmente que a parte participe do processo. Apenas isso não é suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do órgão jurisdicional (DIDIER JUNIOR: 2017; 92).

 

Esta perspectiva de contraditório se coaduna com a vedação de decisão surpresa do art. 10 do CPC, pois como dito, o processo democrático significa uma efetiva participação dos envolvidos, de modo que lhes assegure influência na formação da decisão do juiz. Por isso, alguns argumentos como: “o juiz é o destinatário da prova”; “o juiz não está obrigado a responder todos os argumentos levantados pelas partes”, não se amoldam ao sistema processual contemporâneo que não é um mero instrumento, mas condição de possibilidade para o exercício dos direitos de forma democrática.

 

4 CONCLUSÃO

 

O desenvolvimento da pesquisa possibilitou um aprofundamento teórico dos sentidos de fidelidade recíproca, as divergências doutrinárias a respeito do descumprimento do dever de fidelidade e a confirmação da hipótese de que tal descumprimento pode ocasionar danos extrapatrimoniais ao cônjuge/companheiro, danos capazes de gerar o direito de compensação pecuniária. Além disso, também permitiu uma análise de decisões pela MAD em causas dessa natureza, onde foram verificadas incoerências entre julgados e deficiência de fundamentação jurídica.

 

Ao fazer uma reconstrução do chão linguístico em que se situa o objeto, desde o código civil de 1916 até o presente momento, chegou-se ao resultado de que os sentidos de fidelidade vão além da exclusividade de manter relações sexuais dentro da sociedade conjugal e alcançam também os atos praticados com terceiro (os) de maneira afetuosa, ainda que não envolvam relações físicas.

 

A análise das decisões proferidas pelo TJGO revelou a prática decisória de justificações retóricas preponderantemente axiológicas. Não há, em nenhuma das 12 (doze) decisões analisadas, qualquer aprofundamento teórico sobre o tema que justifique fundamentadamente a procedência ou improcedência de compensação pelos danos. Isto porque, o conteúdo decisório dos acórdãos além de não atribuir sentido ao dever de fidelidade o enxerga pela ótica do dano moral como gênero, exigindo prova de dano à honra objetiva.

 

Entretanto, a conclusão que se chegou sobre os danos, foi que o descumprimento do dever de fidelidade recíproca, seja no casamento, seja na união estável, integrando o conceito de lealdade, por si só é capaz de gerar danos psíquicos à pessoa, independente de provas do dano à moral objetiva. Desse modo, as decisões em causas dessa natureza encontram fundamentos (razão de decidir) principalmente na dignidade da pessoa humana, mas também na própria teoria da responsabilidade civil.

 

Dada a importância do assunto, por envolver direitos da personalidade como substratos da dignidade da pessoa humana, bem como a sua relevância social na contemporaneidade, a pesquisa se justificou pela necessidade de encontrar uma resposta adequada que não envolvesse soluções opinativas de conteúdo moral, mas uma solução pelo direito que preserve a sua autonomia, respeitando sobretudo o processo civil democrático como meio de solução dos conflitos e garantia de direitos.

 

Por fim, salienta-se que o assunto, instigante como qualquer outro da responsabilidade civil e do processo civil, ainda pode ser ampliado, uma vez que a presente pesquisa não buscou esgotá-lo, além de ter delimitado à análise de decisões proferidas em um único Tribunal.

 

ABSTRACT: This scientific article is the result of a research carried out in the civil procedural law in direct application in private law, specifically when it comes to civil responsibility in family law. The problem investigated is limited to the duty to justify the decisions that legitimize the intervention of the State judge to decide - through due process of law - in the private sphere of the litigants. Judicial decisions based on judicial discretion have, in fact, threatened the Democratic Rule of Law, especially in the family law in matters of civil liability of the spouse/partner for the off-balance-sheet damage resulting from non-compliance with the duty of fidelity. Thus, the research carried out sought to answer questions about the sense of fidelity; if the damage arises only from its non-compliance; how the Goiano Judiciary decides and grounds the decisions in these cases; if fidelity in terms of the Civil Code is constitutional, since to the stable union applies the duty of loyalty. These questions were answered from a theory of the post-positivist bias decision, called Hermeneutic Critique of Law in interlocution with the theory about Prospective Law Constitutionalisation. From these theoretical premises it was possible to attribute meaning to the duty of fidelity and to find the grounds that justify the decision using the phenomenological-hermeneutic method, in addition, of course, the Methodology of Decisions Analysis.

 

 

Keywords: Reciprocal fidelity. Damage. Duty of Rationale

 

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Sobre o autor
Marcus Vinícius Alves Macedo

Advogado especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Goiás.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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