Criação da ONU, restrição do uso da força e as operações de paz

Exibindo página 1 de 2
04/07/2021 às 12:00
Leia nesta página:

Busca-se contextualizar o papel da Organização das Nações Unidas nos esforços jurídicos de limitação do uso da força nas relações internacionais, assim como o advento das operações de paz

Introdução

 

No artigo[1], busca-se contextualizar o papel da Organização das Nações Unidas nos esforços jurídicos de limitação do uso da força nas relações internacionais. Objetiva-se, igualmente, relatar e analisar a formação das operações de paz da ONU, na qualidade de alternativa possível de controle multilateral da violência, em razão do insucesso da Comissão de Estado Maior das Nações Unidas e, consequentemente, do fracasso na formação de contingente militar permanente sob comando da ONU.

 

1. Criação da Organização das Nações Unidas: realismo e idealismo na reorganização da política internacional

 

Na fase derradeira da Segunda Guerra Mundial, quando, após as batalhas e eventos cruciais[2], a vitória dos Aliados era considerada inevitável, ocorreram grandes conferências entre as principais potências, realizadas, sucessivamente, em Teerã (1943), em Bretton Woods (julho de 1944), em Dumbarton Oaks (agosto de 1944), em Yalta (fevereiro de 1945), em São Francisco (abril de 1945) e em Potsdam (agosto de 1945). O objetivo desses eventos era iniciar a reorganização dos diversos aspectos da ordem internacional após o fim do conflito. Com liderança dos EUA, as dimensões militar (Teerã), econômica (Bretton Woods), geopolítica (Yalta e Potsdam) e político-constitucional (Dumbarton Oaks e São Francisco) das relações internacionais foram reestruturadas, a fim de garantir estabilidade e de coibir novas guerras generalizadas. Durante a Conferência de São Francisco, em particular, cuja agenda havia sido discutida em Dumbarton Oaks, os países vitoriosos buscaram reajustar institucionalmente o sistema internacional por meio da criação de nova entidade mantenedora da paz, que substituiria, em termos mais práticos e efetivos, a malograda Sociedade das Nações.

Os formuladores da Carta das Nações Unidas[3], tratado que institui a organização internacional mais importante do período posterior à Segunda Guerra, tentaram não repetir os erros e as lacunas atinentes ao Pacto da Sociedade das Nações e ao Pacto Briand-Kellog. O documento de 1945, por isso, conjuga aspectos pragmáticos, relacionados diretamente à distribuição do poder mundial no período, e disposições peremptórias relativas à guerra e aos mecanismos acessórios de manutenção da paz (e.g. cooperação entre os povos, defesa dos direitos humanos). Diferentemente do contexto da década de 1920, a realidade internacional de 1945, caracterizada pela preponderância dos EUA e pelas evidências inescapáveis dos malefícios generalizados de conflitos armados, propiciava condições para adoção de arcabouço jurídico mais adequado ao controle da violência entre os Estados. Deve-se reconhecer, no entanto, que a estrutura da ONU constitui apenas a materialização possível do ideal de paz entre os povos, arvorada, em seu âmago, a despeito do reconhecimento da igualdade jurídica entre os Estados, no desequilíbrio de responsabilidades entre os atores, em particular no que se refere ao tema da segurança internacional.

Como previsto em termos mais genéricos no Pacto Briand-Kellog, a guerra, segundo inferido do preâmbulo Carta, é proscrita como instrumento de política dos Estados.[4] Na verdade, no texto do documento de 1945, utiliza-se o termo "uso da força" em lugar de "guerra", a qual, se interpretada tecnicamente, se limitaria apenas ao confronto entre duas entidades estatais[5]. O sistema legal instituído na Carta de São Francisco, por sua vez, é formado, em seu cerne, por regras e por princípios que, ao limitarem esse uso da força pelos Estados, determinam, conforme disposições do capítulo VI, que estes devem resolver eventuais conflitos por meios pacíficos, enumerados, em rol exemplificativo, no art. 33 da Carta[6].

Diferentemente do que ocorria no sistema da Sociedade das Nações, entretanto, os meios de solução pacífica não representam apenas etapas que devem preceder, compulsoriamente, o eventual recurso à força. No caso da Carta da ONU, esses meios constituem a única forma juridicamente admissível de resolver as diferenças entre os Estados. A guerra, portanto, como forma de solução de conflitos, é suprimida do tratado constitutivo da nova organização. O conceito mais aberto de uso da força, por sua vez, foi referido, em regra, como ato ilícito (posteriormente classificado como crime contra a paz), ainda que legalmente aceitável em algumas situações previstas, numerus clausus, na Carta.

Nessas situações bastante específicas de admissibilidade do uso da força, conjugam-se dois valores subjacentes à concepção da ONU - justiça e estabilidade da ordem internacional -, as quais não poderiam ser negligenciadas, sob pena de fracasso moral e de inércia autodestrutiva do sistema. Essas situações excepcionais podem ser reduzidas a dois casos: legítima defesa (art. 51)[7] e força empregada com autorização do Conselho de Segurança (art. 43)[8]. Em analogia com o direito penal, em sua conceituação de ato ilícito e de suas causas justificadoras, esses dois casos consistiriam em formas excludentes da ilicitude: o primeiro existiria com o mesmo nome e definição nos ordenamentos jurídicos domésticos, e o segundo seria similar ao estrito cumprimento do dever legal, pois decorreria de resolução prolatada por órgão competente (o CS).

A legítima defesa (ou self-defense: autodefesa)[9], que consiste na reação imediata e proporcional a ataque ilegal, é clássica norma consuetudinária, princípio do direito internacional e dos ordenamentos domésticos dos Estados em matéria penal. Conforme claramente decidido, pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), no caso Nicarágua contra EUA, sobre certas atividades militares em território nicaraguense, a legítima defesa pressupõe sempre grave ataque armado, que possa, por exemplo, ameaçar a soberania e a integridade territorial do Estado atacado. Em sua forma coletiva, a legítima defesa pressupõe o pedido expresso de auxílio por parte do Estado vitimado pela agressão armada, não podendo, portanto, essa situação ser deduzida por eventuais aliados em pactos de segurança coletiva[10]. A inclusão da legítima defesa no âmbito da Carta da ONU, portanto, consiste no reconhecimento de certos critérios de justiça, arraigados na maior parte dos sistemas jurídicos nacionais e que foram reproduzidos nas normas de direito internacional.

A admissão da força empregada para cumprimento de mandato do CS, por sua vez, constitui meio de atribuição de poder executório à ONU e aos seus membros principais. Consiste, dessa forma, em previsão processual ampla[11], que apenas delega competência decisória ao CS em situações de violação, real ou iminente, da paz mundial. Por isso, o CS, inclusive seus membros permanentes, é dotado de grande discricionariedade para autorizar o emprego da força, uma vez que sua posição pode variar conforme sua perspectiva de necessidade de preservação da paz. Conforme disposição do art. 103[12]e elucidação contida nas decisões da CIJ para o caso conhecido como Lockerbie[13], as Resoluções do CS são obrigatórias e se sobrepõem a outras obrigações internacionais dos Estados. Com o decorrer do tempo, sedimentou-se entendimento de que as resoluções do CS devem estar em consonância com outros preceitos da Carta da ONU, como, por exemplo, a proteção dos direitos humanos, os quais, em seu sentido amplo, estariam diretamente relacionados ao conceito de paz positiva, que não se restringiria a situação de ausência de guerra[14]. Na visão dos formuladores da Carta, a regra do consenso entre os membros permanentes, por sua vez, possibilitaria a preservação do equilíbrio de poder entre os principais Estados vencedores da guerra, bem como eliminaria a ameaça de conduta concertada dos membros da organização contra os interesses de uma grande potência, o que, em certos casos, poderia acarretar novo conflito mundial.

Como se nota de sua estrutura, a ONU representa a materialização de duas perspectivas clássicas das relações internacionais: realismo e liberalismo,[15] cujas ideias serão retomadas na parte II da dissertação, mas que, neste momento, podem ser entendidas como sinônimos de pragmatismo e de idealismo, respectivamente. O conúbio dessas duas escolas de pensamento, no âmbito da organização, pode ser exemplificado, respectivamente, pela forma de funcionamento do Conselho de Segurança e pelos objetivos explícitos de proteção do ser humano. O CS, diferentemente do Conselho da Sociedade das Nações, reflete a distribuição do poder mundial nas relações internacionais depois da Segunda Guerra, excluídas as potências do Eixo, consideradas ainda países inimigos durante a confecção da Carta[16]. No CS, apenas os membros permanentes (EUA, Reino Unido, França, Rússia e China) têm poder de veto. Por isso, em comparação com a sua antecessora, a ONU é mais realista e, ipso facto, mais funcional, ainda que padeça de problemas diversos e que mantenha princípios e objetivos similares aos previstos no tratado constitutivo da organização antecessora. Estes, na verdade, em observância aos preceitos liberais de centralidade do indivíduo, foram incrementados por disposições referentes à proteção do ser humano, contidas no texto da própria Carta e na Declaração Universal de Direitos Humanos, documento de 1948 que, a despeito de ter natureza de Resolução da Assembleia Geral (AG)[17], tem importante função hermenêutica para os direitos genericamente citados no tratado fundador da ONU.

No que diz respeito especificamente à execução de medidas legais de força, deve-se destacar a preponderância da solução realista do capítulo VII da Carta, no qual se explicitam as funções do CS, órgão seleto e de natureza política, em detrimento de outros órgãos principais da organização. Dotado de competência para adoção de grande variedade de medidas coercitivas, enumeradas em rol exemplificativo no art. 42, o CS claramente prepondera nos temas de paz e segurança, ainda que suas decisões não apresentem aspectos jurisdicionais. A AG, apesar de ser mais representativa (art. 9.º)[18] e, por consequência, mais democrática, tem a competência apenas exortatória em assuntos relacionados à segurança (art. 10)[19]. A AG, além disso, é proibida de fazer recomendações acerca de assuntos que pelo consentimento das partes, não é competente para identificar situações de ruptura efetiva ou potencial da paz. A CIJ não possui, igualmente, competência para revisar decisões emanadas do CS no exercício de sua competência primária, a despeito de entendimentos contidos nos casos Lockerbie e Namíbia[20] sugerirem a possibilidade de apreciação de disposições ultra vires dos mandatos criados pelo CS. Existe, portanto, em matéria de segurança, ao se privilegiar as decisões de órgão não jurisdicional duplamente seleto (formado por apenas quinze membros, dos quais se exige o consenso de cinco)[21], evidente preponderância da solução política, na qual alguns Estados prevalecem sobre outros, aspecto que, em verdade, a despeito de prejudicar a legitimidade das resoluções adotadas pelo CS, torna o órgão mais funcional.

Paralelamente, nota-se que as resoluções do CS têm sido progressivamente revestidas de fundamentação jurídica, característica que reforça esforço de tornar a atuação do órgão coerente com as normas de direito internacional. Em razão disso, evidencia-se que os poderes do CS não são juridicamente ilimitados, mesmo que bastante amplos e dotados de discricionariedade. Como previsto no art. 25, as resoluções do Conselho são obrigatórias nos limites determinados pela própria Carta da ONU[22], da maneira como incidentalmente sugerido nos casos Namíbia e Lockerbie. Ao lado disso, a consolidação do conceito de jus cogens[23], normas imperativas que expressariam o consenso internacional acerca de alguns valores universais, representaria, igualmente, no entendimento de alguns doutrinadores[24], limitações à atuação do CS no exercício de sua competência primária.

 

2. O fracasso da Comissão de Estado Maior prevista na Carta da ONU

 

No que concerne aos aspectos operacionais, referentes à execução de mandatos determinados pelo Conselho de Segurança, destacam-se os art. 43,[25] 46[26] e 47[27] da Carta da ONU. Conforme o primeiro dispositivo, as medidas de força a serem executadas pela organização dependeriam de recursos militares, a serem cedidos pelos Estados, mediante assinatura de acordos especiais. A ideia inicial era formar, com base nesses tratados militares específicos, exércitos multinacionais, de disponibilidade permanente, originários das principais potências da época, e dirigidos por uma Comissão de Estado-Maior[28], igualmente integrada por essas potências[29]. Esses recursos, dessa forma, poderiam ser utilizados pelo CS, conforme a necessidade de manutenção da segurança e da paz internacionais.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Como explica Tarrisse da Fontoura[30], o CS, por meio de Resolução 1(1946), determinou o estabelecimento de comissão especial que deveria elaborar os projetos relativos ao art. 43. A denominada Comissão de Estado Maior, no ano seguinte, apresentou relatório técnico propositivo, constituído de quarenta e um artigos. O documento, no entanto, foi rejeitado por alguns dos membros permanentes, os quais não concordaram com diversos itens, como, por exemplo, as dimensões definitivas das forças armadas, o volume dos aportes individuais dos Estados, a impossibilidade de reconvocação das tropas para tarefas nacionais nos Estados cedentes. A URSS, por exemplo, defendia a contribuições idênticas dos cinco países permanentes, equivalência que, além de restringir as forças a patamares insignificantes (em razão das limitações da China), contrariava as iniciais perspectivas norte-americanas. China e França, por sua vez, em razão da existência de graves distúrbios internos, relacionados à transição de seus regimes políticos, advogavam possibilidade de reconvocação das tropas em situações de necessidades domésticas dos países cedentes.

Tarrisse da Fontoura[31] entende que, além dessas divergências específicas, havia o problema político decorrente do processo de reversão de alianças de guerra, motivado por inconciliáveis diferenças ideológicas e por rivalidades geoestratégicas, que caracterizaram o início da guerra fria, e que aumentavam as tensões entre as duas principais potências da época, adeptas de sistemas econômicos inconciliáveis. Além disso, Estados Unidos e União Soviética, que haviam sido aliados circunstanciais na luta contra os regimes nazi- fascistas, vivenciavam situações bastante diferentes após o conflito mundial: a prosperidade econômica da sociedade e o desenvolvimento tecnológico das forças armadas estadunidenses contrastavam com a penúria da população e com o atraso técnico do exército soviético, cujo maior exemplo era a defasagem de seu programa nuclear, que só conduziria o primeiro teste explosivo em 1949, quatro anos após o teste inaugural promovido pelos EUA. Segundo o diplomata, a configuração das forças armadas proposta pela Comissão de Estado Maior, além de acarretar a predominância militar dos EUA (que tinham maiores condições materiais de contribuição), possibilitava a inoportuna e irrestrita circulação das forças norte-americanas pelos territórios ocupados durante a guerra[32]. Essa liberdade - na perspectiva geopolítica da URSS, em situação econômica desfavorável e constantemente assombrada pela ameaça de cerco do ocidente – era perigosa e, por conseguinte, deveria ser evitada, mesmo que isso solapasse os meios operacionais da organização internacional nascente. Em outros termos, a estratégia política defensiva da URSS, na prática, acarretava a inviabilização dos projetos militares decorrentes da Comissão de Estado Maior e, por consequência, a privação da ONU do principal mecanismo operacional de segurança coletiva.

 

3. As operações de paz da ONU como alternativa de uso legítimo da força

 

Por causa do fracasso da Comissão de Estado Maior da ONU e em razão da impossibilidade de firmar os acordos especiais, mencionados no art. 43, criou-se lacuna considerável na estrutura da ONU: embora ela fosse dotada, se comparada com a Sociedade das Nações, de mecanismos relativamente eficientes para determinação de situações de ruptura ou de ameaça de ruptura da paz internacional, monopolizados pelo Conselho de Segurança[33], ela não dispunha de meios materiais para executar as decisões do CS. Esse defeito congênito da organização, que, em grande medida decorreu das posições irredutíveis dos membros permanentes do CS, é, na verdade, indicativo precoce do problema que caracterizaria a ONU durante todo o período de bipolaridade da guerra fria: incapacidade quase absoluta de atuar em situações de conflitos em que houvesse interesse fundamental de uma das grandes potências e dificuldade em atuar em situações de conflito regional e de pouco reflexo sistêmico[34].

Deve-se notar, no entanto, uma pequena sutileza interpretativa na história institucional da ONU: naquele momento, o problema imediato não era exatamente paralisia decisória do Conselho de Segurança, como ocorreria nos anos seguintes. O problema principal, naquela fase, era a inexistência de meios operacionais militares que pudessem ser usados em nome da organização, o que, como explicado, decorria da ausência de consenso dos membros permanentes sobre o tema. Trata-se, portanto, de males de origem com efeitos duradouros, pois eles, ao impossibilitarem o acabamento estrutural da organização, criariam a prematura demanda por instrumentos alternativos de execução das decisões do CS. Posteriormente, com a concepção de meios substitutivos ad hoc, como, por exemplo, as operações de paz, o óbice passa a ser então a paralisia decisória do CS em temas mais sensíveis. A diferença fundamental entre os dois tipos de problemas, ambos gerados pelo CS, é que enquanto a incompletude congênita da ONU implicou a deficiência permanente da estrutura da organização, a paralisação por meio do veto é sempre circunstancial e pode ser, sem grandes formalidades, revertida com a mudança de posição do país vetante. Na prática, foi o primeiro problema que gerou a demanda por soluções alternativas, variáveis conforme as circunstâncias e segundo as necessidades concretas de segurança internacional.

Como, após a Segunda Guerra Mundial, os conflitos localizados, inclusive aqueles relacionados ao fim do colonialismo (e.g. independência de Índia e de Paquistão), acirraram-se, com a possibilidade de efeitos sistêmicos (e.g. divisão da Península Coreana, criação do Estado de Israel e a primeira guerra árabe-israelense), duas alternativas operacionais distintas foram aventadas[35]: atribuição de mandato militar interventivo a país ou a grupo de países específicos[36] e criação de operações imparciais, dotadas de limitado poder de fogo, com a finalidade de mitigar alguns efeitos do conflito e de contribuir para o cumprimento de acordos de cessar-fogo firmados entre as partes em contenda[37]. No primeiro caso, o comando da operação é atribuído, ainda que de maneira precária  à coalizão militar ad hoc; no segundo, o comando geral permanece nas Nações Unidas, mesmo que o comando militar seja delegado[38]92. Na primeira modalidade, o Estado no qual se desdobra a operação admite a presença das tropas internacionais; no segundo, entretanto, a gravidade da ameaça ou da ruptura da paz, no entendimento do CS, enseja a ação de força, independentemente do consentimento do Estado que sofre a intervenção. Além disso, enquanto a primeira opção é claramente fundamentada no cap. VII da Carta, a segunda é, aparentemente, uma alternativa situada entre os cap. VI e VII, pois consiste, simultaneamente, em forma de solução pacífica (como disposto do cap. VI), com emprego moderado da força[39].

O exemplo da primeira alternativa é a invasão da península coreana, em 1950, por forças majoritariamente norte-americanas[40], sob liderança do general MacArthur, após a reinterpretação da regra decisória do Conselho de Segurança quanto à necessidade de consenso entre seus membros permanentes. A atuação da ONU na Guerra da Coreia, por isso, constitui evento relevante na elucidação de dois aspectos sobre as normas de funcionamento do CS em sua competência de autorização do uso da força[41]. Entendeu-se, naquele episódio, que ausência de membro permanente do CS não geraria os mesmos efeitos do veto (voto negativo), reforçou-se, ao lado disso, a ideia de competência residual da Assembleia Geral no que tange à atuação em matéria de segurança, em casos de omissão e de dissenso do CS.

O primeiro aspecto é relativo à reinterpretação do art. 27(3)[42] da Carta, conforme o qual haveria necessidade do voto afirmativo dos cinco membros permanentes entre os nove votos mínimos para decisões em matéria de segurança. Consoante o entendimento do CS, posteriormente reforçado por pronunciamento da CIJ[43], no exercício de sua competência consultiva, esse consenso entre os cinco membros permanentes é desnecessário em caso de ausência voluntária de um deles. Essa situação ocorreu durante as votações sobre o conflito coreano, nas quais a ausência voluntária da URSS[44], que protestava contra a ausência de representante do governo da China continental da ONU[45], não obstou a aprovação de resoluções pelo CS. Em razão disso, o mandato de intervenção foi aprovado - mediante as resoluções nº 82, de 25/6/50[46], nº 83, de 27/6/50[47], e nº 84, de 7/7/50[48] - com apenas quatro votos favoráveis dos membros permanentes.

O segundo aspecto, concernente à competência residual da AG[49], em razão também dos problemas decisórios do CS no caso coreano, foi expresso na resolução 377 (V) da AG, também conhecida como resolução “Unidos para a Paz”, de novembro de 1950[50]. Essa resolução, cujos entendimentos jurídicos são controversos[51], resultou, em grande medida, da atuação direta do Secretário de Estado norte-americano, Dean Acheson, que, em detrimento da exegese restritiva defendida pelos soviéticos, vocalizou a interpretação sistemática dos objetivos da ONU e das responsabilidades da Assembleia Geral (Plano Acheson), especialmente no referente à preservação da paz mundial[52] e à autodeterminação dos povos. Com base no art. 12[53], entendeu-se, portanto, que, em caso de inércia decisória ou de solicitação do CS, reconhecido como instância primária de tratamento dos assuntos concernentes à segurança, a AG poderia atuar em seu lugar. A AG, que, naquele momento, anterior aos processos de descolonização, tinha maioria favorável aos EUA, poderia exercer, de maneira liminar, dada a situação de periculum in mora, sua competência residual de solução de conflitos que ameaçassem a paz internacional, inclusive mediante autorização do emprego pleno da força, conforme o cap. VII.

As operações de paz[54] foram a segunda alternativa, decorrente do fracasso da Comissão de Estado Maior[55]. A United Nations Truce Supervision Organizations (UNTSO)[56] e a United Nations Emergency Force I (UNEF I)[57] constituem exemplos de modalidades de operações de paz adotadas no período: a primeira, classificada como missão de observação, é composta por componentes desarmados, com a finalidade, basicamente, de reportar ao CS, por meio do Secretariado, os desdobramentos da situação conflituosa; a segunda é integrada por militares levemente armados, com finalidade precípua de garantir o cumprimento de acordos de cessar-fogo, firmados entre as partes conflitantes. Esse segundo tipo de operação, nas décadas seguintes, se desdobraria, em missões mais complexas, dotadas de maior poder de fogo, ainda que bastante limitadas e vinculadas ao princípio da neutralidade e ao propósito modesto de promover o cumprimento de acordos firmados entre as partes em conflitos.

Após a criação da ONU, portanto, a história das normas que regulam o uso da força nas relações internacionais, expressa, em termos jurídicos amplos, na passagem de um direito internacional de coexistência para um direito internacional de solidariedade, confunde-se com a evolução das operações de paz. Apesar de outros temas de segurança, como, por exemplo, não proliferação nuclear[58], crime organizado transnacional[59], tráfico de drogas[60] e terrorismo[61], ganharem importância e tratamento jurídico específicos, as operações de paz, na qualidade de mecanismo versátil de atuação direta da ONU[62], constituem o reflexo mais adequado da evolução das normas internacionais sobre o uso da força. A progressiva mudança no objeto da segurança internacional, cujo foco se deslocou da segurança do Estado para segurança do indivíduo[63], nas múltiplas dimensões de seu bem-estar, também é refletida de maneira bastante fidedigna na evolução das operações de paz[64]. Estas, por isso, passam a ser mais demandadas em conflitos intraestatais, muitos deles assoladores de Estados problemáticos, nos quais ocorrem violações graves aos direitos humanos. As operações de paz, além disso, a despeito de suas evidentes deficiências, tornaram-se o meio mais qualificado para realização dos objetivos fundamentais da ONU, dotado de permanência e de crescente autonomia, para promoção da segurança internacional. Em razão desses aspectos, as normas internacionais concernentes ao uso da força do período que se segue à Segunda Guerra Mundial serão analisadas sob a perspectiva da história das operações de paz da ONU.

 

Considerações finais

 

No artigo, buscou-se contextualizar o papel da Organização das Nações Unidas nos esforços jurídicos de limitação do uso da força nas relações internacionais, assim como esclarecer que a formação das operações de paz consolidou-se como alternativa viável à ausência de forças armadas regidas em bases multilaterais.

 

 

Referências

 

ARIMA JÚNIOR, Mauro Kiithi; DALLARI, Pedro Bohomoletz de Abreu. Perspectiva brasileira do uso legítimo da força no direito internacional: análise da participação do Brasil na MINUSTAH. 2016.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: UnB, 1997.

CANÇADO TRINDADE, Vinicius Fox Drummond. “Controle de legalidade de atos do Conselho de Segurança das Nações Unidas” Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 62, pp. 703 - 734, jan./jun. 2013.

CRAVO, Teresa de Almeida. “O conceito de segurança humana: indícios de uma mudança paradigmática?”, in Nasser, Reginaldo Mattar (org.) Os conflitos internacionais em múltiplas dimensões. São Paulo: UNESP, 2009.

DAVID, Charles-Philippe. “Fim da segurança militar, começo da segurança humana?” pp. 75-103. In DAVID, Charles-Philippe. A guerra e a paz: abordagens contemporâneas de segurança e estratégia. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.

DINIZ, Eugênio. “O Brasil e as operações de paz”. In. ALTEMANI DE OLIVEIRA, Henrique; e LESSA, Antônio Carlos (org.). Relações internacionais do Brasil: temas e agendas. São Paulo: Saraiva, 2006.

FAGANELLO, Priscila Liane Fett. Operações de manutenção da paz da ONU: de que forma os direitos humanos revolucionaram a principal ferramenta internacional da paz, Brasília: Funag, 2013.

FONSECA JR, Gelson. Legitimidade e outras questões internacionais – poder e ética entre as nações. São Paulo: Paz e terra, 1998.

FONTOURA, Paulo Roberto Campos Tarrisse da. O Brasil nas Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas. Brasília: FUNAG, 1999.

GOULDING, Marrack. “The evolution of United Nations Peacekeeping”. International Affairs, Vol. 69, N.º 3, 1993.

------------------ Peacemonger. Baltimore, Maryland: John Hopkins University Press, 2002.

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tecnoprint Gráfica Editora. Rio de Janeiro, 1970.

LOWE, Norman. História do mundo contemporâneo. Porto Alegre, Penso, 2011.

MAGNOLI, Demétrio. “No espelho da guerra”. In MAGNOLI, Demétrio (org.). História das guerras, São Paulo, Editora Contexto, 2009.

MORE, Rodrigo Fernandes. Fundamentos das operações de paz das Nações Unidas e a questão do Timor Leste. 164 f. Dissertação (Mestrado em Direito Internacional). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2002.

NEVES, Gilda Motta Santos. Comissão das Nações Unidas para Consolidação da Paz: perspectiva brasileira. Brasília: FUNAG, 2009.

REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. São Paulo: Saraiva, 1998.

SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2000.

SHAW, Malcom. International Law. New York: Cambridge Press, 2008.

 

Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos