O empresário convive com o risco, o que é natural e necessário para o sucesso e lucro. Todo empreendimento pode se destinar ao fracasso por melhores que sejam as intenções, habilidades e competências.
Culturalmente, o inadimplemento e a insolvência causam vasta censura coletiva. No revés empresarial, o falido recebe a indelével marca em sua biografia com a pecha de mau pagador. Ainda que não haja qualquer traço de desonestidade ou fraude nos atos do empresário, em nosso país dificilmente entende-se a falência como a mera consequência de uma gestão desacertada, de tributações exorbitantes, inabilidade empresarial ou legítimo insucesso comercial. Por outro lado, não se ignoram os inúmeros exemplos de quebras que foram consequências de atos desonestos, criminosos, com a intenção de lesar credores. Certamente, estes é que levam o instituto da falência a sua má-fama.
A Lei n. 11.101/2005 (Lei de Recuperação de Empresas e de Falências) prevê em seu art. 102 que o falido fica inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial desde a decretação da falência até a sentença que extingue suas obrigações. É natural que não seja eternamente impedido de exercer suas atividades, razão pela qual a legislação prevê a reabilitação do falido nas hipóteses de extinção de suas obrigações falimentares, regradas especialmente pelo art. 158.
Mas as dificuldades em se obter a extinção das obrigações nos moldes da legislação original pareciam desestimular o devedor a seguir o rito falimentar formal.
A demora do processo – que chega, em média, a 10 anos[1] no Brasil – e demais obstáculos para o falido retomar suas atividades por meio dos instrumentos falimentares acabam por conduzir, muitas das vezes, a dissoluções irregulares e informais que prejudicam toda a coletividade, seja porque os credores gastarão esforços frustrados em busca de bens que há muito não estarão mais acessíveis, seja porque o falido não poderá realizar novas atividades em seu nome, razão pela qual é comum vermos pessoas interpostas em atuação em nome do falido, os famosos “laranjas”. Nada disso contribui para a economia do país.
Afinal, ao somarmos a década média com o período mínimo de 5 (cinco) anos para a reabilitação na legislação até então vigente – em caso de ausência de bens suficientes para pagamentos nos termos da lei –, vislumbramos o transcurso de 15 anos para a retomada das atividades do falido. As dificuldades para a extinção da falência impedem, então, a reabilitação para novas atividades. Com isso, não geram riquezas, empregos, tampouco pagamento de tributos, na contramão dos objetivos desejados que devem prestigiar os princípios da preservação da empresa, da valorização do trabalho e da livre iniciativa.
Nesse contexto, desde a discussão do projeto legislativo que recém alterou a lei de falências tem sido festejada a adoção ou aperfeiçoamento de um fresh start que, em tradução livre, significa rápido recomeço, novo começo ou até mesmo nova chance. Todavia, ao contrário de algumas vozes que defendem que o mecanismo seria muito parecido com o americano, não se pode dizer que houve uma importação integral do fresh start no Brasil especialmente porque a aplicação desse sistema em nosso país parece se dar de forma diversa de suas origens.
O instituto foi incluído em nossa legislação quando da modificação do art. 158 da lei falimentar em redação dada pela Lei n. 14.112/2020, que trata da extinção das obrigações do falido. As alterações que merecem destaque nesse texto são a inserção do inciso V no precitado artigo, bem como a inclusão do inciso III no art. 75.
Na redação anterior do art. 158, as obrigações do falido eram extintas pelo pagamento integral aos credores – situação extremamente rara –, (inciso I); pelo pagamento, após a realização do ativo, de no mínimo 50% dos credores quirografários – naturalmente após o pagamento dos créditos de maior hierarquia – (inciso II); pelo transcurso de 5 (cinco) anos desde o encerramento da falência se não houver condenação por crime falimentar (inciso III); ou pelo transcurso de 10 (dez) anos desde o encerramento, se houver condenação por crime falimentar (inciso IV).
As alterações que nos interessam foram as revogações dos incisos III e IV, que previam extinção das obrigações do falido por mero transcurso de tempo após a definitividade da sentença de encerramento da falência, e a inserção do inciso V.
A novidade relacionada ao fresh start foi a inclusão do inciso V, que prevê a extinção das obrigações do falido a partir do “decurso do prazo de 3 (três) anos, contado da decretação da falência ressalvada a utilização dos bens arrecadados anteriormente, que serão destinados à liquidação para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado”.
Para que o detalhe não passe despercebido: pela literalidade da lei, o prazo anterior era calculado desde o “encerramento da falência”, ao passo que o reduzido, de 3 (três) anos, conta-se desde a “decretação da falência”, momento anterior, consumado pela sentença que julga procedente o pedido falimentar, de natureza constitutiva[2], antes mesmo de seu trânsito em julgado.
Esta redução dos prazos de 10 (dez) e de 5 (cinco) anos para 3 (três) anos, além da mudança do termo inicial da contagem, vai ao encontro de uma das inovações da lei no inciso III, do art. 75, que estabelece como um dos objetivos da falência “fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica”, o que também aponta a doutrina como inovações associadas ao fresh start.
Com isso, a nova lei positivou e esclareceu que o procedimento falimentar não objetivará apenas a liquidação dos bens para pagamentos dos credores com o respeito ao princípio par conditio creditorum, mas que também fomentará o rápido retorno do falido ao mercado.
Ao contrário da antiga lei de falências brasileira (Decreto-Lei 7.661/45), que teve inspiração francesa, a lei 11.101/2005 e a reformadora 11.412/2020 receberam forte influência norte-americana, especialmente do Bankruptcy Code, que possui a concepção de que se deve incentivar e estimular uma nova chance ao falido, como aprendizado para se aperfeiçoar, em vez de tratá-lo como merecedor de uma punição. A premissa daquele direito é que a falência deve ser considerada como consequência do insucesso comercial, e não necessariamente de atitudes antiéticas do empresário.
O novo recomeço visa adotar o modelo do discharge da lei americana, um sistema ou mecanismo que exonera o falido de seus débitos anteriores. Por aqui, Carvalho de Mendonça[3] já há muito apontava que a falência possuía mais de uma função, sendo uma delas justamente a de conferir a liberação das dívidas pré-falimentares, e não apenas a sistemática de pagamento de credores. A doutrina americana[4] também leciona que uma das finalidades da “liquidação”, além da justa divisão do patrimônio aos credores, seria o de oferecer o recomeço, o fresh start, com a liberação das dívidas. Há a extinção das obrigações anteriores, com seu perdão, salvo algumas pequenas exceções como a manutenção de débitos com o fisco.
A exoneração dos débitos pelas regras americanas possui um viés de estímulo ao novo empreendimento, especialmente porque exige que o insolvente realize cursos de educação financeira e permite que permaneça com alguns bens para se recolocar no mercado. É condição do discharge o atendimento de alguns requisitos[5] a depender dos motivos da crise que levou à quebra, se o falido agiu honestamente e com boa-fé, lealdade ao processo falimentar, ou se houve gestão temerária do patrimônio, intenção de obter vantagens ilícitas ou prejudicar credores etc[6].
Tal ambiente é favorecido pela filosofia liberal e capitalista dos Estados Unidos, pouco paternalista, em que os empreendimentos econômicos são bastante prestigiados pelo mercado com crédito barato para estimular o empresário a girar a máquina do “sonho americano”.
Mas, muito embora se reconheçam os avanços inseridos na lei para reabilitação do falido e a inspiração do instituto norte-americano no Brasil, não há como dizer que fora integralmente aplicado em nossa legislação, especialmente em razão das diferenças contextuais e econômicas entre os países. Por lá, o recomeço tem como base o aprendizado, a boa fé e a correção dos equívocos, em estímulo a novo empreendimento. Já no Brasil, a nova chance, que poderá ocorrer por mero decurso de tempo, não garantirá uma experiência semelhante à americana porque o empresário tenderá a cometer os mesmos erros.
Por fim, a alteração legislativa deve ser comemorada por visar à preservação da empresa e nova oportunidade ao empreendedor, mas algumas críticas devem ser feitas com relação às consequências práticas.
O art. 102 fala em inabilitação do falido para atividades empresariais, ao passo que o art. 158 dispõe acerca da extinção das suas obrigações. Mas quem é o falido, na prática, e como o fresh start o beneficia?
Deve-se ter em mente que no caso das sociedades empresárias com responsabilidade limitada os efeitos da falência atingem a sociedade, mas não os sócios – ressalvada a ação de responsabilidade do art. 82, ou a excepcional extensão dos efeitos por desconsideração da personalidade jurídica prevista no parágrafo único do art. 82-A, por exemplo. A sociedade empresária é a falida.
Tal destaque é relevante porque nos casos de empresário individual ou de sócios sujeitos à responsabilidade ilimitada, são eles mesmos quem suportam os efeitos automáticos da inabilitação, ou seja, são de fato os “falidos”. Ficam impedidos, inclusive, de ser administradores de sociedade empresária ou empresários individuais.
Essa diferenciação conduz à conclusão de que é possível que o sócio de uma sociedade falida, que não tenha sido responsabilizado ou sofrido extensão da falência, mantenha-se ou torne-se sócio de outra sociedade empresária. Logo, o descrédito da pessoa jurídica que sofreu processo de falência – que dificilmente dissipará a reputação de má pagadora ao extinguir suas obrigações falimentares por mero decurso do tempo –, aliado à possibilidade de os sócios constituírem nova sociedade com nome “limpo”, parecem afastar o interesse em um fresh start pelas próprias sociedades que sofreram a quebra.
Tudo isso leva a crer que o nominado recomeço seja de difícil aplicação prática em falências de sociedades empresárias com responsabilidade limitada, sendo, à primeira vista, adequado aos empresários individuais e aos sócios sujeitos à responsabilidade ilimitada, quando falidos, como resultado de uma interpretação em proteção à dignidade da pessoa humana. Estes é que sofrem, a priori, pessoalmente os efeitos da falência, e podem ser diretamente beneficiados pela novidade.
Resta-nos acompanhar os benefícios do novel instituto no país.