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Fair use e sua aplicação na legislação brasileira

09/07/2021 às 10:20

Resumo:


  • A doutrina de fair use nos Estados Unidos permite o uso de material protegido por direitos autorais em certas circunstâncias, como para crítica, comentário ou fins educacionais, sem violar os direitos do proprietário.

  • A legislação brasileira de direitos autorais é mais rígida, com usos permitidos expressamente listados na Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98), sem espaço para interpretação flexível como no sistema de fair use americano.

  • Existem projetos de lei para modernizar a Lei de Direitos Autorais no Brasil, mas eles estão parados, e a legislação atual não acompanha plenamente o objetivo de fomentar a criatividade e a liberdade de expressão.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A aplicação do uso justo da proteção autoral é de suma importância para o fomento da produção de conteúdo e da exploração da criatividade. Logo, é essencial a abertura da discussão jurídica sobre a doutrina americana do fair use para aplicação no Brasil.

Em vários países, o uso comedido de obras protegidas por direito autorais não violam os direitos do proprietários, o exemplo mais conhecido é o caso dos Estados Unidos, nos quais os direitos autorais são limitados pela doutrina de fair use, sob a qual permite certos usos de material com direitos autorais sem limitação.


ORIGEM E CONCEITO DE FAIR USE

Para entender o que seria o uso justo e sua aplicação na legislação brasileira, é necessário apresentar o conceito e sua aplicação na legislação americana.

A doutrina do fair use (uso justo), consiste em um conjunto de diretrizes no Título 17, parágrafo 107 (Limitations on exclusive rights: Fair use) do Estatuto do Direito Autoral dos Estados Unidos (US Copyright Statute) que permite a utilização de trabalhos de propriedade autoral de outras pessoas em certas situações não havendo a infração do conteúdo do proprietário.

O fair use surgiu nos Estados Unidos a partir da metade do século XIX, quando as cortes federais americanas passaram a perceber que algumas utilizações eram de boa fé e, assim, não seriam passíveis de infração.

Contudo, apesar do embrião do uso justo ter surgido muitos anos antes, a codificação da doutrina fair use demorou ainda para se efetivar na justiça americana. Somente em 1976 os Estados Unidos reconheceram o instituto do fair use, aprovando o estatuto autoral.

O fair use surge para harmonizar a proteção autoral e principalmente a liberdade de expressão, repercutindo na garantia de que o Direito Autoral não se sobressaia aos demais direitos individuais, com isso, possa prevenir a rígida aplicação dos estatutos autorais em circunstâncias que reprimam a criatividade que a proteção autoral se destina.

Portanto, podemos conceituar o fair use como o princípio norteador da limitação da proteção autoral, do qual realiza o balanceamento das liberdades individuais de propriedade e expressão com a finalidade de preservar e fomentar a criatividade autoral.


OS QUATRO FATORES DO FAIR USE

Para que se esteja a mercê da aplicação da doutrina fair use, devem ser considerados quatro fatores, que nem sempre precisam aparecer em conjunto:

1. A finalidade e o caráter do uso, incluindo se tal uso é de natureza comercial ou se presta a fins educativos que não visem a obtenção de lucro.

Se você usar o trabalho protegido por direitos autorais de outra pessoa para fins de crítica, reportagem de notícias ou comentários, esse uso pesará a favor do fair use. Fins como esses são frequentemente considerados do interesse público e são favorecidos pelos tribunais em relação aos usos que apenas buscam lucrar com o trabalho de terceiros.

Quando você coloca material protegido por direitos autorais para um novo uso, isso promove o objetivo dos direitos autorais de promover o progresso da ciência e das artes.

Ao avaliar o propósito e o caráter de seu uso, um tribunal verificará se o novo trabalho que você criou é transformador e adiciona um novo significado ou mensagem. Para ser transformador, um uso deve ser adicionado ao original com um propósito adicional ou um caráter diferente, alterando o primeiro com uma nova expressão, significado ou mensagem. Embora o uso transformador não seja absolutamente necessário, quanto mais transformador for o seu uso, menos você terá que mostrar nos três fatores restantes.

Um equívoco comum é que qualquer uso com fins lucrativos do trabalho de outra pessoa não é considerado aplicável ao fair use e que qualquer uso sem fins lucrativos é justo.

Deveras, alguns usos com fins lucrativos são razoáveis ​​e alguns usos sem fins lucrativos não, o resultado depende das circunstâncias. Os tribunais presumiram originalmente que, se o uso era comercial, era uma exploração injusta. Posteriormente, eles abandonaram essa suposição porque muitos dos possíveis usos justos de uma obra listada no preâmbulo da seção 107, como os usos para fins de reportagem de notícias, são conduzidos com fins lucrativos. Embora os tribunais ainda considerem a natureza comercial do uso como parte de sua análise, eles não considerarão um uso transformador injusto simplesmente porque dá lucro. Consequentemente, a presença de publicidade em um site não condenaria, por si só, a extrapolação do uso justo.

2. A Natureza da obra protegida por direitos autorais

Ao examinar este fator, um tribunal verificará se o material que você usou é factual ou criativo, e se é publicado ou não publicado. Embora obras de não ficção, como biografias e artigos de notícias, sejam protegidas pela lei de direitos autorais, sua natureza factual significa que pode se confiar mais nesses itens e ainda assim desfrutar da proteção do uso justo.

Ao contrário de obras factuais, obras de ficção normalmente recebem maior proteção em uma análise de uso justo. Assim, por exemplo, fazer citações de um relatório de pesquisa tem mais probabilidade de ser protegido pelo fair use do que citando um romance. No entanto, esta questão não é determinante, e os tribunais descobriram o uso justo de obras de ficção em alguns dos principais casos sobre o assunto.

A natureza publicada ou não do trabalho original é apenas um fator determinante em uma classe restrita de casos. Em 1992, o Congresso alterou a Lei de Direitos Autorais Americana para adicionar que o uso justo pode se aplicar a trabalhos não publicados.

Essa distinção serve principalmente para proteger o sigilo das obras que estão em vias de publicação. Portanto, a natureza da obra protegida por direitos autorais costuma ser uma pequena parte da análise do fair use, que é mais frequentemente determinada observando-se os três fatores restantes.

3. A quantidade e a substancialidade da parte usada em relação àquela com direitos autorais como um todo

Não existe uma definição de quanto de uma obra protegida por direitos autorais você pode usar sem se responsabilizar por isso. Em vez disso, os tribunais examinam como esses trechos foram usados ​​e qual era sua relação com toda a obra. Se o trecho em questão diminuir o valor do original ou incorporar uma parte substancial dos esforços do autor, poderá constituir uma infração.

4. O efeito do uso sobre o potencial de mercado ou valor da obra protegida com direitos autorais

Os tribunais tendem a ver o quarto fator como o mais importante, sendo que nesse ponto o tribunal verificará o quanto o valor de mercado da obra protegida por direitos autorais é afetado pelo uso em questão. Este fator pesará a favor do detentor dos direitos autorais se o uso irrestrito e generalizado tiver um impacto considerável no mercado potencial da obra.

Embora o detentor dos direitos autorais não precise ter estabelecido um mercado para a obra de antemão, ele deve demonstrar que o mercado é tradicional, razoável ou com probabilidade de ser desenvolvido.

Dessa forma, a análise de fair use passa pelo bom-senso. Isso é especialmente importante para alguns setores da economia criativa.


APLICAÇÃO DO FAIR USE NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

No Brasil, as hipóteses de “usos livres” são poucas e estão indicadas expressamente no art. 46, da lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei de Direitos Autorais – LDA), conforme verifica-se:

Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:

I - a reprodução:

a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos;

b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza;

c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros;

d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários;

II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;

III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra;

IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou;

V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização;

VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro;

VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa;

VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

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Logo, aqui no Brasil o trabalho dos magistrados se limita a verificar se o uso se enquadra literalmente em alguma daquelas poucas hipóteses previstas na LDA. Não havendo uma aderência total a uma dessas situações, o uso será considerado irregular.

A aplicação dos limites da proteção autoral aplicada pela jurisprudência pátria é extremamente rígida, sendo que apenas em casos muito específicos e ausente de ganho econômico com a utilização do pequeno trecho é caracterizado o uso justo.

Nos EUA, por outro lado, a legislação não apresenta uma lista fechada, nem mesmo com propósitos ilustrativos. O fair use é um princípio, uma norma aberta, passível de interpretação e de aplicação caso a caso. Não há, portanto, casos estanques, mas uma gama enorme de possibilidades.

Há diversos projetos de lei para modernização da Lei de Direito Autoral (LDA), parados e sem perspectiva de avanço. Esses projetos representariam grande evolução na proteção autoral nacional fomentariam a liberdade de expressão e a criação de conteúdo informativo.

A redação do art. 46. da Lei 9.610/98 é objeto de muita polêmica quando trata das limitações do autor, uma vez que suas normas são fechadas e este tema requer uma regulação objetiva, justa e abrangente, sendo que a forma atual da legislação não coaduna com o objetivo da proteção autoral, que seria singelamente o fomento da criatividade.

Em que pese a tramitação de projetos legislativos no Congresso, percebe-se que existem questões pessoais, principalmente motivadas pelo valor econômico para que ocorra alteração efetiva. Assim, diante desta realidade, representa ainda mais significância a interpretação objetiva com a implantação da doutrina fair use como fonte do direito nacional, tendo em vista a lacuna legal existente.


REFERÊNCIAS

DIGITAL MEDIA LAW PROJECT (EUA). Fair Use. 2020. Disponível em: https://www.dmlp.org/legal-guide/fair-use. Acesso em: 230 mar. 2021.

GURJÃO, Paulo José. A doutrina do fair use no direito autoral brasileiro: o uso da doutrina norte-americana do fair use como paradigma de interpretação da lei de direito autoral brasileira. 2019. 74. f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/11288/1/PJGurjao.pdf. Acesso em: 23 mar. 2021.

Lei no. 9.609, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9609.htm. Acesso em: 23 mar. 2021.

POLICARPO, Nathália Sant’ana. Uso Justo No Direito Autoral. 2015. Clube de Autores. 344. p.

STIM, Richard. The 'Fair Use' Rule: when use of copyrighted material is acceptable. When Use of Copyrighted Material Is Acceptable. Disponível em: https://www.nolo.com/legal-encyclopedia/fair-use-rule-copyright-material-30100.html. Acesso em: 23 mar. 2021.

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Sobre o autor
Keiffer Becker

Possuo graduação em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Pós-graduado em Direito Empresarial pelo Escola Brasileira de Direito - EBRADI. Fui membro titular da Comissão de Direito Securitário da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de Santa Catarina. Sou o atual presidente da Comissão de Direito Administrativo, Vice-presidente da Comissão de Moralidade Pública e membro da Comissão de Negócios Internacionais, Tecnologia e Investimentos em Startups, todas da OAB Subseção Palhoça. Tenho experiência nas áreas do Direito Empresarial, Propriedade Intelectual, Contratos, e atuação efetiva em demandas complexas de Direito Administrativo e Direito Público em geral.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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