A cessão fiduciária de direitos creditórios no contexto da recuperação judicial

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O presente artigo tem por finalidade trazer a análise sobre a relevância da exclusão do credor de cessão fiduciária de direitos creditórios do processo de recuperação judicial.

RESUMO

A qualidade da garantia creditória implica automaticamente na saúde do mercado financeiro e na expansão da economia de um país. Isso porque, quanto menor a taxa de juros, mais possibilidades de injeção de capital na economia, com geração de empregos, renda e serviços. O presente artigo tem por finalidade trazer a análise sobre a relevância da exclusão do credor de cessão fiduciária de direitos creditórios do processo de recuperação judicial.  Nesse contexto, a interpretação dos tribunais superiores acerca da proteção deste credor traz implicações diretas na dinâmica do mercado, tanto sob o enfoque da função social da empresa, quanto pelo enfoque da livre iniciativa e autorregulação do mercado. É trazido o conceito dos principais institutos acerca do tema, bem como sua importância no contexto da recuperação judicial.

ABSTRACT

The quality of the credit guarantee automatically implies the health of the financial market and the expansion of a country's economy. This is because, the lower the interest rate, the more possibilities for injecting capital into the economy, generating jobs, income and services. This article imposes the analysis on the exclusion of the creditor from the fiduciary assignment of credit rights from the judicial reorganization process. In this context, the interpretation of higher courts regarding the protection of this creditor brings direct sources in the market dynamics, both from the standpoint of the company's social function, and from the standpoint of free enterprise and market self-regulation. The concept of the main institutes on the subject is brought up, as well as its importance in the context of judicial recovery.

Palavras-chave: Cessão fiduciária de direitos creditórios. Recuperação judicial. Mercado Financeiro.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo abordar o estudo sobre a cessão fiduciária de direitos creditórios e os desdobramentos que podem ser alcançados por meio do estudo da natureza jurídica deste instituto e pela análise do conceito de propriedade fiduciária, cujo enfoque será relacionado diretamente à sua aplicabilidade frente à Lei 11.101/05 (“Lei de Falência”).

A importância do tema se justifica pelos possíveis reflexos que entendimentos distintos podem acarretar na jurisprudência pátria e, consequentemente, no mercado financeiro, tendo em vista a relevância da garantia de cessão fiduciária, que é amplamente utilizada pelas instituições financeiras, razão pela qual o presente tema influencia também o setor econômico.

Inicialmente, foram expostos os principais conceitos relacionados ao tema, com base na Lei 10.406/02 (“Código Civil”) e na doutrina pátria, uma vez que tais definições são o ponto de partida para o desenvolvimento e compreensão do debate proposto neste trabalho.

Com o auxílio do aparato legislativo aplicável, especialmente a chamada Lei de Falências retro mencionada, o estudo caminha para a discussão recentemente travada no âmbito dos tribunais brasileiros.

A metodologia de pesquisa baseou-se na jurisprudência, em sua evolução, partindo-se de julgados antigos até o que há de mais recente nas decisões sobre o tema. Foram relevantes também artigos publicados em revistas e livros especializados, escrito por doutrinadores e profissionais atuantes nas áreas de Direito Falimentar e Mercado Financeiro e de Capitais.

Tendo em vista que o presente trabalho proporciona a aproximação dialética entre os campos do Direito e da Economia, buscou-se ainda a adoção de premissas econômicas e o pensar do Mercado Financeiro como um todo, aceitando que as decisões proferidas nos tribunais, bem como as leis promulgadas no país e normas instituídas pelos órgãos reguladores possuem o poder de influenciar a postura dos agentes participantes do mercado e, inclusive, o volume e espécies de investimentos feitos no Brasil.

Neste sentido, procurou-se expor o funcionamento do mercado e o racional contido nas negociações preliminares às concessões de empréstimos e financiamentos, de modo a compreender a importância específica da garantia de cessão fiduciária de direitos creditórios na obtenção do crédito.

 Por fim, trataremos do cenário da recuperação judicial, do enquadramento fornecido pela Lei 11.101/05 ao credor com qualidade de proprietário fiduciário, e, posteriormente, os reflexos causados por uma eventual alteração da classificação destes credores no cenário da recuperação judicial da empresa tomadora dos recursos.

2. A CESSÃO FIDUCIÁRIA

2.1 A Propriedade Fiduciária Como Garantia Real

 

  • 2.1.1. Noções Gerais

A garantia de alienação fiduciária pode ser conceituada, nos termos do art. 22 da Lei 9.514/1997, como a “o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”. Poder ser constituída sobre bens imóveis ou móveis, conferindo ao credor fiduciário direito real de aquisição do bem[1]. O legislador criou arcabouço legal específico para tratar da alienação fiduciária de imóveis, consubstanciada na Lei nº. 9.514/97.

Já sobre os bens móveis, a Lei nº. 6.404/76 (“Lei das S/A”) fala especificamente sobre o gravame que poderá ser instituído sobre as ações emitidas por sociedade anônima. Posteriormente, o Código Civil trouxe os dispositivos legais que atualmente estão vigentes acerca da propriedade fiduciária, no artigo 1.361 e seguintes.

De acordo com importante lição do mestre Melhim Namem Chalhub:

Por efeito da constituição da propriedade fiduciária o bem é retirado do patrimônio do fiduciante e transmitido ao fiduciário, mas com as restrições próprias dessa espécie de propriedade, que só confere ao fiduciário os poderes necessários ao cumprimento da afetação a que se destina o bem transmitido em fidúcia; desdobra-se a posse e, conforme seja a função da atribuição fiduciária, ora se atribui a posse direta ao fiduciante e a indireta ao fiduciário, ora se atribui a posse plena a este último[2].

Desta forma, é pressuposto da propriedade fiduciária que haja o descolamento do bem oferecido em garantia do patrimônio do devedor, passando a compor os bens do credor fiduciário, até que haja o adimplemento da obrigação principal. Em consequência, a utilização da garantia não precisa ocorrer por meio judicial, uma vez que o bem não integra o patrimônio do devedor.

A propriedade fiduciária tem natureza jurídica de propriedade resolúvel, na qual o conceito de propriedade é desmembrado. Isso significa que não há propriedade plena, mas limitada, uma vez que aguarda-se o implemento de determinada condição ou termo, quando então os efeitos da garantia real cessarão em benefício do credor (caso não haja o adimplemento da dívida) ou do devedor (caso todas as obrigações sejam devidamente cumpridas)[3].

Dessa forma, a principal diferença entre a propriedade fiduciária e as demais garantias reais está no fato do bem transferir-se ao patrimônio do credor. Melhim Namem Chalhub explica que:

[a propriedade fiduciária] Distingue-se dos demais direitos reais limitados de garantia – penhor, anticrese, e hipoteca – porque nestes o titular da garantia tem o direito real em bem alheio, enquanto a propriedade fiduciária incide sobre o bem próprio do credor, disto resultando que a execução do contrato se faz mediante procedimentos substancialmente distintos, em conformidade com a espécie de garantia[4].

Se a principal distinção traduz-se na propriedade resolúvel detida pelo credor, o maior benefício auferido é a forma de execução diferenciada. O mestre Arruda Alvim esclarece o avanço trazido pela alienação fiduciária de bens móveis:

A previsão da alienação fiduciária de bem móvel, acorre, justamente, a contornar a morosidade de um processo judicial, para realizar mais rapidamente o crédito, objeto dessa garantia real, e colocar ao lado das garantias clássicas outra mais eficiente. A propriedade fiduciária deve ser objeto de contrato e se constitui com o registro do mesmo no cartório de títulos e documentos – e, tratando-se de veículos, na repartição competente para o registro, com anotação no documento, isto é, com o registro, desdobra-se a posse, ficando o devedor com a posse direta e o credor com a posse indireta[5].

  • 2.1.2. Efeitos das Garantias Reais

As garantias reais geram a seus titulares, ou seja, aos credores que efetuaram o desembolso dos recursos financeiros, preferência na ordem de recebimento do pagamento das dívidas do devedor, com relação a outros credores, bem como a oponibilidade das garantias perante terceiros que tenham outros direitos em face do mesmo devedor.

Pautando-se nos esclarecimentos de Pedro Elias Avvad, a constituição de uma garantia real tem como efeitos: o privilégio, a sequela, a excussão e a indivisibilidade[6].

O privilégio é percebido nos exatos termos da explicação de Carlos Roberto Gonçalves na página 3 do presente estudo, uma vez que o credor terá preferência no recebimento do dinheiro, pois terá destacado do patrimônio do devedor um bem para tal finalidade, que outros credores não poderão alcançar em razão do privilégio detido pelo beneficiário da garantia real.

O Código Civil, em seu artigo 1.422 reflete o direito ao privilégio: “O credor hipotecário e o pignoratício têm o direito de excutir a coisa hipotecada ou empenhada, e preferir, no pagamento, a outros credores, observada, quanto à hipoteca, a prioridade no registro”[7].

A sequela, por outro lado, demonstra que o bem, ainda que seja alienado para outro credor ou para qualquer outra pessoa após a constituição da garantia real, continuará vinculado à dívida originária, desde que tenham sido devidamente realizados todos os registros e averbações necessárias à publicidade da relação existente entre credor e devedor perante terceiros. Assim, o credor poderá sempre perseguir o bem que lhe foi afetado para sobre ele exercer seu direito à excussão.

Nesse sentido, a excussão significa a possibilidade de execução da garantia real, ou seja, a discussão da inadimplência do crédito na esfera judicial que poderá ser provocada pelo credor quando as obrigações não forem satisfeitas na forma pactuada entre as partes quando da liberação dos recursos, conforme artigo 1.422 mencionado acima.

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A garantia hipotecária de um imóvel, por exemplo, dará início a um processo judicial buscando a venda do bem em praça pública e os valores obtidos com a venda serão revertidos para a liquidação da dívida existente.

Por fim, o último efeito citado por Pedro Elias Avvad é a indivisibilidade. Este direito pode ser analisado por dois viés distintos. O primeiro deles indica que, no momento da constituição do gravame da garantia real sobre determinado bem, necessariamente haverá a vinculação da coisa em sua totalidade. Significa dizer que a garantia real não pode onerar apenas parte de um bem.

Por outro lado, o segundo viés da indivisibilidade é o fato da garantia permanecer íntegra, ainda que parte da dívida seja paga. Nos termos do artigo 1.421 do Código Civil: “O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação”[8].

Dessa forma, o bem onerado pelo devedor somente será liberado quando houver o pagamento completo da dívida, independentemente de terem sido oferecidos em garantia um ou mais bens do patrimônio do devedor.

  • 2.1.3 Os Princípio da Publicidade e da Especialidade

Considerando que as garantias reais concedem direitos aos respectivos credores em face de terceiros, como é o caso do privilégio, da sequela e da excussão descritas acima, determinados requisitos devem ser obrigatoriamente observados para que tais garantias tenham eficácia, sob pena das onerações serem questionadas ou, até mesmo, desconstituídas por outros credores.

O credor de uma garantia real deve se preocupar em dar conhecimento a quaisquer terceiros interessados sobre a constituição de sua garantia. Este cuidado se justifica uma vez que em um eventual inadimplemento e consequente execução, todo credor irá utilizar-se de sua preferência frente aos outros créditos existentes. Portanto, os demais credores devem ter exata ciência dos ônus que deverão respeitar e que serão satisfeitos antes de seu próprio crédito.

Em razão disto, para que haja segurança jurídica, a constituição da garantia real depende do registro público. A legislação pátria é uníssona neste sentido. O Código Civil traz diversos dispositivos referentes à necessidade de registro, conforme artigos 221[9], 1.361, §1º[10], 1.432[11] e 1.492[12]. A Lei nº. 9.514/97 regula especificamente o registro da alienação fiduciária de bem imóvel em seu artigo 23[13]. Além da Lei nº. 6015/73 que foi criada para tratar das matérias de registros públicos.

A existência dos artigos listados acima justifica-se pelo Princípio da Publicidade, segundo o qual, os atos e fatos devem ser registrados para que se tornem de conhecimento de todos os cidadãos. Nas palavras de Afrânio de Carvalho, a publicidade possui “o duplo efeito de constituir o direito real e de anunciá-lo a terceiros. Antes da publicidade, o ato cria obrigações entre as partes, mas, uma vez efetuada, perfaz a mutação jurídico-real, investindo a propriedade ou o direito real na pessoa do adquirente e, ao mesmo tempo, tornando o direito oponível a terceiros”[14].

Seguindo os passos da lição de Afrânio de Carvalho, antes do registro há somente efeito entre as partes que fizeram parte do contrato que originou determinado ônus. O registro é requisito essencial para a constituição da garantia, tornando-a oponível erga omnes, e deverá ser feito no Registro de Imóveis ou no Registro de Títulos e Documentos, conforme determinação legal.

Certo é que para que haja eficácia, serão essenciais a publicidade e, também, a especialização. A especialização significa a individualização do bem. Tendo em vista que após o efetivo registro do gravame real sobre o bem ter-se-ão todos os efeitos já descritos acima, como o estabelecimento de preferência entre credores, é importante indicar com precisão qual a coisa tomada em garantia.

Portanto, o bem deve ser descrito de forma pormenorizada, como indica o artigo 1.424 do Código Civil: “Os contratos de penhor, anticrese ou hipoteca declararão, sob pena de não terem eficácia: IV - o bem dado em garantia com as suas especificações”[15].

E, ainda, sobre a alienação fiduciária, relacionada ao tema central do presente estudo, tem-se o artigo 66-B da Lei nº. 4728/65:

O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos. §1º Se a coisa objeto de propriedade fiduciária não se identifica por números, marcas e sinais no contrato de alienação fiduciária, cabe ao proprietário fiduciário o ônus da prova, contra terceiros, da identificação dos bens do seu domínio que se encontram em poder do devedor[16].

A Lei nº. 10.931/04 determinou no mesmo sentido, no que se refere à Cédula de Crédito Bancário, título de crédito amplamente utilizado no mercado financeiro. Diz o artigo 33 da mencionada lei: “O bem constitutivo da garantia deverá ser descrito e individualizado de modo que permita sua fácil identificação”[17].

2.2 A Cessão Fiduciária

A propriedade fiduciária como garantia é gênero que apresenta algumas espécies. Há a alienação fiduciária de bem imóvel, regulada pela Lei nº. 9514/97, alienação fiduciária de ações, regulada pela Lei das S/A, e a cessão fiduciária, prevista em diversos dispositivos legais.

Segundo Fabio Ulhoa Coelho:

A alienação fiduciária em garantia, introduzida no direito brasileiro, pela Lei de Mercado de Capitais de 1965, é espécie do gênero alienação fiduciária. É contrato hoje disciplinado pelo artigo 66-B da Lei nº. 4728/1965 (quando celebrado no âmbito do mercado financeiro ou de capitais ou em garantia de créditos fiscais ou previdenciários), arts. 22 a 33 da Lei nº. 9514/1997 (se tem por objetivo bem imóvel) e pelo Dec.-lei 911/1969 (norma processual). A propriedade fiduciária de bens móveis constituída por esse contrato é instituto de direito das coisas disciplinado nos arts. 1.361 a 1.368 do CC. Enfim, quando tem por objeto direitos creditórios ou títulos de crédito, o contrato é denominado na lei de cessão fiduciária (Lei nº. 9.514/1997, art. 17, II e art. 66-B, §4º, da Lei nº. 4728/1965).[18].

Nessa toada, a cessão fiduciária é o contrato no qual “o tomador de um financiamento transfere seus direitos de crédito ao financiador, que os adquire em caráter resolúvel, com o escopo de garantia, sendo sua titularidade limitada ao conteúdo dos créditos transmitidos até o limite do seu crédito, pois a cessão fiduciária de créditos em garantia destina-se exclusivamente à satisfação do crédito garantido e perdura somente enquanto perdurar esse crédito”[19].

E Melhim Chalhub observa:

A cessão fiduciária pode ter como objeto quaisquer “direitos sobre coisas móveis”, bem como sobre títulos de crédito em geral, “hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuído ao credor.” (Lei nº. 4728/1965, com a redação dada pela Lei nº. 10.931/04)[20].

Especificamente no que se refere à cessão fiduciária de direitos creditórios, importante observar o que diz o parágrafo terceiro do artigo 66-B da Lei nº. 4728/65:

É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada[21].

 

3. A CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS NO CONTEXTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

 

3.1 A Propriedade Fiduciária na Lei 11.101/05

A Lei nº. 11.101/05 traz um tratamento diferenciado para os credores detentores da propriedade fiduciária quando do deferimento da recuperação judicial do tomador dos recursos.

A regra geral é trazida pelo caput do artigo 49, “Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”[22]. E a exceção está transcrita no parágrafo terceiro do mesmo artigo:

Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial[23].

 

A exclusão dos credores titulares da posição de proprietário fiduciário se justifica pela própria natureza jurídica, tendo em vista que o bem não faz parte do patrimônio do devedor e sim do credor, havendo a propriedade resolúvel.

Nas palavra de Melhim Namem Chalhub:

A exclusão dos créditos objeto de cessão fiduciária do plano de recuperação decorre do fato de que esses créditos não integram o patrimônio da recuperanda, ela já os havia cedido, em caráter fiduciário, ao credor (...) Por isso é que a aplicação do §3º do art. 49, em relação aos créditos cedidos fiduciariamente, deve ser feita com observância das normas de direito material que tipificam a cessão fiduciária de créditos, segundo as quais o cessionário fiduciário se torna titular do domínio resolúvel sobre os créditos cedidos e passa a recebê-los diretamente dos devedores do cedente, estando legalmente autorizado a apropriar-se do produto dessa cobrança até o limite do crédito garantido pela propriedade fiduciária e podendo até mesmo exercer as ações judiciais a que estiver legitimado o credor originário[24].

 

3.2 Divergência Jurisprudencial

Inicialmente, a divergência jurisprudencial se pautou no fato da Lei nº. 11.101/05 não falar especificamente em cessão fiduciária de direitos creditórios, mas somente em “proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis”.

No entanto, este argumento não merece prosperar, pois os direitos creditórios se enquadram na categoria de bens móveis. Conforme lição de Caio Mario da Silva Pereira, “pode-se dizer que a classificação dos bens em móveis e imóveis tem sentido universal na acepção que absorve todo objeto de qualquer relação jurídica. Todos os bens têm lugar nela, porque, ou são móveis, ou são imóveis”[25].

Ainda, o artigo 83 do Código Civil fala “Consideram-se móveis para os efeitos legais: III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações”[26]. Assim, considerando que os direitos creditórios são bens móveis, estão inclusos no rol do §3º do artigo 49 da Lei nº. 11.101/05. Ocorre que, os valores devidos pelo sacado serão pagos ao banco, credor fiduciário, e serão utilizados na amortização da dívida.

Posteriormente, a divergência nasceu na interpretação de que a cessão fiduciária de direitos creditórios, na verdade, teria natureza jurídica de penhor, sendo consequentemente regido pelo §5º do artigo 49 e, portanto, sujeito aos efeitos da recuperação judicial. No entanto, esta figura de garantia é regulamentada em lei federal, sendo plenamente válida a cessão fiduciária de direitos creditórios.

 

3.3 Possíveis Impactos no Mercado Financeiro

A garantia de cessão fiduciária é amplamente utilizada no mercado financeiro. Aqueles que desejam tomar um empréstimo ou financiamento, na busca de melhores taxas para suas operações, oferecem em garantia os direitos creditórios que tem a receber de outras pessoas.

As garantias são determinantes para a formação do preço dos empréstimos, ou seja, da taxa de juros. E, se a própria Lei nº. 11.101/05 exclui a garantia de cessão fiduciária de direitos creditórios do efeito da recuperação judicial, por certo que as instituições financeiras irão valorizar esta garantia dada a preferência obtida em eventual cenário de quebra.

A moeda é o ativo mais líquido da economia, sendo possível concluir que a garantia de cessão fiduciária de direitos creditórios atende a esse critério, dado que, normalmente, o credor receberá os pagamentos em dinheiro na conta bancária vinculada à operação de crédito. O maior risco ficará na figura de quem for o pagador, denominado sacado, aquele que deve ao tomador os créditos que estão sendo cedidos em garantia.

Novamente, vale trazer a lição de Eduardo Fortuna:

As operações de crédito garantidas por recebíveis consolidaram-se como uma das mais utilizadas entre as empresas. Suas principais vantagens são os maiores prazos de pagamento, a redução de custos, a diversificação da carteira e o maior volume de crédito. Enquanto os prazos médios com desconto de duplicatas viram entre 30 e 90 dias, nas operações com recebíveis os prazos se estendem até 48 meses. Os custos são menores em relação às linhas tradicionais porque o risco é repassado aos investidores. Há ainda a vantagem de desonerar os balanços das empresas. Isso porque, quando repassa seus recebíveis ao banco como garantia, a empresa fica desobrigada de contabilizá-los, o que reduz seu nível de endividamento[27].

E, continua:

As taxas de juros cobradas dependerão da qualidade de risco dos recebíveis dados em garantia e do histórico de inadimplência do cliente. O referencial é o CDI mais uma taxa de juros que vai variar de acordo com risco, tamanho e prazo da operação (...) O grande desafio dos bancos para expandir essas operações é conhecer a qualidade dos recebíveis das empresas, para estruturar operações mais seguras, o que possibilitaria redução dos custos[28].

Conclui-se, então, que a liquidez da garantia de cessão fiduciária de direitos creditórios é capaz de reduzir o custo da captação de dinheiro por um tomador junto à instituição financeira escolhida.

Neste sentido, a interpretação do Judiciário contrária ao texto legal gera grandes impactos no modelo de avaliação do risco de crédito e, por conseguinte, no mercado como um todo[29]. Mesmo com a relevância da função social da empresa, não se deve buscar a manutenção de empresas sem perspectiva econômica. A decisão contrária à lei para beneficiamento de uma empresa em situação dilapidada poderá vir a prejudicar diversas empresas com boa saúde financeira, que verão a taxa de juros serem elevadas, uma vez que a garantia oferecida será interpretada de forma distinta.

A função social da empresa em um processo de recuperação judicial não pode ser concebida de forma dissociada da função social da empresa em outros contextos. Diante de um caso concreto não basta dizer-se, esta trava bancária impede a recuperação judicial. É preciso considerar também se a trava bancária não é também um instrumento de incentivo ao crédito e à atividade econômica. O pensar retrospectivo (o que esta trava bancária criou neste caso?) deve ser conjugado com um pensar prospectivo (qual o efeito de julgar-se a trava bancária ilegal sobre os futuros contratos de financiamento?). São perspectivas complementares sobre as quais o magistrado deve ponderar com cuidado[30].

 

4. CONCLUSÃO

Embora a situação de crise das empresas que pedem a recuperação judicial afete múltiplos credores, a função social não deve ser mais relevante do que a dinâmica do mercado, pois os reflexos certamente irão atingir todas as outras empresas que possuem saúde financeira.

Nessa toada, a não submissão dos créditos relativos à cessão fiduciária de direitos creditórios à recuperação judicial é medida salutar para a saúde do mercado financeiro, bem como a manutenção dos juros em patamar aceitável para o aquecimento das operações de empréstimo de capitais, seja pelo ponto de vista das instituições financeiras, seja pelo ponto de vista do tomador.

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