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Os direitos fundamentais e sua eficácia nas relações privadas sob a ótica do STF (a partir do RE 201.819)

27/07/2021 às 14:50
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Aquilo que o RE 201.819 fez foi ratificar o sentido que já vinha sendo adotado em outros casos antecedentes e solidificar as bases para que se adotasse a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Visão Geral dos Direitos Fundamentais

A ideia de direitos fundamentais engendrou-se na história recente, por meio das lutas sociais por mais direitos e fins dos privilégios de certas classes sociais. Sua justificação filosófica varia desde as concepções jusnaturalistas, em que se acredita que os direitos fundamentais são extraídos de um direito natural preexistente até as positivistas, nas quais se defende serem os direitos fundamentais fruto da positivação de regras, não tendo outro fundamento superior que não a mente humana e o dogmatismo do legislador. Diante disso, parte da doutrina entende ser desnecessária a busca por se chegar a uma definição consensual a respeito dos direitos fundamentais, porquanto além de as correntes doutrinárias partirem de pressupostos distintos, levando-as a chegar a conclusões divergentes, também se revela um esforço de pouco ou nenhum resultado prático.

Características dos Direitos Fundamentais

Entretanto, a conclusão distinta chega a doutrina quando se trata da relevância prática da teorização dos atributos dos direitos fundamentais. Gilmar Mendes e Gonet Branco, por exemplo, dizem em seu Curso de Direito Constitucional (2018, p. 205): “Descobrir características básicas dos direitos fundamentais, contudo, não constitui tarefa meramente acadêmica e pode revelar-se importante para resolver problemas concretos. O esforço é necessário para identificar direitos fundamentais implícitos...”. Destarte, diversas características dos direitos fundamentais foram sendo extraídas pela doutrina, dentre as quais é possível destacar: a indisponibilidade, a constitucionalização, a imprescritibilidade a relatividade e a historicidade.

O primeiro atributo supracitado (indisponibilidade) diz respeito à impossibilidade de abrir-se mão de um direito fundamental, seja vendendo-o, seja renunciando-o. Isso se deve a considerar-se que os direitos fundamentais são inerentes ao indivíduo humano, sendo dele indissociável. “Outra característica associada aos direitos fundamentais diz com o fato de estarem consagrados em preceitos da ordem jurídica. Essa característica serve de traço divisor entre as expressões direitos fundamentais e direitos humanos.” (Branco e Mendes, 2018, p.215). Ou seja, os direitos fundamentais têm a peculiaridade de estarem previstos na ordem jurídica — na Constituição Federal, no caso brasileiro —, a fim de permitir que os seus titulares possam opô-los a terceiros. Isso os distinguiria dos direitos humanos, os quais ora não estão previstos em nenhum ordenamento — tratando-se, logo, de uma ideia —, ora são mencionados em documentos internacionais, o que não lhes garante grande eficácia prática dentro dos Estados Nacionais. A imprescritibilidade, terceiro aspecto supramencionado, refere-se à impossibilidade de se perder direitos fundamentais, isto é, ainda que a pessoa não esteja fazendo uso desses por um longo período, não haverá prescrição, decadência ou qualquer perda superveniente do direito por desuso.

Outrossim, tem-se ainda o traço da relatividade desses direitos, ou melhor, não se pode colocar nenhum direito como absoluto. Em nosso ordenamento jurídico, nem sequer o direito à vida — o qual, por vezes, é tido como o principal direito fundamental — é tido como absoluto, o que pode ser observado na própria Lei Maior em seu artigo 5º, inciso XLVII, alínea a, a qual diz: “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX” (Brasil, 1988), abrindo exceção para o direito à vida. A última característica — a qual decorre da anterior — é a historicidade, que é bem expressa no seguinte trecho do Curso de Direito Constitucional de Gilmar Mendes e Gonet Branco (2018, p. 211): “Se os direitos fundamentais não são, em princípio, absolutos, não podem pretender valia unívoca de conteúdo a todo tempo e em todo lugar.”, os autores continuam ainda dizendo: “Por isso, afirma-se que os direitos fundamentais são um conjunto de faculdades e instituições que somente faz sentido num determinado contexto histórico.” (Branco e Mendes, 2018, p.215). Destarte, nota-se que os direitos fundamentais são historicamente erigidos, não fazendo sentido em certos momentos históricos, ao passo que em outros são de fundamental importância. Exemplo disso é o direito de acesso à internet, o qual já foi algo considerado irrelevante, posteriormente, uma regalia e hoje é essencial a todos, erigindo-se ao patamar de direito fundamental.

Ademais, o aspecto da historicidade leva os direitos a se modificarem e se redesenharem ao longo do tempo. Isso pode ser observado, por exemplo, na amplitude da eficácia dos direitos fundamentais, os quais outrora eram oponíveis apenas ao Estado, obrigando-lhe a não intervir no mundo privado. Esse fenômeno ficou conhecido como eficácia vertical dos direitos fundamentais, o qual se expressava em freios para que o poder público não abusasse de suas prerrogativas ao interagir com os cidadãos. Hodiernamente, com a evolução da teoria dos direitos fundamentais, emergiu também o conceito de eficácia horizontal desses. Ou seja, ampliou-se o âmbito de incidência dos direitos fundamentais também para a esfera do regime jurídico privado, a fim de se atenuar a desigualdade de forças por vezes existente entre dois polos de uma relação privada. Dessa forma, com a presença de regras de direito público no âmbito privado, exigências de respeito à isonomia, ao contraditório, à ampla defesa e aos princípios deles decorrentes começaram a se fazer presentes nas relações civis.

Diante do exposto, nota-se que que situações de desigualdades e abusos contra um indivíduo podem ocorrer não somente por parte do poder público, mas também por outros particulares. Por isso, a aplicabilidade dos direitos fundamentais ampliou-se também para essa esfera. Isto é, reconheceu-se que a autonomia da vontade não podia ser considerada em termos absolutos, uma vez que nem sempre os particulares estarão em condições iguais para negociar. Por exemplo, em casos de conflito, um consumidor não possui poder de barganha igual ao de uma multinacional da qual consome um produto, assim como não o tem um funcionário de baixa renda de uma grande empresa frente a essa ou um associado perante a associação da qual pertence. Logo, tornou-se perceptível que os direitos fundamentais deveriam também se fazer presentes nas relações civis de modo a se evitar injustiças e abusos nessas.

Caso Concreto

Um caso bastante notório a respeito do assunto, o qual é inclusive considerado um leading case no Brasil, é o recurso extraordinário 201819, julgado em 2005. Nele, uma sociedade civil sem fins lucrativos (União Brasileira de Compositores, UBC) expulsou um de seus membros sem lhe garantir o devido processo legal. Nesse sentido, consta nos autos que a UBC, com o intuito de apurar as infrações estatutárias cometidas por um de seus membros, designou uma comissão especial, a qual, ao reunir-se, limitou-se a analisar os documentos trazidos pelo secretário da sociedade; sem, contudo, oportunizar o contraditório e nem a ampla defesa ao acusado. Posteriormente, a entidade decidiu excluir o membro da sociedade, o que lhe fez acionar o judiciário em busca de seu direito a um devido processo constitucional.

À vista disso, a suprema corte — seguindo tendência internacional, a exemplo da Alemanha com o caso Lüth, apreciado pela Bundesverfassungsgericht, o tribunal federal constitucional alemão — concluiu que “os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.” (STF, 2005, on-line). A partir desse precedente, tornou-se perceptível que o Brasil se amoldava à tendência internacional de expandir a eficácia dos direitos fundamentais também para as relações dirigidas pelo regime jurídico privado.

Observa-se, assim, que no caso em apreço almejou-se resguardar os direitos fundamentais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Isso está expresso especialmente em um trecho do recurso extraordinário 201819 o qual diz que a necessidade de vínculo com a UBC e a dependência desse para o exercício da profissão “legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88).” (STF, 2005, on-line). Inicialmente, para se compreender o que pretendeu a decisão, é imperativo assimilar o que se entende por princípio do devido processo legal, o qual engloba todos os demais princípios processuais, ou ainda, nas palavras de Renato Brasileiro de Lima, em seu Manual de Processo Penal:

“Com efeito, o exame da cláusula referente ao due process of law permite nela identificar alguns elementos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucional, destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ex post facto; f) direito à igualdade entre as partes; g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; h) direito ao benefício da gratuidade; i) direito à observância do princípio do juiz natural; j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); l) direito à prova; e m) direito de presença e de “participação ativa” nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes.125” (BRASILEIRO, 2020, p. 83-84)

No entanto, fato é que nem tudo aquilo que está incluído nessa cláusula geral pode ser aplicado ao caso concreto. Portanto, pode-se depreender que, aquilo que em verdade objetivou-se dizer foi que o processo, ainda que no âmbito privado, não pode ser conduzido de modo arbitrário, devendo assegurar garantias mínimas às partes, tais como os direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa.

Nesse contexto, definiu o supremo primeiramente que seria necessário assegurar ao membro expulso da UBC o direito fundamental do contraditório com todos os seus elementos, quais sejam: direitos à informação, à participação e à paridade de tratamento (ou paridade de armas). Dessa maneira, é assegurado a parte ter ciência do que ocorre no processo e daquilo que lhe diz respeito ou que pode prejudicá-la (direito à informação). Além disso, “Também deriva do contraditório o direito à participação, aí compreendido como a possibilidade de a parte oferecer reação, manifestação ou contrariedade à pretensão da parte contrária.” (BRASILEIRO, 2020, página 56). Por derradeiro, origina-se ainda desse direito fundamental a obrigatoriedade se conceder iguais oportunidades de manifestação e de poder de convencimento sobre quem prolatará eventual decisão (paridade de armas).

Por conseguinte, como “o direito de defesa está ligado diretamente ao princípio do contraditório” e como “a defesa garante o contraditório e por ele se manifesta” (BRASILEIRO, 2020, página 58), perquiriu-se também asseverar o direito à ampla defesa ao membro expulso da UBC. Contudo, nesse caso concreto deve-se entender esse direito em termos, visto que nem todos os seus elementos são de incidência cogente no caso concreto. Isto é, esse direito fundamental abrange tanto a defesa específica (técnica) feita por profissional da advocacia regularmente inscrito na OAB, quanto a defesa genérica (material ou autodefesa) feita pela própria pessoa. Todavia não seria necessário que o membro da UBC constituísse advogado (o que, porém, deveria ser-lhe facultado), sendo preciso apenas oportunizar a ele a possibilidade de defender-se, conforme colocou o STF.

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Interpretação do STF a Respeito dos Direitos Fundamentais

Diante do exposto, nota-se que o Supremo Tribunal Federal, ao lidar com a questão de direitos fundamentais —em especial no caso supracitado—, faz uso de uma série de princípios informadores da hermenêutica constitucional. Dentre esses, aquele que mais se destaca é o da máxima efetividade, uma vez que esse princípio propõe que o intérprete busque dar a maior efetividade possível à norma constitucional. Isso se sobressaiu em toda a decisão do STF no recurso extraordinário 201819, especialmente no seguinte trecho: “O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados.” (STF, 2005, on-line), em que a corte expressamente buscou dar a maior efetividade possível aos direitos fundamentais do associado expulso sem o devido processo legal.

Outros dois princípios informadores da hermenêutica constitucional perceptíveis no caso em apreço, os quais —em questões que levem em conta direitos fundamentais— são de suma importância nos julgamentos do STF, são o da supremacia da constituição e o da força normativa da constituição. O primeiro pode ser visto quando a corte ao julgar o caso concreto diz que o direito privado deve se submeter ao direito constitucional do devido processo legal, já que esse direito está expresso na Lei Maior e os demais ramos do direito lha são sujeitos. O segundo princípio fica expresso quando o tribunal confere aplicabilidade, isto é, força normativa aos princípios do contraditório e ampla defesa, os quais à primeira vista não poderiam ser aplicados nessa situação específica, porquanto são —na classificação de José Afonso da Silva— normas de eficácia limitada definidoras de um princípio programático e dependeriam de norma regulamentadora para serem aplicadas em um caso concreto como esse.

Outrossim, faz-se uso também do princípio informador da harmonização. Esse revela-se de suma relevância para os julgamentos do STF envolvendo direitos fundamentais, uma vez que esse expressa que o leitor da constituição deve interpretar a norma de modo a não permitir que sua aplicação leve à anulação integral de bens jurídicos por essa não abrangida. No caso em apreço, nota-se esse princípio pelo fato de o STF ter de sopesar a autonomia privada e os direitos ao contraditório e à ampla defesa, aplicando os últimos; sem, todavia, sacrificar o primeiro de maneira absoluta.

Por fim, é notório que — não apenas no caso em análise, mas também na maioria daqueles que envolvem direitos fundamentais — a corte suprema brasileira faz largo uso de dois métodos de hermenêutica constitucional para solucionar conflitos envolvendo direitos fundamentais, quais sejam: o científico-espiritual de Rudolf Smend e o normativo-estruturante de Friedrich Müller. O primeiro se expressa quando a corte, ao solucionar os casos, busca atrelar-se à razão inspiradora (ao espírito) da Magna-Carta, a fim de se chegar a uma interpretação plausível da norma. Assim, quando — no RE 201819 — se estende a eficácia do contraditório e da ampla defesa para além do direito público, a pretexto de que o objetivo da norma é a proteção do indivíduo e a garantia da igualdade em relações jurídicas desequilibradas, está-se usando o método científico-espiritual. Já o segundo recurso de interpretação constitucional torna-se manifesto no instante em que o STF considera que o texto legal é apenas uma pequena parcela do sentido da constituição e que cabe ao intérprete ir além do texto legal, a fim de se alcançar o verdadeiro sentido de uma norma constitucional.

Conclusão

Destarte, esse caso é um leading case, visto que assegurou a garantia da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no Brasil. No entanto, fato é que algumas decisões anteriores já indicavam semelhante tendência em nosso país. São exemplos disso os recursos extraordinários 158215 e 161243. No primeiro buscou-se resguardar, assim como no caso em análise, o direito ao contraditório e à ampla defesa no instante de exclusão de associado de certa pessoa jurídica. Já, no segundo, foi garantido o direito fundamental da isonomia, a fim de impedir discriminações de funcionários brasileiros em relação aos franceses em uma empresa privada francesa. Portanto, percebe-se que aquilo que o RE 201819 fez foi ratificar o sentido que já vinha sendo adotado em outros casos antecedentes e solidificar as bases para que no Brasil se adotasse a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Por fim, pode-se considerar que os direitos fundamentais, a partir dessa nova dimensão (horizontal) de aplicação em nosso país, têm mais bem atingido seu objetivo de resguardar o cidadão e garantir-lhe uma vida digna na sociedade.


Referências bibliográficas:

MENDES, G.; BRANCO, P. Curso de Direito Constitucional. 13ª Edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018;

BRASILEIRO, Renato. Manual de Processo Penal. 8ª Edição. Salvador- Bahia: Editora JusPodivm, 2020;

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 22 de novembro de 2020;

STF. Recurso Extraordinário: RE 158215- RS-Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Marco Aurélio. DJ: 30-04-1996. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur119404/false>. Acesso em: 22 de novembro de 2020;

STF. Recurso Extraordinário: RE 161243- DF- Distrito Federal. Relator: Ministro Carlos Velloso. DJ: 29-10-1996. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur106108/false>. Acesso em: 22 de novembro de 2020;

STF. Recurso Extraordinário: RE 201819- RJ- Rio de Janeiro. Relator: Ministro Ellen Gracie. DJ: 11-10-2005. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur7704/false>. Acesso em: 22 de novembro de 2020.

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Sobre o autor
Felipe de Castro Santos

Graduando de direito na Universidade de Brasília (UnB) Instagram: castrosantosfelipe0809 email: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Felipe Castro. Os direitos fundamentais e sua eficácia nas relações privadas sob a ótica do STF (a partir do RE 201.819). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6600, 27 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91969. Acesso em: 24 abr. 2024.

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