Neopopulismo, mentiras e política

21/07/2021 às 20:49
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O conceito de populismo é controverso, não sendo diferente o de neopopulismo, mas sua ocorrência é real e concreta e resultante de múltiplos fatores, como os atores do sistema político, tanto de quem governa como de quem elege e apoia o governo.

A mentira como estratégia política e, como debate não baseado em fatos integra o farto arsenal dos atuais líderes populistas e autoritários do mundo. A infundada fonte de credibilidade perante seus eleitores não parece afetá-los, pois o emocional supera o racional. A construção de pensamento crítico e imparcial incluindo mesmo a avaliação da história parece não pertencer à cultura brasileira[1].

Sem dúvida, o populismo é estilo de fazer política e começa com o princípio da identificação do líder com o grupo. Assim como Trump representava o americano médio, Bolsonaro, por sua vez, espelha o brasileiro médio[2], com toda dose de irreverência e desrespeito à liturgia do cargo.

Nem sabe exatamente o que significa a república e a democracia, tanto que vocifera que, se não ganhar as futuras eleições, implementará um golpe. Alega ter apoio integral das Forças Armadas... só se for dos militares que integram o atual governo[3].

O líder populista constrói a identidade com o seu público e, seus objetivos não são para ir contra uma elite, nem o status quo reinante. Apenas constrói discursos sedutores. A atual ciência política encara essa nova geração, enxergando o populismo não, propriamente, como método, mas como ideologia.  Trata-se de uma visão de mundo, de como decodifica-se a realidade e, pretende interagir.

Afinal, a ideologia do populismo[4] traz um pacote hermético e autossuficiente de ideias e conceitos e, ainda, pressupõe que existe um povo homogêneo e, aponta quem quer que represente outros anseios é automaticamente encarado, como não democrático e subversivo.

Enfim, não representa o povo. A traição promovida pelo populismo à democracia constrói novos totalitarismos[5] com as mais vetustas práticas. Um verdadeiro debate que se pretenda ser democrático, os argumentos, as regras do jogo se mostram apresentadas e feitas para impedir o império do senso comum[6]

Enfim, o líder populista se recusa peremptoriamente seguir as regras do jogo, sempre se mostra grosseiro, despreparado e violento. E mente compulsivamente, além de ser explicitamente preconceituoso, é racista, xenófobo, homofóbico e até chauvinista[7].

Enquanto a mentira comum tem o escopo de ocultar algo indesejável, ou apenas, justificar uma errônea decisão política, as mentiras populistas possuem outra natureza, pois não se fulcram em fatos para sustentar suas convicções. Apenas se baseiam em impressões, instintos e, em histórias que ouviu falar, nem sabe onde. E, suas justificativas sentimentais são autossuficientes.

O novo populismo, além da verve autoritária, reduz o diálogo à troca de impropérios e, ignora o multiculturalismo e a sociedade heterogênea. A linguagem dialética bárbara e grosseira chega ser caricatural e, rejeita qualquer debate que, por princípio, reconheça a heterogeneidade da sociedade humana. Não reconhece a diferença.

Os neopopulistas valorizam a compreensão instantânea do outro além da clareza simplista. O principal objetivo dos populistas é a perpetuação no poder, e, a fim de atingir seus objetivos, eles encontraram, no negacionismo, uma poderosa ferramenta para tanto.

Os populistas têm conquistado um espaço de destaque no debate público e, cada vez mais ocupando posições centrais de poder. Destaque-se conforme esclarece Fancelli: "Ao mesmo tempo, o negacionismo surgiu na forma de teorias da conspiração, fake news[8] e da rejeição de fatos que basicamente haviam se estabelecido como parte do senso comum. Em um período em que a segurança em relação a vacinas, ao aquecimento global e até mesmo à esfericidade da terra[9] são questionados, precisamos estabelecer uma relação direta entre esses dois fenômenos”.

A mentira populista não se importa de ser percebida e até se glorifica pois o líder vem servir ao povo e utiliza símbolos que sinalizam com a repulsa à diversidade e, apela somente aos instintos, nunca à razão e quiçá ao cérebro[10].

O crescimento do (neo) populismo de direita é um fenômeno que acontece há, aproximadamente, trinta anos e, que está relacionado com crises sociais e políticas, bem como com mudanças causadas pela globalização.

O neopopulismo ainda finca alicerces com hordas religiosas e, quanto mais ortodoxas, um tanto melhor. Quem não está ao lado de Deus, é automaticamente o Diabo... E, parodiando Sartre: “o inferno são os outros”.

A frase “o inferno são os outros”, então, é autoexplicativa. Os outros, assim como eu, são livres para construir a sua essência e isso, inevitavelmente, gera conflitos que afetam exatamente a liberdade alheia. Para Sartre, a presença de uma liberdade aniquila a nossa própria e deixa ver nesta, apenas a nossa própria imagem como objeto, o que nos enclausura numa sombria solidão.


Referências

ALVES, Ricardo Luiz. O Estado Totalitário Contemporâneo. Uma breve reflexão histórica. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6615/o-estado-totalitario-contemporaneo   Acesso em 22.5.2021.

CARDOSO, F. H., “As tradições do desenvolvimentismo associado”, in Estudos CEBRAP, nº 8, abril/maio/jun. 1974.

CRUZ, Edson. Entrevista. O fenômeno das notícias falsas. Revista PUCMINAS Disponível em: http://www.revista.pucminas.br/materia/fenomeno-noticias-falsas/   Acesso em 22.5.2021.

DEBERT, Guida Grin. Ideologia e Populismo. Adhemar de Barros, Miguel Arraes, Carlos Lacerda, Leonel Brizola. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/b23ds/pdf/debert-9788599662724.pdf  Acesso em 22.5.2021.

DÓRIA, Pedro. Meio. Edição de Sábado (de 21.5.2021): A mentira do populista dá credibilidade. Disponível em: https://premium.canalmeio.com.br/edicao/127945/ Acesso em 22.5.2021.

FANCELLI, Uriã. Populismo e Negacionismo: O Uso do Negacionismo como Ferramenta para a Manutenção do Poder Populista. Curitiba: Editora Appris, 2021.

NERVO, Alexandre Antônio. O (neo)populismo como estratégia de comunicação política. Disponível em: http://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/article/viewFile/384/262 Acesso em 22.5.2021.

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Tradução de Alcione Araújo e Pedro Hussak. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

WEFFORT, F. C., “Política de Massas”, in Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.


[1] A caracterização do populismo não está relacionada somente à realidade brasileira do período de 1930-1964, mas é usada também para explicar as experiências históricas de outros países da América Latina, como o peronismo (Argentina), o cardenismo (México) e o aprismo (Peru). No Brasil, o grande símbolo do populismo foi Getúlio Vargas, sobretudo durante o período da Era Vargas de 1930 a 1945.

[2] Infelizmente, o brasileiro médio é entendido como aquela que não foi à escola ou recebeu apenas poucos anos de estudo, apesar de ter recebido a educação formal direcionada para o individualismo, ou seja, mercado de trabalho ou carreira profissional, só se preocupa com as conquistas materiais e individuais, e com os princípios da meritocracia tão arraigados e, que se informe e compreende a realidade do país e do mundo a partir da velha mídia, especialmente, via rede globo embalada na intransigente defesa do neoliberalismo e do mérito pessoal. Tal formação educacional do brasileiro médio não busca nem se preocupa com a cidadania plena.

[3] Se é bazófia, jactância ou mero descuido não se sabe, mas presenciamos diversas cenas constrangedoras, principalmente, em manifestações públicas do governante que mais se parece com um comandante de programa de auditório de domingo.

[4] Populismo é um conjunto de práticas políticas que se justificam num apelo ao "povo", geralmente contrapondo este grupo a uma "elite".  Não existe uma única definição do termo, que surgiu no século XIX e tem obtido diferentes significados desde então. Poucos atores políticos descrevem a si mesmos como "populistas", e no discurso político o termo geralmente é aplicado a outros pejorativamente.  Em filosofia política e nas ciências sociais, diferentes definições de populismo têm sido usadas. O termo também é usado de forma variada entre países e contextos políticos diferentes. Assim, o "povo", como categoria abstrata, é colocado no centro da ação política, independentemente dos canais típicos da democracia representativa. Há exemplos típicos são o populismo russo do final do século XIX, que visava transferir o poder político às comunas camponesas por meio de uma reforma agrária radical ("partilha negra"), e o populismo americano, que, na mesma época, propunha o incentivo à pequena agricultura através da prática de uma política monetária baseada na expansão da base monetária e do crédito (bimetalismo). Enquanto ideologia, o populismo não está tampouco ligado obrigatoriamente a políticas econômicas de caráter nacionalista: na América Latina dos anos 1990, governantes populistas combinaram políticas liberais de desregulamentação e desnacionalização com uma política social assistencialista, herdada do populismo mais tradicional dos anos 1930 naquilo em que tais políticas não contrariavam as práticas neoliberais. Isso ocorre, por exemplo, no Peru, durante a ditadura de Alberto Fujimori.

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[5] O Estado totalitário contemporâneo não é a mera estadolatria combinada com a onipotência duma determinada ideologia, isto é, a expansão desenfreada do Estado em detrimento da Sociedade como um todo e do cidadão comum em particular, expansão essa alicerçada numa determinada ideologia. O que caracteriza o Estado totalitário contemporâneo é o controle repressivo e, regra geral, difuso do Estado e do seu aparelho burocrático sobre a Sociedade e sobre o indivíduo mediante o monopólio estatal dos componentes organizacionais básicos da Sociedade (produção e difusão da cultura popular, aí incluindo os meios de informações e de educação; controle dos mecanismos de mobilidade social; controle sobre a estrutura de transportes de massa e da estrutura de saúde pública; etc.).  Este controle estatal sobre a sociedade é permanente, e, geralmente, pretende ser o mais onisciente possível quanto à vida diária do cidadão.

[6] O interessante artigo de Chico Alencar intitulado “Império do Senso Comum”, disponível em: http://www.eliomar.com.br/imperio-do-senso-comum/

[7] Nicolas Chauvin foi um soldado francês condecorado por Napoleão Bonaparte por sobreviver a vários combates, severamente mutilado, depois de ser ferido 17 vezes. Tornou-se uma lenda para os franceses, até que as comédias escrachadas de vaudeville começaram a ridicularizar sua ingenuidade e fanatismo, dando origem ao termo que hoje é muito utilizado para caracterizar o sentimento ultranacionalista que leva os indivíduos a odiar as minorias e perseguir os estrangeiros. Na década de 1970, as feministas dos Womens`s Lib deram uma conotação mais abrangente ao termo, ao chamar os machistas de “porcos chauvinistas”.

[8] Um estudo recente, divulgado pelos pesquisadores Hunt Allcott (Universidade de Nova York) e Matthew Gentzkow (Universidade de Stanford) publicado no Journal of Economics Perspectives diz que elas significam todas as informações difundidas por meios de comunicação que se disfarçam de veículos jornalísticos e que difundem informação comprovadamente incorreta para enganar seu público. Assim, vale pensar que fake news não se trata de qualquer boato espalhado por rede social, visto que são um fenômeno mais específico: são sites que pretendem enganar seus leitores publicando propositadamente informações incorretas como se fossem verdade.  Essa definição mais precisa vem a excluir, por exemplo, os sites satíricos, que fazem paródia do jornalismo para explicitamente fazer piada, como o Sensacionalista ou The Onion – não são fake news porque não pretendem enganar, é bastante claro que é piada, exagero e ficção. Essa definição também exclui sites de jornalismo que fazem um trabalho sério, mas que podem ter cometido erros, como ocorre com qualquer veículo jornalístico. O fato de o jornal The New York Times ter publicado uma notícia incorreta não faz desse site um veículo de fake news, até porque a informação incorreta pode ser corrigida, e o veículo não tem como objetivo desinformar. Agora, quanto mais erros um veículo comete, mais sua credibilidade resta comprometida. A partir de um ponto, seu público pode deixar de confiar em suas informações, e não diferenciar suas apurações confiáveis das questionáveis. É a dinâmica da cultura da desinformação.

[9] O terraplanismo é teoria refutada pela ciência há dois mil anos e, mesmo assim, há cerca de onze milhões de apoiadores no país. Portanto, cerca de sete por cento dos brasileiros acreditam que a Terra é plana. Basicamente, os terraplanistas consideram que a superfície da Terra é plana, que a Terra está parada (não se move), o Sol e a Lua seriam menores e mais próximos do que os cientistas dizem (e o Sol e a Lua se moveriam em seus próprios padrões).

[10] Segundo Kurt Weyland apud Nervo, a versão contemporânea do populismo apresenta menor nível de institucionalização do que sua manifestação clássica. Assim, o neopopulismo privilegiaria a esfera privada, como caminho para atingir os seguidores, deixando em segundo plano as manifestações coletivas na esfera pública. As performances midiáticas, especialmente, a televisiva, promovem o sentimento de aproximação individual ao líder, arrefecendo a necessidade organizacional.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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