A última centúria assistiu à gênese e ao desenvolvimento de uma nova espécie de estado, o estado totalitário.
As principais características históricas do estado totalitário contemporâneo são: a)a ausência de alternância real do poder político, ausência essa conjugada, via de regra, com um sistema de partido político único; b)a presença de uma ideologia política que delimita e explica totalmente toda a realidade social, ou pelo menos pretende delimitar e explicar na sua totalidade com base em premissas e argumentos pretensamente científicos (1); e c)a existência de um aparelho burocrático altamente desenvolvido e de uma estrutura administrativa complexa a serviço do Estado e não a serviço do indivíduo e da Sociedade.
A partir das características acima mencionadas, entendo que o elemento de destaque no estado totalitário contemporâneo não é a mera estadolatria combinada com a onipotência duma determinada ideologia, isto é, a expansão desenfreada do Estado em detrimento da Sociedade como um todo e do cidadão comum em particular, expansão essa alicerçada numa determinada ideologia. O que caracteriza o estado totalitário contemporâneo é o controle repressivo e, regra geral, difuso do Estado e do seu aparelho burocrático sobre a Sociedade e sobre o indivíduo mediante o monopólio estatal dos componentes organizacionais básicos da Sociedade (produção e difusão da cultura popular, aí incluindo os meios de informações e de educação; controle dos mecanismos de mobilidade social; controle sobre a estrutura de transportes de massa e da estrutura de saúde pública; etc.). Este controle estatal sobre a Sociedade é permanente, e, via de regra, pretende ser o mais onisciente possível quanto à vida diária do cidadão.
Nos estados totalitários dos dias atuais, as eleições governamentais de todos os níveis (tanto para o Poder Executivo, quanto para o Poder Legislativo), quando existem, são maculadas por fraudes das mais diversas espécies, constituindo-se apenas numa mera fachada para a perpetuação do status quo político e social existente.
Os partidos políticos existentes nesses estados totalitários, quando existem, não passam de meras máquinas políticas vinculadas ao sistema burocrático estatal, máquinas políticas essas destituídas de um programa político concreto, real, visando os interesses da nação e da sociedade como um todo. Tais organismos políticos tem por função principal reforçar o controle político sobre a população, sendo que os seus membros acabam por constituir uma fração da elite burocrática do estado totalitário.
Neste sentido, o status político e social de membro do partido político oficial é suplementado por sanções negativas, não só a nível político, como também a nível social e até profissional: a expulsão do partido freqüentemente resulta na perda de privilégios sociais e até no rebaixamento de função no emprego ou mesmo a sanção extrema, qual seja a própria demissão do emprego público.
Em conseqüência de tal situação acima descrita não é de se surpreender que os partidos políticos que dão suporte aos estados totalitários contemporâneos sejam, tão-somente, gigantescas estruturas políticas artificialmente infladas no tocante a quantidade total de seus membros porquanto servem não só como canal de ascensão social e política como também mecanismos de preservação de inúmeros privilégios dos respectivos membros, notadamente aqueles insertos na cúpula partidária. (2)
É oportuno ressaltar que uma outra função essencial dos partidos políticos existentes nos estados totalitários contemporâneos é servir como um veículo de comunicação entre a elite governante e o povo mais no sentido descendente e menos no sentido ascendente, ou seja, os partidos políticos nos estados totalitários contemporâneos se constituem menos num veículo de concretização das aspirações e interesses da sociedade como um todo e mais num veículo de transmissão de propaganda ideológica governamental e de controle político sobre a população em geral.
Outro mecanismo de controle e de sobrevivência dos estados totalitários modernos é o severo controle exercido sobre o Poder Judiciário. Apesar de ser um poder estatal formalmente independente, o Poder Judiciário, nos estados totalitários contemporâneos, se depara com mecanismos legais e, sobretudo, extra-legais que tolhem, na prática, a sua independência funcional, impedindo, desta maneira, de exercer o seu papel de agente de proteção dos direitos e garantias individuais e sociais. O juiz, neste diapasão, é um agente político desprovido de autoridade prática para coibir a atuação abusiva do aparelho estatal contra o cidadão.
Nos estados totalitários atuais, os processos judiciais não só contra os dissidentes políticos propriamente ditos, como também contra todos aqueles que, de alguma forma, ouçam desafiar o status quo político e social, é um simulacro do devido processo legal. Tal constatação histórica e jurídica, ainda que óbvia a primeira vista, não pode deixar de ser destacada.
Freqüentemente as ideologias totalitárias que conformam tal espécie de estado encontram ampla ressonância entre as massas populares, na medida em que tais ideologias contém propostas ou teses com uma elevada dose de salvacionismo social e econômico, quer em função dos problemas enfrentados pela coletividade popular (como o Nazismo), quer tendo como referencial uma determinada classe social específica (como no caso do Comunismo). Nesta medida, a realidade do cotidiano é diluída a fim de que possa ser interpretada à luz da ideologia.
A aplicação de múltiplas técnicas de propaganda distorcem conscientemente a realidade dos fatos, apresentando a informação de acordo com os interesses do estado totalitário e, em especial, dos interesses das elites detentoras do poder político e econômico. Destarte, os oligarcas dos estados totalitários contemporâneos, regra geral, se locupletam, social e economicamente, as custas não só da miséria econômica geral a que está submetida grande parte da população, como também, e sobretudo, da apatia cultural e política de amplos segmentos populares.
Ao contrário dos estados despóticos da Antigüidade Clássica e da Época Moderna, centrados na figura do tirano absolutista ou do monarca absolutista, não raro apoiado somente no seu carisma pessoal para se manter no poder, o estado totalitário contemporâneo, ainda que apresente, via de regra, sob o comando de um líder carismático de grande apelo demagógico junto a grande parcela da população, não pode prescindir de uma ideologia política que lhe dê integral suporte com a finalidade de manter continuamente o apoio de uma ampla maioria das massas populares. Em todos os casos, independentemente do espectro político em que estão situadas (esquerda ou direita), as ideologias políticas que dão suporte ao estado totalitário contemporâneo apresentam um ponto em comum, qual seja a de impor o grupo político ou a coletividade cultural ao indivíduo em nome de inexoráveis leis do "destino histórico", leis essas tidas como auto-evidentes e de aplicação universal. (3)
Neste sentido, sob os mais diversos pretextos e considerações, tais como "conferir uma racionalização administrativa mais eficaz aos recursos sócio-econômicos da Coletividade" e "a superação dos antagonismos internos advindos dos conflitos de classe" com base na ditadura da classe operária (no caso dos regimes comunistas ao estilo soviético), ou a "depuração racial da Nação Ariana" (como no caso dos regimes nazi-facistas da Itália e da Alemanha), os regimes totalitários contemporâneos acabaram por instituir uma estrutura burocrática alicerçada na padronização e regularidade administrativa que se pretende açambarcar a totalidade da vida social do estado. Tal situação não implica em dizer que a máquina da burocracia estatal dos estados totalitários se constitua numa estrutura onipotente, mas tão-somente que, no decorrer de sua rotina diária, ela se apresenta comprometida com a visão ou ideal oficialmente aceita de estabelecer uma determina "ordem" social, política e econômica, independente de quaisquer restrições morais ou éticas de caráter pessoal ou social que os indivíduos que compõem tal estrutura burocrática possam ter enquanto indivíduos.
Apesar disso, os elementos constitutivos do aparelho burocrático dos estados totalitários contemporâneos, tanto em termos dos próprios órgãos administrativos, quanto em termos das pessoas que integram os órgãos em tela, apresentam, regra geral, um feedback negativo no tocante quanto à implementação ou, como querem alguns cientistas políticos, ao processamento das decisões advindas do centro decisório de poder.
Um singelo, e recente exemplo histórico, desse feedback negativo do aparelho burocrático do estado totalitário contemporâneo encontra-se relatado pelo jornalista francês Patrick Meney (correspondente da France Press em Moscou por vários anos durante o auge do regime soviético) no seu revelador livro "A Kleptocracia". (4)
O aparelho burocrático da então U.R.S.S., a despeito das estatísticas oficiais triunfalistas e apologéticas, se mostrou incapaz de satisfazer as necessidades básicas de uma imensa população sacrificada, o que resultou, como bem observado pelo supramencionado jornalista francês, na constituição de uma sociedade paralela àquela sociedade oficial, sociedade real onde imperava a desfaçatez individual, a artimanha, o suborno e um imenso mercado negro destinado a "vender facilidades" à aludida Sociedade em contraposição à "Sociedade Socialista" que só existia no imaginário oficial soviético.
Em conformidade com as considerações feitas acima é importante destacar que é de interesse do núcleo decisório das elites dos regimes totalitários contemporâneos desenvolver um rígido sistema de controle e manipulação do fluxo de informações a serem "digeridos" pela Sociedade Civil numa escala e modalidade inimaginável pelas sociedades afluentes dos estados democráticos, onde a liberdade de informação é um dos seus alicerces mais importantes.
Se de um lado há uma tendência generalizada ao uso da censura ampla e irrestrita à todas as espécies de produção, circulação e armazenamento de informações ou notícias e de produção artística ou cultural existentes no seio da Sociedade contrária aos interesses do regime totalitário, por outro lado existe, concomitantemente a essa censura irrestrita, a manipulação sobre o complexo de valores culturais e sociais da Sociedade Civil, não raro mediante a deformação subliminar da memória cultural popular, com o objetivo primordial de direcionar politicamente e culturalmente a Sociedade Civil para os objetivos do regime totalitário, em especial a própria legitimação do regime totalitário.
Faz-se necessário lembrar que tal manipulação de informações e da apropriação da cultura popular em proveito do regime totalitário opera, regra geral, através do uso dos modernos meios de comunicação de massa, tais como o rádio, o cinema, jornais e, mais recentemente, a televisão. De fato, os meios de comunicação de massa num regime totalitário cooptam e/ou manipulam, de forma explícita ou implícita, as tradições populares consoante os interesses do regime.
Outra questão que se deve levar em conta no tocante aos estados totalitários contemporâneos é a forma ou modalidade de tratamento da figura do ditador frente às camadas populares, em especial no tocante ao assim denominado "culto a personalidade".
Regra geral, a propaganda oficial procura passar uma imagem idealizada dos ditadores desses estados totalitários. Normalmente tentam "vendê-los" como figuras sobre-humanas, dotados de uma visão política e social ampla, de um tino administrativo infalível, etc. Na verdade, os ditadores dos estados totalitários atuais, no seu âmago, são a antítese da figura retratada pela propaganda oficial, não passando de figuras oportunistas sem escrúpulos éticos que almejam maximizar os ganhos políticos para si e seu grupo a curto prazo e diminuir as perdas a longo prazo.
Mesmo nos regimes comunistas soviéticos clássicos, o "homem forte" do sistema nunca deixou de ser o ditador de plantão, sendo "ungido" com uma "aura" carismática e quase que super-humana. Daí para a instituição do "culto a personalidade" ou do "princípio da liderança" é um passo muito pequeno.
Neste caso, o paradigma histórico clássico no âmbito dos regimes comunistas foi, e ainda é, Josef Stalin, o qual, conforme estudos recentes pós-U.R.S.S., foi responsável pela morte de cerca de dez a vinte milhões de cidadãos russos e não-russos da extinta U.R.S.S., sobretudo ao longo do processo de coletivização forçada das comunidades agrícolas ocorrido no final da década de 1920 e boa parte da década subseqüente.
Em suma, a personalização do poder nos estados totalitários modernos, na pessoa de um ditador ou "homem forte", não é a essência dessa espécie de estado, mas tão-somente a sua expressão exterior.
Outro tópico importante a se destacar sobre os atuais estados totalitários é o seu caráter policial no tocante à sua intenção de "pasteurizar" ou nulificar as tensões e insatisfações existentes no seio da Sociedade como um todo, o que fatalmente acaba por conduzir a um clima de denunciação, com a sua respectiva conseqüência social prática, a insegurança e desconfiança generalizada.
O que caracteriza o exercício do poder do estado totalitário contemporâneo, ainda que este esteja centrado na figura de um ditador, é o exercício difuso e autônomo do poder político. Em outras palavras, a deliberação das macro-diretrizes políticas do Estado, bem como a sua implantação no âmbito da Administração Pública, via de regra, não estão sujeitas a nenhum controle externo e independente do núcleo de poder.
É importante ressaltar que, do meu modesto ponto de vista histórico, o surgimento e o desenvolvimento do estado totalitário contemporâneo, independentemente da sua matriz ideológica (isto é, independente de serem ditaduras ideologicamente de direita ou de esquerda, estados totalitários de caráter étnico-nacionalista, etc.), não constitui o resultado inexorável das condições sócio-econômicas "objetivas" da História (na medida que tais condições não passam de uma abstração pseudo-científica completamente desvinculada da realidade histórica) ou da mentalidade coletiva do povo ou, ainda, da vontade e/ou dos caprichos dos respectivos ditadores.
Na verdade, entendo que a "inevitabilidade histórica", tão cara a determinadas versões historiográficas marxistas ortodoxas, não passa de uma quimera histórica. Da mesma maneira, por outro lado, o "grande homem" ou o "estadista salvador da pátria", não deixa de ser uma tragédia histórica a nível pessoal ou uma piada de muito mau gosto.
Os estados totalitários de Era Contemporânea são, isto sim, o resultado combinado de acontecimentos históricos conjunturais resultantes de causas numerosas e complexas, aí incluindo a pauperização econômica progressiva do povo, pauperização essa geralmente vinculada a uma omissão política e social generalizada de governos corruptos e politicamente ineficientes; crises econômicas oriundas de fatores internos e externos; derrotas militares contundentes em guerras mal conduzidas; etc.
No caso, os paradigmas históricos contemporâneos dos estados totalitários, em que pese se situarem em pólos ideológicos opostos, são a Alemanha Nazista e a ex-U.R.S.S. comunista.
De fato, se não fosse a Iª. Guerra Mundial (1914-1918), seguida da Grande Depressão do final dos anos 20 e início da década de 30, e, no caso específico da antiga U.R.S.S., um regime monárquico autocrático de pré-Iª. Guerra Mundial completamente ineficiente e corrupto, tanto o regime nazista quanto o regime soviético, dificilmente teriam tido condições de tomarem o poder nos respectivos países, apesar do gênio carismático de Adolf Hitler e do tino revolucionário de Vladimir I. Lênin.
Em outras palavras, tanto Hitler quanto Lênin, apesar das suas indubitáveis qualidades quanto à oratória política e à liderança carismática, somente puderam estabelecer regimes totalitários na Alemanha e na Rússia porque as instituições oficiais da República de Weimar e da Rússia Czarista (a começar pelo próprio Estado), estavam literalmente falidas, tanto em termos políticos, quanto em termos sócio-econômicos, sem qualquer tipo de legitimidade perante as respectivas populações, falência essa que levou, em ambos os países, a uma polarização ideológica fatal para todos aqueles que desejavam estabelecer uma verdadeira Democracia nos países em tela.
A polarização política e social ocorrida na Alemanha e na antiga Rússia ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), em termos históricos, é perfeitamente aplicável aos demais estados que desenvolveram regimes totalitários ao longo do século XX d. C.
De fato, entendo que os estados totalitários de Era Contemporânea, tanto os estados totalitários de esquerda, quanto aqueles de direita, só prosperaram em países que, em dado momento histórico, não tiveram a oportunidade de desenvolver, ou manter, mecanismos político-institucionais de canalização do dissenso político existente no seio dos diversos grupos componentes da Sociedade Civil. Tal falência, aliada a um clima de intolerância cultural, política e econômica resultou, em vários países, em regimes opressivos e sanguinários pautados em ideologias de direita ou de esquerda.
Nestes termos, o estado totalitário contemporâneo, independentemente do espectro ideológico do seu regime político (seja um regime de "esquerda", seja um regime de "direita") e da dinâmica de governo imposta pelos seus líderes no tocante às formas de controle social, cultural e político exercidas sobre a população, é um estado que pretende moldar a vida do cidadão não em função das necessidades e interesses individuais e coletivas reais em prol do estabelecimento de uma estrutura social mais justa e estável em termos políticos, culturais e econômicos, mas em função de uma visão social e política utópica e, não raro, "messiânica" da Sociedade em conformidade com os "interesses objetivos das massas" ou com "as necessidades vitais da raça superior".
Assim sendo, os estados totalitários contemporâneos adotam políticas públicas e, sobretudo, não-públicas, voltadas para a supressão ou para a repressão de toda e qualquer forma de opinião independente e heterodoxa, quer individual, quer coletiva baseadas na visão política, cultural e social dos seus dirigentes.
O estado totalitário contemporâneo se apresenta como sendo o estado que visa a superação da velha ordem política e econômica e, conseqüentemente, como aquele ente político destinado a instaurar "um novo mundo" livre dos males ou dos vícios até então existentes. Para tanto, os líderes dos estados totalitários contemporâneos desenvolvem, não raro, programas sociais e culturais e planos econômicos megalomaníacos de desenvolvimento totalmente desvinculados da realidade social e econômica, programas e planos esses cujo custo humano é gigantesco.
A partir de uma análise histórica, podemos estabelecer a seguinte tipologia da gênese do estado totalitário contemporâneo:
1)o estado totalitário nascido de um processo revolucionário seguido ou não de uma guerra civil (como, no caso, a ex-URSS) ou, então, surgido a partir de uma revolução precedida de um período de tensões entre um governo autoritário impopular e a população (como no caso do Irã dos aiatolás) ou, ainda, através de um golpe de estado conduzido por uma minoria de oponentes ao regime até então vigente (como na Cuba de Fidel Castro), golpe de estado esse que pode ou não ser seguido de uma guerra civil onde uma grande parte da população apóia o novo governo contra os sublevados devido, em parte ao menos, às promessas do novo governo e/ou ao carisma pessoal do ditador; 2)o estado totalitário onde o grupo dirigente alcança o poder por vias constitucionais (leia-se, mediante eleições livres ou relativamente livres e obtém uma maioria significativa no legislativo e no executivo nacionais) e, através de uma série de artifícios legais e extra-legais, consegue poderes absolutos e acaba por eliminar todo o sistema democrático (proibição da atuação dos grupos políticos de oposição ao novo regime; estabelecimento de restrições às liberdades individuais e coletivas; criação de um aparato policial voltado à repressão das dissidências política e social; etc.). O exemplo típico é Alemanha de Hitler; 3)o estado oriundo de uma guerra civil sangrenta e polarizada ideologicamente. No caso, o paradigma histórico é a Espanha Franquista.
Via de regra, o estado totalitário contemporâneo típico é laico por opção dos seus dirigentes, ainda que se utilize de uma religião ou de determinadas seitas religiosas não só para exercer um controle efetivo sobre a população como também para justificar a existência da repressão cultural e social. A exceção à regra é o Irã dos aiatolás que alia a religião - no caso, o Islã - a um aparato burocrático-estatal autoritário que opera uma repressão não só às minorias religiosas e étnicas existentes no Irã como também à todos os grupos islâmicos que eventualmente discordam politicamente do regime existente naquele país ou transgridem, de alguma maneira, os preceitos éticos-religiosos do Islã. Apesar disso, "... o governo [iraniano] se beneficia de uma legitimidade ainda incomparavelmente maior do que em qualquer um dos países árabes pró-ocidentais. A luta atual é a da sociedade civil [iraniana] para ampliar o seu espaço, para emancipar do controle demasiadamente pesado do "Estado-Igreja", mas não para se desfazer do islã na sociedade". (5)
Mesmo nos estados totalitários contemporâneos laicos a religião, ou o sentimento religioso da população, dada certas circunstâncias, pode servir como fator de fortalecimento ou reforço da autoridade do ditador ou do grupo dominante, sobretudo em momentos de crise. (6)
Por derradeiro, e à guisa de fecho deste artigo, importa lembrar que o estado totalitário contemporâneo é um estado cuja política externa é marcada por uma "visão messiânica" quanto a "nobreza" ou a "retidão" da ideologia ou da religião que dá suporte a essa espécie de estado. Por outras palavras, faz parte da política externa do estado totalitário contemporâneo a "exportação", ainda que em termos puramente propagandísticos, de um ideário político e cultural baseado na ideologia oficial ou da religião na qual o estado totalitário contemporâneo se apóia.
Notas
(1)Na esteira dos ensinamentos de eminente professor Norberto Bobbio, é importante ressaltar que no estado totalitário contemporâneo a Sociedade Civil é, ao menos em tese, inteiramente absorvida pelo Estado a ponto de se constituir num Estado sem opinião pública, contendo somente a "opinião oficial".
(2)Neste sentido, apenas a título de exemplo histórico recente, o Partido Nazista alemão tinha, antes de chegar ao poder no início de 1933, cerca de 850 mil membros registrados (para uma população de cerca de 65 milhões), enquanto que no decorrer apogeu do poderio nazista no início da década de 1940, o número de filiados esteve próximo dos 8 milhões (para uma população estimada de 80 milhões).
Em outras palavras, o Partido Nazista nunca possuiu mais que 10% (dez por cento) do contingente populacional germânico, mesmo quando o poderio nazista estava no seu auge (início da década de 1940).
(3)Cabe lembrar que, com base em "leis historicamente comprovadas", tanto o regime nazista (1933-1945) como o regime comunista soviético (1917-1991), levaram a morte milhões de pessoas em seus respectivos países. Os dois regimes em tela organizaram a matança sistemática de consideráveis contingentes humanos e com a anuência velada de amplas parcelas da população da Alemanha e da Rússia.
Por oportuno, vejo que as ideologias nazista e comunista como subprodutos políticos, sociais e culturais da desilusão e da impaciência intelectual dos seus respectivos criadores com a Democracia e com o Estado de Direito, desilusão e impaciência essas que resultaram numa descrença e repulsa generalizada, tanto pela Democracia em si, quanto pelos próprios fundamentos do Estado do Direito (independência do Poder Judiciário, respeito as garantias e aos direitos individuais e coletivas, etc.).
(4)O livro em foco, um interessante retrato geral do cotidiano social de um estado totalitário do século XX, foi publicado no Brasil pela Editora Record.
É importante destacar que os exemplos cotidianos de corrupção em proveito próprio; pilhagem em larga escala de mercadorias e produtos de primeira necessidade (alimentos, roupas, etc.) promovida por membros de órgãos estatais soviéticos; etc., que o referido jornalista gaulês ilustrou a exaustão no seu supracitado livro foram tirados, na sua esmagadora maioria, de fontes governamentais soviéticas da época, a começar pelos dois periódicos oficiais da então U.R.S.S.: o Pravda e o Izvestia.
(5)Demant, Peter: O Mundo Muçulmano. p. 239.
(6)É interessante notar que na ex-URSS, em que pese ter sido oficialmente um estado ateu, utilizou, durante a 2ª. Guerra Mundial (1939-1945), o fervor religioso como uma arma contra o invasor alemão. De fato, Stalin, que na sua juventude chegou a ser seminarista da Igreja Ortodoxa Russa, aproveitou ao máximo a religiosidade inata do grande povo russo e a seu longo relacionamento com a Igreja Ortodoxa Russa como um elemento de identificação nacional contra as forças invasoras alemãs.
Referências Bibliográficas
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DEMANT, Peter: O Mundo Muçulmano. São Paulo: Ed. Contexto, 2004.
GHIRELLI, Antônio: Tiranos, de Hitler a Pol Pot: Os homens que ensangüentarem o século 20. Tradução de Guiseppe D’Angelo e Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Ed. Difel S/A, 2003.
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