Os impactos da “uberização” nas relações de trabalho

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26/07/2021 às 20:14

Resumo:


  • A relação de trabalho reconhecida como empregatícia no Direito do Trabalho é protegida ao trabalhador mediante a presença de requisitos como pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação.

  • As relações de trabalho oriundas de modelos de compartilhamento digital, como a Uberização, representam um desafio para o enquadramento no paradigma tradicional de emprego devido à dificuldade em caracterizar a subordinação.

  • O modelo de compartilhamento digital tem se expandido, trazendo novas formas de negócios e trabalho, como a economia de compartilhamento e o crowd sourcing, impactando as relações de trabalho e gerando discussões jurídicas sobre o reconhecimento de vínculos empregatícios.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo: No Direito do Trabalho, as relações de trabalho reconhecidas como empregatícias ensejam especial proteção ao trabalhador, sendo reconhecidas como tal mediante a presença de alguns requisitos ou pressupostos, como pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e, especialmente, a subordinação. Contudo, as relações de trabalho oriundas de modelos de compartilhamento digital, comuns no mundo contemporâneo, representam um desafio para o enquadramento neste paradigma. Especial atenção tem sido dedicada ao caso dos motoristas da plataforma Uber, cuja eventual configuração de relação empregatícia tem esbarrado na dificuldade em caracterizar o pressuposto subordinação, conforme conceitos doutrinários tradicionais. Contudo, outras plataformas congêneres vêm contribuindo para discussões quanto ao fenômeno que se denominou de “uberização” e seus impactos nas relações de trabalho. Este estudo tem por objetivo analisar exatamente os reflexos do fenômeno nas relações de trabalho, de modo a averiguar se doutrina e jurisprudência reconhecem o vínculo empregatício entre plataforma e prestador de serviços. A pesquisa classifica-se como hipotético-dedutiva, descritiva e bibliográfica. Verificou-se que a posição majoritária dos autores e tribunais trabalhistas é de não admitir a existência de subordinação nesta relação de trabalho, por conta de características inerentes ao sistema, como a prerrogativa do motorista em não estar disponível todo o tempo a serviço da plataforma. Todavia, diante de uma possível precariedade ou negativa de proteção social aos motoristas que laboram nesta modalidade, bem como suas consequências para a sociedade, aventa-se a possibilidade de reinterpretação da doutrina ou de vir a ser construído um novo instrumento jurídico que possa admitir a existência de relação empregatícia no caso das plataformas digitais, em superação ao entendimento atual.

Palavras-chave: Direito do Trabalho. Novas Tecnologias. Plataformas Digitais. Vínculo Empregatício.

Sumário: Introdução. 1. Relação de trabalho. 1.1. Conceito e história. 1.2. Alterações no modo de produção e organização do trabalho. 1.3. Do capitalismo tecnológico do pós-modernismo na atualidade. 2. Da uberização do trabalho. 2.1. Conceito e sua relação com a tecnologia e o capital. 2.2. Da relação de emprego ou não entre os cibertariados e suas respectivas plataformas digitais. 2.3. Impactos sociais e jurídicos da uberização do trabalho. 3. Panorama jurídico da uberização na atualidade. 3.1. Caracterização dos pressupostos jurídicos da relação de emprego. 3.2. Precarização do trabalho. 3.3. Análise jurisprudencial que versa sobre a uberização. Considerações finais. Referências.


INTRODUÇÃO

O Direito do Trabalho surgiu a partir da premissa de que o trabalhador é parte essencial na arquitetura de qualquer sociedade, e por esta razão deve ser especialmente protegido pelo Estado, através do estabelecimento de um arcabouço jurídico capaz de compensar as desigualdades sociais que ocorrem entre os empregados e os detentores do capital, servindo também como um instrumento de coesão e paz social.

A partir deste princípio da proteção ao trabalhador (via de regra, hipossuficiente) o Direito forjou a noção de vínculo empregatício: uma relação de trabalho em que existe um empregado e um empregador, com características que a diferem de mera relação de trabalho ocasional. Ser sujeito deste vínculo possibilita ao empregado a fruição de direitos e prerrogativas inerentes à sua integração em uma estrutura laboral da qual não é apenas meio de produção, e sim parte essencial.

Contudo, para que este vínculo seja demonstrado e uma relação laboral seja considerada relação de emprego, é necessário o preenchimento de alguns requisitos, ou pressupostos. Na impossibilidade de caracterização de alguns destes requisitos, os tribunais costumam não reconhecer a existência de vínculo empregatício.

Dentre estes requisitos, a subordinação merece particular destaque, tendo sido assinalado como pressuposto fundamental para elucidação de muitas situações fáticas, possuindo ampla aceitação na doutrina trabalhista brasileira.

No entanto, o Direito Trabalhista Brasileiro vem passando por uma crescente flexibilização, através da revisão sistemática de seu arcabouço jurídico. No horizonte, vislumbra-se uma transformação de sua estrutura doutrinária, convertendo sua lógica preservacionista em uma lógica de flexibilidade. Este cenário decorre, em grande parte, do panorama econômico e da natureza fluida das relações trabalhistas contemporânea, pois o atual mercado de trabalho se mostra agressivo, ecoando características do mundo antigo, como a mercantilização e “coisificação” do valor dos serviços humanos.

A empresa Uber, por meio de seu aplicativo (ou plataforma), é uma representante típica e bem sucedida desta flexibilização, através do modelo de compartilhamento digital, em que produtos ou serviços são disponibilizados por meio de plataformas (ou aplicativos) que conectam um fornecedor a um consumidor, pelo compartilhamento de dados mediados por um terceiro. Em suma, a razão do sucesso do modelo de negócio da Uber está no atendimento à necessidade da sociedade em criar novos modelos de relações de trabalho.

Desde o início de suas atividades, a Uber alega constituir-se apenas em um intermediário entre o cliente (passageiro) e o motorista que oferece serviço de transporte, na qual o motorista chamado de parceiro não possui relação de emprego, e por consequência, nenhum direito trabalhista. Mas a eventual existência de relação empregatícia no caso da plataforma Uber vem sendo objeto de questionamentos no âmbito do Judiciário brasileiro (bem como de outras nações).

Em pouco mais de cinco anos de operação no Brasil, são abundantes as decisões (frequentemente conflitantes) e discussões na literatura jurídica a respeito deste tema. Em particular, percebe-se que esta relação costuma não ser reconhecida porque o pressuposto subordinação é de difícil confirmação e aplicabilidade ao caso.

Por estas razões, o presente estudo se justifica como meio de contribuir para a discussão a respeito do tema “os impactos da Uberização nas relações de trabalho”, não se limitando, claro, ao caso especifico da plataforma digital Uber, já que atualmente há inúmeros serviços similares disponíveis no mercado e que contam com um grande número de prestadores de serviço e usuários.

Neste sentido, o problema apresentado pode ser formulado nos seguintes termos: “é possível caracterizar a relação existente entre a empresa gerenciadora dos aplicativos e os motoristas como sendo de subordinação, no escopo da doutrina do Direito Trabalhista brasileiro, com o intuito de caracterizar vínculo empregatício?

É nesse cenário que se situa o presente estudo, que tem como objetivo geral analisar os impactos da Uberização nas relações de trabalho. E, como objetivos específicos busca-se contextualizar historicamente a relação de trabalho, a partir da análise conceitual e histórica, das alterações no modo de produção e dos reflexos do capitalismo tecnológico; destacar o conceito de Uberização e os impactos sociais e jurídicos; averiguar como doutrina e jurisprudência se posicionam diante da possibilidade do reconhecimento do vínculo empregatício.

A hipótese aventada para o estudo é a de que no caso da relação entre os motoristas e os aplicativos, o requisito subordinação é de difícil confirmação e aplicabilidade, o que inviabiliza a caracterização de vínculo empregatício nesta relação, motivo pelo qual há severas críticas à esta modalidade de trabalho, haja vista precarização dos direitos do trabalhador.

Desta feita, o estudo foi conduzido mediante revisão narrativa de literatura e análise da jurisprudência a respeito do tema. Logo, classificou-se como hipotético dedutivo, no que tange o método de abordagem, e descritiva, quanto ao método de procedimento, pautando-se, repita-se, na técnica de pesquisa bibliográfica.

Para alcançar os objetivos supra divide-se o estudo em três capítulos. No primeiro contextualiza-se a relação de trabalho, abordando, inicialmente, o conceito e aspectos históricos, bem como as alterações no modo de produção para, ao final, destacar os reflexos do capitalismo tecnológico.

No segundo capítulo, por sua vez, analisa-se o instituto da Uberização do trabalho, quando se verifica o conceito e a relação entre tecnologia e capital, a relação de emprego ou não entre os cibertariados e, também, os impactos jurídicos e sociais da Uberização do trabalho.

Por fim, no terceiro capítulo, destaca-se o panorama atual da Uberização, verificando os pressupostos caracterizadores da relação de emprego, a precarização do trabalho e como a jurisprudência se posiciona diante do fenômeno em comento, no que tange o vínculo empregatício.


1. RELAÇÃO DE TRABALHO

Nesse primeiro capítulo busca-se contextualizar a relação de trabalho, verificando seu conceito e elementos históricos, abordando, ainda, as alterações no modo de produção e como estas refletiram na organização do trabalho, como se passa a expor.

1.1 CONCEITO E HISTÓRIA

A primeira questão a se ressaltar é que pode-se definir trabalho como um conjunto de atividades produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir determinado fim ou, ainda, como uma atividade profissional regular, remunerada ou assalariada.

Consequentemente, a relação de trabalho nada mais é do que o vínculo estabelecido entre a pessoa que presta o serviço (trabalhador) e a pessoa jurídica ou física que se beneficia do trabalho prestado, mediante remuneração, requisitos que serão retomados quando da análise dos elementos que caracterizam a relação de emprego, no terceiro capítulo deste estudo.

Em meio a esse cenário, Jorge Neto e Cavalcante[1] conceituam a relação de trabalho nos seguintes termos:

[...] é a relação jurídica em que o prestador dos serviços é uma pessoa natural, tendo por objeto a atividade pessoal, subordinada ou não, eventual ou não, e que é remunerada (ou não) por uma outra pessoa natural ou pessoa jurídica. Portanto, a relação de trabalho é o gênero, sendo a relação de emprego uma de suas espécies.

Com efeito, para que a prestação de trabalho seja efetivada é necessário o cumprimento do labor por determinado tempo, além da presença de requisitos outros, quando restará o trabalhador tutelado, ou seja, sua prestação de serviços protegida pelo Estado, por meio do Direito do Trabalho.

Nesse contexto é possível dizer que o surgimento do Direito do Trabalho remete à Revolução Industrial e às repercussões provenientes dessa fase histórica, quando aflorou a preocupação com as mínimas condições de trabalho, já que homens, mulheres e crianças eram expostos diuturnamente à longas jornadas, condições subumanas de labor, etc.

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A partir de então o Estado passou a atuar para estabelecer mínimos direitos, ou seja, regras a serem observadas na relação de trabalho, em especial no que diz respeito à melhoria das condições de trabalho e bem-estar social. Assim, o trabalhador passa a ter uma superioridade jurídica em relação a patrão, em função de sua inferioridade econômica.[2]

Desde então foram editadas leis para tutelar os direitos dos trabalhadores. Conforme Süssekind,[3] em 1802 o parlamento inglês, através de uma comissão de inquérito, aprovou a 1° lei de proteção aos trabalhadores: Lei de saúde e moral dos aprendizes, estabelecendo limite de 12 horas de trabalho/dia, proibindo o trabalho noturno. Obrigava os empregadores a lavarem as paredes das fábricas duas vezes ao ano e tornava obrigatória a ventilação desses locais. No entanto, essas medidas foram ineficazes no que diz respeito à redução do número de acidentes de trabalho.

Nesse contexto surgiu o Direito do Trabalho com o objetivo de melhorar as condições de trabalho e regulamentar as relações entre capital e trabalho, ou seja, em decorrência de todos os acontecimentos que abalaram a economia global, trazendo novas maneiras de se ver o mundo por meio do trabalho, o Estado, começa a intervir no setor privado para regulamentar a relação entre capital e o trabalho.

Martins[4] chama a atenção para o fato de que a revolução socialista de 1917 trouxe ao mundo capitalista a concreta visão de que a dignidade dos trabalhadores precisava ser resguardada e seus direitos deveriam ser reconhecidos por serem fundamentais ao desenvolvimento e integração do homem. Também teve uma participação importante no sentido em que implantou mecanismos para assegurar direitos aos trabalhadores. Salienta que é da combinação dos fatores econômicos, sociais e políticos, que identifica a gênese do Direito do Trabalho.

Ainda segundo Martins,[5] "a história do Direito do Trabalho identifica-se com a história da subordinação, do trabalho subordinado. Verifica-se que a preocupação maior é com a proteção do hipossuficiente e com o emprego típico".

No período pós Primeira Guerra Mundial, houve uma preocupação muito grande de inclusão, nas constituições, de preceitos que trouxessem garantias individuais, inclusive o Direito do Trabalho.[6]

A pioneira neste aspecto foi a Constituição Mexicana de 1917, que reduziu a jornada de trabalho, proibiu o trabalho de menores, implantou o descanso semanal remunerado, entre outros.[7]

Na mesma seara veio a lume, dois anos após a Constituição Alemã, que também trouxe algumas novidades na área social, como por exemplo a participação com representação dos trabalhadores na empresa, criação de seguros sociais etc.

Outras Constituições foram também editadas, e começaram a constitucionalizar o Direito do Trabalho, sendo que em 1919 foi criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tem por objetivo principal a proteção da relação do trabalho em nível internacional.[8]

Outro aspecto muito importante para a efetivação do Direito do Trabalho em nível mundial é a Declaração Universal dos Direitos dos Homens, prevendo o direito a férias, repouso, lazer e outras vantagens ao trabalhador.

No Brasil, o histórico da normatização trabalhista tem início ainda no período imperial, de forma muito discreta, como se extrai da lição de Barros:[9]

No Brasil, de 1500 até 1888, o quadro legislativo referente ao trabalho registra, em 1830, uma lei que regulou o contrato sobre prestação de serviço dirigida a brasileiros e estrangeiros. Em 1837, há uma normativa sobre contratos de prestação de serviços entre colonos dispondo sobre justas causas de ambas as partes. Em 1850 é o Código Comercial, contendo preceitos alusivos ao aviso prévio.

Contudo, como observa Gonçalves,[10] no Brasil a legislação trabalhista e a Justiça do Trabalho surgiram como consequência de longo processo que se desenrolava no exterior, sob forte influência dos princípios de proteção ao trabalhador expostos pelo Papa Leão XIII.

Sobre esse período preleciona Gonçalves:[11]

Em nosso país, as primeiras normas nesse sentido começaram a surgir antes da virada do século passado, como é ocaso do Decreto n. 1.313, de 1981, que regulamentou o trabalho dos menores de 12 a 18 anos. Em 1907, uma lei tratou da sindicalização rural. Em 1917 foi criado o Departamento Nacional do Trabalho como órgão fiscalizador e informativo.

Contudo, a primeira experiência brasileira com órgãos especializados em resolver divergências nas relações de trabalho, segundo Gonçalves (2000, p. 700), é datada de 1922, com a Lei estadual n. 1.869, que criou, em cada comarca de São Paulo, um Tribunal Rural “para conhecer e julgar as questões, até o valor de quinhentos mil réis decorrentes da intepretação e execução dos contratos de locação de serviços agrícolas”.

A Constituição Federal de 1934, segundo Barros,[12] foi a primeira a estabelecer que a lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições de trabalho na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do país.

Na Constituição Federal de 1937 seguiu os mesmos preceitos da Constituição anterior e ampliou ainda mais as legislações trabalhistas.

Farta foi a legislação adotada nessa fase, por meio de decretos-leis, no âmbito do Direito do Trabalho. Numa limitada e rigorosa seleção, devemos registrar os que dispuseram sobre a Justiça do Trabalho (nº 1.237/39), a organização sindical (nº 1.402/39), a primeira tabela de salários mínimos (nº 2.162/40), a duração do trabalho (nº 2.308/40), o enquadramento sindical (nº 2.381/40), o trabalho do menor (nº 3.616/41), o imposto sindical (nº 4.289/42), a criação do SENAI (nº 4.936/42), a Consolidação das Leis do Trabalho (nº 5.452/43), o salário-enfermidade (nº 6.905/44), os acidentes do trabalho (nº 7.036/44) e a sindicalização rural (nº 7.321/45).[13]

Nascimento[14] expõe que as leis trabalhistas cresceram de forma desordenada; eram esparsas, de modo que cada profissão tinha uma norma específica, critério que, além de prejudicar muitas outras profissões que ficaram fora da proteção legal, pecava pela falta de sistema e pelos inconvenientes naturais dessa fragmentação.

O modelo justrabalhista então estruturado reuniu-se, anos após, em um único diploma normativo, a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei n. 5.452, de 1.5.1943). Embora o nome reverenciasse a obra legislativa anterior (consolidação), a CLT, na verdade, também alterou e ampliou a legislação trabalhista existente, assumindo, desse modo, a natureza própria a um código do trabalho.[15]

Nesse cenário veio a lume, em 10 de maio de 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho, que trouxe grande progresso à classe trabalhadora.

No entanto, conforme expõe Nascimento,[16] a CLT não seria o instrumento de cristalização dos direitos trabalhistas que se esperava. A mutabilidade e a dinâmica da ordem trabalhista exigiam constantes modificações legais, como fica certo pelo número de decretos, decretos-leis e leis que depois foram elaborados, alterando-a.

Nova tentativa de revisão da CLT surgiu em 1975 com a iniciativa governamental de compor comissão presidida pelo Min. Arnaldo Süssekind, denominada Comissão Interministerial de Atualização da CLT, que concluiu os seus estudos entregando-os em 29 de setembro de 1976 aos Ministros da Justiça e do Trabalho, sob a forma de Anteprojeto da nova CLT, originariamente com 920 artigos, seguidos de anexos que reúnem as normas profissionais especiais. [...] A Lei n. 6.514, de 1977, modificou o Cap. V do Tít. II da CLT sobre Segurança e Medicina do Trabalho, acompanhada de ampla regulamentação, e o Decreto-lei n. 1.535, de 1977, alterou o regime de férias.[17]

Porém, foi a atual Constituição, promulgada no ano de 1988, responsável por consagrar vários direitos aos trabalhadores.

Por fim, cumpre ressaltar que além dos direitos expressamente consagrados na Consolidação das Leis do Trabalho e no texto da Constituição da República de 1988, assim como em outras leis esparsas, as relações de trabalho devem ser interpretadas à luz dos princípios norteadores. Logo, resta evidente que a proteção ao trabalhador resulta das alterações no modo de produção e organização do trabalho, como se passa a analisar no próximo tópico.

1.2 ALTERAÇÕES NO MODO DE PRODUÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

Ao longo da evolução da humanidade várias formas de labor são registradas, tais como a escravidão, a servidão, as corporações de ofício, etc. Porém, até que se consagrasse o Direito do Trabalho como instrumento de tutela dos direitos do trabalhador foi um longo período. De fato, nas formas rudimentares de trabalho, a exemplo da escravidão, não há um elemento simples da caracterização do contrato de trabalho, que é a liberdade de contratar.

Contudo, não há consenso quanto ao exato momento em que se consolidou a preocupação com a tutela dos direitos dos trabalhadores, embora prevaleça na doutrina o entendimento de que a Revolução Industrial é fato histórico que refletiu na preocupação com a proteção do trabalhador.

Isso se deve porque até o advento da Revolução Industrial, a produção era manual, inexistia especialização ou divisão do trabalho. Logo, o advento da Revolução Industrial revolucionou o ambiente de trabalho, até então precário, caracterizado pela ampla exploração do trabalhador, jornadas excessivas de labor, condições subumanas e resultados nem sempre satisfatórios.

Com o advento da Revolução Industrial restou evidenciada a especialização do trabalho e a consequente modernização das técnicas produtivas, o uso de novas tecnologias e equipamentos nas fábricas, o que evidenciou a disparidade entre homens e máquinas, bem como a competição desleal.[18]

Oliveira,[19] acerca dos reflexos maléficos da Revolução Industrial no ambiente de trabalho, e da consequente preocupação com a instituição de novos meios de produção, ainda pontua:

A Revolução Industrial veio alterar o cenário e gerar novos e sérios problemas. O incremento da produção em série deixou à mostra a fragilidade do homem na competição desleal com a máquina; ao lado dos lucros crescentes e da expansão capitalista aumentava paradoxalmente a miséria, o número de doentes e mutilados, dos órfãos e das viúvas, nos sombrios acidentes de trabalho.

Também Santos,[20] sobre o labor e as condições a que eram submetidos os trabalhadores durante a Revolução Industrial preleciona:

Durante a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII, houve um aumento notável do número de agravos relacionados ao trabalho. Isso decorreu do uso crescente de máquinas, do acúmulo de operários em locais confinados, das longas jornadas laborais, da utilização de crianças nas atividades industriais, das péssimas condições de salubridade nos ambientes fabris, entre outras razões. Embora o assalariamento tenha existido desde o mundo antigo, sua transformação em principal forma de inserção no processo produtivo somente ocorreu com a industrialização.

Decerto, a sociedade vivenciou grandes transformações com o advento da Revolução Industrial, o que refletiu também no trabalho, pois como ressalta Martins,[21] os trabalhadores passaram a receber salários, embora as máquinas de fiar e os teares tenham substituído o homem, contribuído para o desemprego, para trabalho em locais insalubres, sujeitos a incêndio, explosão, intoxicação, oriundos das máquinas a vapor, com jornadas exaustivas, dentre outros problemas.

Outrossim de acordo com Barros,[22] a Revolução Industrial acarretou mudanças no setor produtivo e deu origem à classe operária, transformando as relações sociais, entendimento do qual comunga Nascimento,[23] para quem parcela da população ficou conhecida como proletariado, trabalhadores que prestavam serviços em jornadas que variavam de 14 a 16 horas de labor, sem oportunidades para desenvolvimento intelectual, não raras vezes em condições subumanas.

Acrescenta Nascimento[24] que a Revolução Industrial conduziu ao acúmulo de riquezas, principalmente por força dos baixos salários pagos aos trabalhadores.

Ademais, para Delgado,[25] “o processo de formação e consolidação do Direito do Trabalho nos últimos dois séculos conheceu algumas fases que têm características distintas entre si”. E o autor acrescenta:

Enxergamos três fases principais no desenvolvimento empírico-normativo do Direito do Trabalho, desde o século XIX até finais dos anos de 1970. [...] A primeira fase é a das manifestações incipientes ou esparsas, que se estende do início do século XIX (1802), com o Peel´sActingês, até 1848. A segunda fase, da sistematização e consolidação do Direito do Trabalho, estende-se de 1848 até 1919. A terceira fase, da institucionalização do Direito do Trabalho, inicia-se em 1919, avançando ao longo do século XX. Sessenta anos depois, em torno de 1970/80.[26]

Santos,[27] cita, na evolução da tutela do trabalhador, a edição das primeiras normas, a exemplo da “Lei de Saúde e Moral dos Aprendizes”, de 1802.

Oliveira[28] complementa ao destacar que anos depois, na Inglaterra, foi aprovado o primeiro diploma legal voltado especificamente à proteção do trabalhador, denominado “Factory Act, 1833”, sendo este o marco legislativo no que tange as normas voltadas à saúde e segurança no trabalho.

O diploma legal editado no ano de 1833, aplicado especificamente às indústrias têxteis que utilizassem máquinas hidráulicas ou a vapor, em linhas gerais estabelecia: proibição do trabalho noturno aos menores de 18 anos de idade; limitação da jornada de trabalho a 12 horas diárias e 69 horas semanais; necessidade de instalação de escolas nas fábricas, com frequência obrigatória para os trabalhadores com idade inferior a 13 anos; idade mínima para o trabalho de 09 anos; e, ainda, a presença de médico para atestar se o desenvolvimento físico da criança correspondia ao da sua idade biológica.[29]

Portanto, não há dúvidas de que a Revolução Industrial constitui um dos acontecimentos que mais profundamente alterou o perfil do trabalhador quanto à maneira de ser, de pensar e de agir diante dos modos de produção. Assim, teve início o intervencionismo do Estado nas relações do trabalho, trazendo consigo algumas regras de suma importância para o trabalhador. [30]

De fato, após a Revolução movimentos surgiram clamando melhores condições de vida para os trabalhadores, principalmente em virtude das doenças e acidentes de trabalho deles decorrentes, pois eram comuns ruídos excessivos em virtude da precariedade das máquinas e inúmeros fatores comprometiam o bem-estar físico e psíquico do trabalhador.[31]

Nesse contexto, o Estado se portava como um simples observador dos acontecimentos e, como consequência, sua intervenção transformou-se em um instrumento de opressão contra os menos favorecidos, colaborando para a dissociação entre capital e trabalho.

Destarte, as acentuadas alterações nas relações de trabalho, ocasionadas pela mudança social, impactaram significativamente o ser humano. O desenvolvimento do sistema capitalista, que desencadeou o processo de industrialização, por sua vez, trouxe o emprego da mão-de-obra de forma mais adequada aos anseios dos patrões. Desta forma, iniciou-se uma subordinação contratual entre empregado e patrão que é a relação de emprego, regra esta que deixa o trabalhador frágil devido ao poder econômico capitalista, mas que, nos últimos tempos, em virtude do capitalismo tecnológico, sofreu ainda mais impactantes mudanças, como se passa a expor.

1.3 DO CAPITALISMO TECNOLÓGICO DO PÓS-MODERNISMO NA ATUALIDADE

O mundo capitalista no qual vivemos (ideia central do capitalismo consiste em produzir a baixo custo e vender pelo melhor preço possível para obter maior lucro), empregadores partem do pressuposto de que, quanto menos se pagar ao trabalhador pelo tempo máximo de prestação de serviços, maior será o lucro da empresa.

Sobre este aspecto, o Krost (2016, p.176)[32] cita Harvey, destacando que o mesmo entende que constitui uma das características do regime de acumulação flexível a recombinação de duas estratégias de busca de lucro adotadas pelo capitalismo, assim definidas por Marx, como mais-valia absoluta e mais-valia relativa.

A mais-valia absoluta tem relação direta entre a extensão da jornada de trabalho e o salário percebido, o qual servirá para garantir a reprodução da classe trabalhadora num dado padrão de vida. A mais-valia relativa caracteriza-se pela mudança organizacional e tecnológica que é posta em ação para gerar lucros temporários para firmas inovadoras e lucros mais generalizados com a redução dos custos dos bens que definem o padrão de vida do trabalho.[33]

Outrossim, a busca desenfreada pelo lucro, associada aos ideais capitalistas, deu origem a uma sociedade preocupada com a produção e não com a pessoa do trabalhador. Explica-se. Embora existam inúmeros marcos normativos assegurando os Direitos Fundamentais e Sociais, o mundo capitalista, associado ao avanço tecnológico, vem submetendo os trabalhadores a uma extenuante jornada de trabalho, criando cada vez mais formas de controle de produção e pagando-lhe salários baixos, situação incompatível com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.[34]

Nesse sentido, colaciona-se trecho referido por Krost (2016, p.176-1777), in verbis:

O salário por unidade de peça acaba justificando uma intensificação do trabalho e torna necessária a prorrogação da jornada, transformando em rotineiro algo considerado extraordinário pela lei79, fruto da informalidade com que estabelecidas as relações produtivas e da confiança mútua existente entre trabalhadores e “faccionistas” [...]. Esse aumento da exploração da mão de obra não impede que os trabalhadores reconheçam uma posição de reféns, ao lado das próprias “facções”, em uma cadeia desigual de dependência estabelecida com a grande indústria, bem como experimentem um sentimento de estarem sendo enganados ao perderem o direito à remuneração por unidade de tempo.

Por vezes, é imposta pela grande indústria, de modo unilateral, a redução do preço por peça produzida pela “facção”, acentuando ainda mais a necessidade dos trabalhadores elastecerem o expediente e acelerarem o ritmo da produção a fim de tentarem manter o nível remuneratório.

Não se pode olvidar que o avanço tecnológico foi de extrema importância para a sociedade em geral. Cite-se, por exemplo, para o ramo dos bancários, a informatização das operações ou os caixas rápidos, facilitando a vida de toda a sociedade, empregados, empregadores e clientes. Semelhantes benesses são sentidas em diversos outros ramos.

Ocorre que muitas destas modificações por vezes se encontram em descompasso com as normas que regulamentam a relação de trabalho, a exemplo da utilização desarrazoada dos smartphones, que trouxeram utilidades positivas, especialmente no que tange a interação social praticamente instantânea (contato entre pessoas do mundo todo, acesso as inúmeras redes sociais), mas, infelizmente apresenta aspectos negativos no que refere à vida dos trabalhadores, que se veem 24 horas por dia conectados ao empregador.

De fato, a Justiça do Trabalho tem verificado o crescente número de práticas abusivas de fiscalização através da utilização de inúmeros métodos tecnológicos por empregadores em relação aos seus funcionários, pois os avanços tecnológicos tem impactado negativamente na vida dos trabalhadores, o que ocorre principalmente porque as novas tecnologias estão sendo usados como forma de controle e cobrança no atingimento de metas pelos empregadores perante seus funcionários.

Ademais, as facilidades do mundo moderno, principalmente através do uso das novas tecnologias, também pela utilização de aplicativos, e-mails a todo tempo, surgimento de sistemas informatizados/plataformas, além de constantes contatos através de ligações via telefone celular, tem sido usadas para fiscalizar o labor dos trabalhadores, direcioná-los e, não raras vezes, controlar o trabalhador.

Por isso, como preconiza Calvet,[35] precisa-se utilizar esta tecnologia a favor do trabalhador, nos seguintes termos:

[...] O gradativo aumento de tempo destinado ao lazer (tempo livre) necessita da correspondente diminuição do tempo destinado necessita da correspondente diminuição do tempo destinado ao trabalho, ao trabalho, determinando a adoção de jornada cada vez menores e, com isso, maior número de postos de trabalho, harmonizando-se maior número de postos de trabalho [...].

Dessa forma, resta evidente a necessidade de se garantir a efetiva proteção ao trabalhador, obstando que o uso desarrazoado de novas tecnológicas comprometam os direitos e garantias dos trabalhadores, conquistados ao longo dos tempos, precarizando direitos fundamentais.

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Sobre o autor
Ronie Winckler Gouvea

Auditor de Tributos. Especialista em Direito Tributário. Especialista em Prática Trabalhista Avançada. Pós-graduando em Direito Público.

Informações sobre o texto

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