INTRODUÇÃO
Os direitos sociais, que consubstanciam os direitos de 2ª geração ou dimensão, foram conquistados com muita luta durante toda a história da humanidade, não só no Brasil, como também no mundo, conquista esta que se ampliou com a Revolução Industrial, representando um momento no qual tais direitos se tornaram o maior propósito social.
Entretanto, não obstante estejamos no século XXI, tendo avançado muito em diversos aspectos, nos deparamos frequentemente com um problema que é recorrente na nossa sociedade, tendo em vista a desigualdade social: a população em situação de rua. Estes, por sua vez, acabam por sobreviver dormindo em calçadas, praças, debaixo de pontes e algumas vezes, ocupando edifícios que se encontram em situação de abandono. Nessa perspectiva, diversas reportagens têm sido veiculadas na mídia e nos meios de comunicação, via internet, tais como sites de notícias, redes sociais e aplicativos de celular, acerca das consequências sociais e jurídicas da desigualdade social e a ocupação de prédios abandonados têm gerado, repercutindo, principalmente, no âmbito jurídico, o que desencadeou numa série de posicionamentos e opiniões de especialistas no assunto, jornalistas, colunistas, e até mesmo artigos, livros e doutrinas de profissionais do direito.
Nesse sentido, a Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, carta constitucional do Brasil, prevê, em seu artigo 6º, quais os direitos sociais, de modo que para o enfoque de nosso trabalho, além de outros direitos sociais elencados, a Carta Magna prevê o direito à moradia como um dos direitos sociais constitucionalmente amparados e assegurados. O direito à moradia, o qual foi considerado um direito fundamental em 1948 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, engloba todo e qualquer direito humano universal do acesso à habitação digna. Sendo, desta forma, uma garantia aos cidadãos para que estes tenham a ascensão à uma moradia com condições mínimas à sobrevivência. Ademais, a Carta Magna também prevê, em seu artigo 23, inciso IX e X, que é da competência da União, Estados, Distrito Federal e dos Municípios promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, e combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.
No entanto, o direito à moradia, se tornou um grande contratempo para o Estado, uma vez que este direito não é garantido para todos os indivíduos na prática, o que acaba por gerar um grave problema social. Essa problemática pode ser observada por todos, basta nos atentarmos ao grande número de famílias desabrigadas em território nacional. Além do mais, a falta de um lar a estas famílias acaba por desencadear uma série de problemas, dos quais podemos destacar as invasões de propriedades, sejam elas públicas ou privadas, onde estes indivíduos improvisam suas moradias. Assim, apesar da Emenda Constitucional nº 26, incorporada à Constituição Federal de 1988, referir-se à moradia como um direito social de todo cidadão brasileiro, o país está muito distante de assegurar amplamente tal direito a todos.
Cada vez mais se nota a dificuldade do Estado para encontrar uma real solução para este fato social. Frequentemente, ocorrem decisões por parte dos governantes que acabam por polemizar ainda mais esta questão, gerando revolta na mídia e na sociedade pela forma como estes indivíduos, carentes de condições básicas de sobrevivência, parecem ser tratados cada vez mais à deriva do interesse do Estado, contrariando o que foi consolidado na Constituição Federal.
Podemos relacionar esta problemática ao crescimento populacional e habitacional nas grandes metrópoles brasileiras, que ocorreu principalmente após a abolição da escravatura no século XX e com o processo de urbanização, provocando o deslocamento da população rural para a área urbana, resultando, assim, em uma maior disparidade na desigualdade quanto às condições de moradia, visto que cortiços e favelas foram criados para tentar suprir a falta de apoio governamental, o que evidencia o déficit na gestão de políticas públicas que visam garantir esse direto à moradia digna e com condições mínimas, como o acesso à saneamento básico.
Com o aumento populacional seguido de uma demanda cada vez mais alta de moradia desenvolveu-se dois contrapontos em comum: o crescente número de pessoas que não têm condições de pagar por imóveis custosos e o abandono de prédios que não cumprem mais sua função social.
Muito se fala que os prédios no Brasil não cumprem esta função social, expressão que advém do latim functio, cujo significado é cumprir algo, desempenhar um dever ou uma atividade, sendo, desta forma, um princípio inerente a todo direito subjetivo. Diante do exposto percebe-se que tais locais acabam gerando mais custos para as cidades pela sua falta de utilização do que propriamente os lucros, caso fossem aproveitados.
Esses prédios recebem toda infraestrutura urbana pagas pelo Estado, ou seja, são advindos do dinheiro de impostos dos próprios cidadãos para que possam funcionar, gerando moradias e empregos. No entanto, sabemos que na realidade muitos destes edifícios acabam sendo abandonados em alguma fase da sua obra, seja por falta de dinheiro do proprietário, desinteresse do mesmo na localização ou até falência da construtora, ficando, inclusive, inutilizados por anos.
Diante da situação de inutilização, tais prédios passaram a ser ocupados por cidadãos que não possuem o seu direito de moradia respeitado e, por questão de sobrevivência, são obrigados a se abrigar onde conseguem. O problema é que mesmo com o abandono dos edifícios e seu não cumprimento da função social, as contradições no interesse quanto à propriedade dos imóveis pelas pessoas físicas e pelo governo, acabam colocando em destaque os conflitos entre o mínimo essencial para a dignidade da pessoa humana, amparado pelos direitos humanos e o poder financeiro no sistema capitalista.
Não é novidade que a crise habitacional do Brasil sempre existiu, todavia nos dias atuais é mais perceptível a falha do Estado em gerar uma condição de vida digna aos seus cidadãos, seja pela questão econômica ou social. Propostas de melhorias e de resolução do conflito são inexistentes no ordenamento. Isso ressalta a ideia que o dinheiro, movimentado pelo mercado imobiliário, tem mais poder de comando do que o próprio direito à moradia, garantido por lei. É devido a esse processo desigual habitacional que movimentos sociais crescem em busca da ocupação de prédios abandonados com o objetivo de proporcionar moradia a pessoas de baixa renda e sem assistência suficiente do Estado. No entanto, a própria lei demonstra a irregularidade da situação diante de bens públicos, haja vista que a Constituição Federal de 1988 veda a usucapião destes bens, apresentando contradição entre o fato de serem financiados por dinheiro público e por eles não poderem ser usados, até mesmo quando são para cumprir a função social da propriedade.
Nesse sentido, o objetivo principal almejado é justamente apresentar o paradoxo existente entre prédios abandonados, pessoas desabrigadas e o direito à moradia, bem como propor uma discussão sobre o tema.
1 DIREITO À MORADIA
1.1 Contexto Histórico
Desde os primórdios da história da humanidade, sabe-se que este sempre procurou um lugar ou local para se assentar, com o intuito de estabelecer sua moradia e de sua família. Ao analisarmos a história do ser humano e da civilização humana de forma genérica, percebemos que em todas as épocas pelas quais passamos e até os dias de hoje, a questão da moradia sempre esteve presente, ou seja, moradia é desde os tempos remotos uma necessidade fundamental dos seres humanos.
Acontece que, a moradia passou a ser positivada pelo ordenamento jurídico, ou seja, no sentido jurídico da palavra, esta tornou-se um “direito”, mais precisamente, um direito fundamental das pessoas. Em outras palavras, passou a ser do interesse do mundo jurídico, passou a ser um bem jurídico, tutelado e protegido pelo Direito. A questão é, quando isso aconteceu? Desde quando a moradia passou a ter este caráter jurídico?
A resposta desta questão não possui uma data certa e determinada, porém, é certo dizer que o momento histórico que mais marcou o direito à moradia foi o surgimento dos direitos sociais, que nada mais são do que os reflexos de lutas e conquistas históricas, em que o pensamento do homem e coletividade se aperfeiçoa para proteger o indivíduo em sua individualidade ou coletividade.Nesse sentido, acreditamos ser importantíssimo a necessidade de apresentar aqui as dimensões ou gerações dos direitos fundamentais e o contexto da moradia no Brasil e nas suas Constituições para fins de contextualizá-la historicamente.
1.1.1 Dimensões ou gerações dos direitos fundamentais e o direito à moradia
Nas palavras do Ministro Luis Roberto Barroso, a respeito dos direitos fundamentais:
A construção dos direitos fundamentais se dá pela agregação de conquistas civilizatórias paulatinas, que vão se sedimentando em direitos de natureza e conteúdo diversos. Surgem, assim, sucessivamente, os direitos individuais, os direitos políticos e os direitos sociais.
O cenário europeu, entre o final do século XVIII e começo do século XIX, permeado com os ideais burgueses e iluministas, num momento revolucionário da história, na qual deveriam ser priorizados os direitos privados com uma menor interferência do Estado, é que se teve a primeira ideia de propriedade. Neste período pouco se importava com a principal finalidade, do que viria a ser o direito à moradia, pois a maior preocupação na época, era a de expandir o mercado e desenvolver as indústrias, tendo como ambientação as revoluções industriais que se encontravam em pauta na época.
Nesse contexto o que se percebe, é que num primeiro momento os direitos fundamentais e sociais em geral, pouco importavam, predominando a ideia do direito privado, que deveria se amparar somente no desenvolvimento das indústrias, pouco importando a condição social das pessoas, favorecendo assim aqueles com maior poder aquisitivo da época. Vale destacar que foi neste momento da história em que se rompeu com a organização social da época feudal, passando a existir neste momento os valores liberais, que marcam a chegada da idade moderna.
O que se evidencia, portanto, com este rompimento de épocas, é que se deixa para trás a ideia monarca, no qual o responsável pela distribuição de terras era o senhor feudal, e passa a vigorar a sistemática de que aqueles com maior poder aquisitivo (burgueses), seriam os detentores do maior número de propriedades. Destaca-se aqui a Revolução Francesa como estopim para que se rompesse com a forma de governo da monarquia, que, uma vez derrubada, deu poder ao povo, para que este instituísse uma política burguesa, onde os interesses particulares passariam a ter maior relevância do que os da coletividade. Surge, assim, um dos lemas mais importantes de toda a história do ser humano, a liberdade, igualdade e fraternidade, sendo estes os fundamentos do que viria a ser conhecido como as gerações do direito.
A primeira geração ou dimensão de direitos, se baseia nas liberdades individuais (direitos políticos e civis), sendo estas justamente as ideias liberais conquistadas pelas revoluções burguesas, com fundamento nos princípios privados e na pouca intervenção do Estado (absenteísmo estatal), fazendo alusão a ideia de que os homens seriam autônomos em suas decisões, o que caracteriza direito de resistência ou de oposição perante o Estado.
Já no século XIX, predominantemente durante a Revolução Industrial europeia, surge a segunda geração ou dimensão de direitos, pautada nos direitos sociais, culturais e econômicos, vale dizer, na igualdade material, clamada pela classe insatisfeita com o liberalismo excessivo, defendido pelos burgueses. O período em questão se opõe a estrutura burguesa vigente, pois traz agora ao Estado um maior controle social, uma participação maior deste, para que a igualdade fosse efetivamente aplicada, o chamado “Estado do bem-estar social”.
Nesse diapasão, se inicia enfim, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da ONU (Organização das Nações Unidas) a terceira geração ou dimensão de direitos, também conhecida como geração dos direitos universais ou difusos, sendo esta o germe para o reconhecimento dos direitos humanos ao redor do mundo, com ideais solidários apoiado na questão da fraternidade global.
É correto afirmar, diante do contexto histórico exposto acima, que o direito de moradia está naturalmente fundado nos direitos de segunda geração na busca pela igualdade social, vale dizer, compõe o rol dos direitos sociais. Sendo assim, surgiu durante o período em que a população necessitava de uma prestação positiva por parte do Estado, de modo a concretizar uma isonomia substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida.
Fato é que, apesar de todo processo revolucionário, na busca por uma sociedade mais igualitária, o que se percebe é que os direitos de primeira geração ainda são o ponto central da sociedade, uma vez que, não obstante as constantes lutas por igualdade, a sociedade ainda se apoia em um sistema individualista, com forte influência capitalista, deixando muito do que foi conquistado para trás, ficando latente a preferência ao capital e não aos direitos coletivos.
1.1.2 Contexto histórico no Brasil
No Brasil, os direitos sociais se encontram encartados no art. 6º da Constituição da República Federativa de 1988, com o objetivo de dispor todo o suporte que o Estado deve garantir a sociedade, sendo estes o direito a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados. Assim, a Carta Magna considera a moradia como sendo um direito fundamental e se compromete a tutelá-lo.
Por outro lado, nem sempre foi assim. Historicamente, a questão da apropriação de terras, da propriedade e da moradia no Brasil apareceu neste país desde as capitanias hereditárias, instituídas por João III, em 1532, cujo objetivo era incentivar o povoamento do território brasileiro. Todavia, o acesso ao direito de moradia pode ser contado a partir de um marco histórico, ou melhor, da elaboração de uma lei, a Lei de Terras, Lei 601 de setembro de 1850, que nasce com o intuito de fixar critérios para aquisição de propriedade no Brasil e eliminar as formas tradicionais de acesso à terra, qual sejam, as sesmarias e a possessão. Em outras palavras, durante o regime das sesmarias, as pessoas que as recebiam e utilizavam e exploravam (beneficiários) apenas detinham a sua posse, de tal forma que o seu verdadeiro proprietário era Coroa Portuguesa. Assim, a Lei de Terras apresentou-se como um meio de abolir tal regime, estabelecendo que as terras não poderiam ser adquiridas de outra forma senão pela compra.
Desta forma, a partir da elaboração da Lei de Terras, só quem podia pagar pelos terrenos, vale dizer, aquele que possuía poder econômico era reconhecido como proprietário juridicamente definido por lei. Acontece que, o direito de moradia foi bruscamente procurado a partir do ano de 1888, principalmente em razão da abolição da escravidão no Brasil. Isso se deu porque, durante a escravidão, os vassalos não precisavam se preocupar com moradia, já que viviam junto aos seus senhores. Todavia:
Com a libertação dos trabalhadores escravizados - oficializada pela Lei Áurea, de 1888 - e, ao mesmo tempo, com o impedimento de os mesmos se transformarem em camponeses, quase dois milhões de adultos ex-escravos saem das fazendas, das senzalas, abandonando o trabalho agrícola, e se dirigem para as cidades, em busca de alguma alternativa de sobrevivência, agora vendendo "livremente" sua força de trabalho. Como ex-escravos, pobres, literalmente despossuídos de qualquer bem, resta-lhes a única alternativa de buscar sua sobrevivência nas cidades portuárias, onde pelo menos havia trabalho que exigia apenas força física: carregar e descarregar navios. E, pela mesma lei de terras, eles foram impedidos de se apossarem de terrenos e, assim, de construírem suas moradias: os melhores terrenos nas cidades já eram propriedade privada dos capitalistas, dos comerciantes etc. Esses trabalhadores negros foram, então, à busca do resto, dos piores terrenos, nas regiões íngremes, nos morros, ou nos manguezais, que não interessavam ao capitalista. Assim, tiveram início as favelas. A lei de terras é também a "mãe" das favelas nas cidades brasileiras.
Deste modo, muitas pessoas que não possuíam poderio econômico suficiente para comprar terras, foram obrigadas a viver em locais precários, miseráveis, necessitados, desafortunados.
Houve um aumento dessa mesma situação no século seguinte, qual seja, no século XX, em razão do desenvolvimento do processo de urbanização. Isso ocorreu porque, antes da Revolução de 1930, a principal atividade econômica do Brasil era a agrária-exportadora. Assim, com esta revolução, em linhas gerais, ocorreu uma transferência do modelo agrário-exportador para o modelo urbano-industrial, cujo ideal era incentivar a industrialização no Brasil e, consequentemente, o enriquecimento do mesmo.
Neste período histórico do país, a área urbana começa a se tornar cada vez mais atrativa, uma vez que a industrialização estava se desenvolvendo e com isso a estrutura urbana passava por uma reformulação.A consequência desta transformação industrial foi, precipuamente, o êxodo rural, fenômeno em que as pessoas do campo, encontrando-se em situações de miséria, condições precárias de trabalho e escassez de recursos e de poderio econômico, viram neste crescimento urbano uma esperança de melhores condições de vida e também de labor. Deste modo, uma quantidade significativa de pessoas abandonou o campo e migraram para as cidades tendo em vista um objetivo: adquirir vida melhor para si e para suas famílias.
Acontece que, os planos dessas pessoas se transformaram em verdadeiros desafios e contratempos, visto que as cidades ainda estavam se desenvolvendo e não possuíam capacidade nem recursos suficientes para abrigar e para cumprir as necessidades básicas de um número expressivo de pessoas. Em razão disso, essas pessoas passaram a buscar meios alternativos para a sua moradia e sobrevivência. Consoante a isso, ocorre a formação de favelas e as ocupações irregulares, pois se não haviam condições para encontrar um local apropriado para morar, a alternativa era buscar locais e estruturas com baixo custo, que estivessem ao alcance das condições econômicas de cada uma dessas pessoas, assim como fizeram os ex-escravos no século XIX. Deste modo, conclui-se que estas pessoas continuaram a viver nas favelas, em aglomerações irregulares, ocupações de áreas ilegais, dentre outras formas alternativas de moradia. Para uma melhor compreensão desta situação:
A favela pode ser definida como um grupo de moradia construídas desordenadamente com materiais de baixo custo, sem zoneamento, sem serviços de infraestrutura em terrenos invadidos. No Brasil existem favelas de todo o tipo umas tem as casas empilhadas sem ruas, outras já possuem ruas bem traçadas e com alta densidade de ocupação o que serve de elemento característico e de distinção da favela com os outros tipos de habitação subnormal é o fato de ocuparem ilegalmente uma área urbana.
A partir de todo o exposto, percebe-se que a situação criada no século XIX e meados do século XX permaneceu até os dias atuais, vale dizer, mesmo que as cidades estejam desenvolvidas, industrializadas e tenham capacidade para abrigar uma quantia expressiva de indivíduos, ainda assim, infelizmente nos deparamos com o fato de que aqueles possuidores de poderio econômico continuam a dominar as terras (propriedade), enquanto que aqueles desprovidos de tal poder, do mesmo modo que ex-escravos e camponeses que vieram às cidades em razão do êxodo rural, foram obrigados a procurar outros meios para garantir sua moradia, como as favelas, aglomerações irregulares, ocupações de áreas ilegais, ou nem mesmo possuem um local que podem chamar de “lar”, pois encontraram moradia nas ruas das cidades. Destarte, em nosso país, o problema da falta de moradia para inúmeros cidadãos está intimamente ligado num longo passado histórico, sendo, de maneira evidente, fruto de uma política que sempre esteve voltada aos interesses particulares da classe dominante, desprezando, assim, intensamente os menos favorecidos.
1.1.3 Direito à Moradia nas Constituições Brasileiras
No tocante às Constituições datadas da época do Brasil Império, não existia qualquer referência ao direito de moradia, dando-se mais ênfase ao direito individual e privado, sem preocupação como interesse social ou função social.
O Brasil passou por diversas constituições, porém foi apenas com a Constituição Federal de 1934 que surgiu pela primeira vez uma preocupação com o interesse social, já que esta Constituição foi a primeira a inserir em seu texto um título sobre ordem econômica e social. Muito embora o direito à moradia não estivesse explícito em seu texto, a sua essência já demonstrava isso, como se pode observar a partir da leitura do seu art. 113:
Art.113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...)16) A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Nela ninguém poderá penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir a vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei. (...) 17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização.
O referido artigo não traz, como já foi reportado, na forma escrita e expressa o direito à moradia, porém o Estado não conseguiria efetivar os direitos mencionados no referido texto, sem garantir ao indivíduo o direito a habitação, de modo que quando se fala em subsistência, fica evidente que não é possível para um indivíduo e sua família subsistir sem uma residência. Dessa forma, o direito à moradia já se encontrava de forma implícita na constituição de 1934.
Nesse mesmo sentido, caminharam as Constituições de 1937 e 1946, esta última ainda trazendo o direito à propriedade no rol dos direitos individuais. A Constituição de 1967 ainda trouxe o direito à propriedade sob dois aspectos: o individual e o social. Tratando-o dentro dos direitos e garantias individuais e no capítulo da ordem econômica e social, trazendo a propriedade como centro do interesse social e coletivo.
Todavia, foi somente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que ocorreu o desenvolvimento da democratização do Estado brasileiro, ou seja, ampliação das liberdades civis, dos direitos e garantias individuais. A redação original do art. 6º da CF/ 88 não contemplava expressamente o direito de moradia, assim como a Constituição de 1934, como se vê abaixo:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Embora não estar apresentado de forma expressa, bastaria analisar os princípios constitucionais para ter certeza que o direito à moradia se trata de um direito constitucional fundamental, ou seja, se República Federativa do Brasil constitui-se em estado democrático de direito tendo como um dos fundamentos, o princípio da dignidade da pessoa humana, não seria possível ao Estado garantir uma vida digna aos indivíduos, sem antes garantir-lhes direito a um teto.Logo, não seria possível um indivíduo gozar de outro direito social sem ter uma habitação digna.
Porém, esta situação mudou no dia 14 de fevereiro de 2000, em razão da edição da Emenda Constitucional nº 26, que inseriu no rol dos direitos sociais da CF/88 o direito à moradia, conforme o artigo transcrito abaixo:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000).Grifo nosso.
Desta forma, pode-se afirmar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 se afina com o Estado Democrático de Direito, já que almeja fornecer a todo e qualquer indivíduo uma vida digna, e para tanto, oferece o mínimo existencial, vale dizer, assegura os direitos fundamentais, e nestes, está incluído o direito à moradia.
1.2 O que é Direito à Moradia e sua relação com os Direitos Reais e o Código Civil
O conceito de direito à moradia é um estudo muito amplo, visto que possui diversas vertentes e ramos, logo é importante ter uma definição simplista para seu maior entendimento: define-se como ter um lar, um local ou um abrigo. Desta forma, é também necessário ressaltar que a relevância no tema se encontra, justamente, por se tratar de um dos direitos fundamentais para a existência dos indivíduos e seu bem-estar.
A ONU, ao assinar a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, tornou o direito à moradia um direito humano universal, aceito e aplicável em todos os países como um dos direitos fundamentais para a vida dos cidadãos. Por consequência, o direito foi reconhecido e implementado como pressuposto essencial par a dignidade da pessoa humana. O Brasil, como assinante deste pacto da ONU, é obrigado a seguir conforme a citação de que
“toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis”.
Tanto que a Constituição Federal de 1988, considerada a mais humana existente no ordenamento jurídico, vem em seu artigo 5º defender as garantias fundamentais dos cidadãos, sejam eles brasileiros natos ou estrangeiros que residam no país.
Aprofundando ainda, o artigo 6º, caput, da Constituição Federal é claro em relação a moradia:
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Por se tratar de direito fundamental, o Estado tem o dever de amparar seus cidadãos em situações que violem e coloquem em risco esses direitos, como o de moradia, ligado à propriedade, cujo qual está presente nos mais diversos códigos do ordenamento brasileiro.
Em seu título II, nomeado como Direitos Reais, o Código Civil determina no artigo 1.225 quais são esses direitos. Dentre os expostos, temos como real o de propriedade e, principalmente, habitação. Referente a propriedade o título III, artigo 1.228, §1º, expõe que:
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
O foco principal na citação está, justamente, na parte social da propriedade, o que demonstra a extrema importância para que essa função seja integralmente cumprida, haja vista que a qualidade de vida e o mínimo existencial fazem parte dos pressupostos dos Direitos Humanos e, consequentemente, de uma vida digna.
Podemos classificar a propriedade em três vertentes vigentes: a plena, que engloba quando o proprietário tem, de direito, os três poderes de domínio – tem consigo os atributos de gozar, usar, reaver e dispor da coisa. Posteriormente temos a limitada, a qual recai algum ônus sobre a propriedade - caso da hipoteca, da servidão ou usufruto. E, por fim, a vertente de resolúvel, a qual é dependente de condição ou termo - artigo 1.359 do Código Civil e se refere a propriedade com condição ou termo para acabar, podendo ser através de uma alienação. Já no tocante de habitação, em seu capitulo próprio o Código apresenta definições de ações que podem ser tomadas para com o imóvel, quando um indivíduo ou mais o possuir.
Desta forma, a premissa de que o direito à moradia está elencado e exposto em vários dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro apenas reforça a ideia da necessidade do direito a todos de forma digna e com eficácia igualitária, pois além de ser um princípio fundamental é também um pacto internacional, o que deve ser respeitado e amparado por todos os Estados. No entanto, o direito em questão deve ser contemplado por uma moradia digna, o que diverge da realidade socioeconômica do Brasil. Como bem se vê, apesar de existir uma constitucionalização acerca do direito à moradia e sua inclusão no rol dos direitos sociais, sua validade é colocada em pauta quando se observa a problemática na eficácia de seu exercício.