IMPLICAÇÕES LEGAIS DO SUÍCIDIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E "SUICIDE BY COP" OU "POLICE-ASSISTED SUICIDE"

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10/08/2021 às 16:49
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Embora considerado como tabu, o suicídio sempre acompanhou a história da humanidade. Neste artigo trataremos das implicações legais do suicídio no ordenamento jurídico brasileiro e o "suicide by cop" tema ainda pouco conhecido no país.

RESUMO

Artigo de compilação, baseado em pesquisa bibliográfica material e virtual, com a utilização do método dedutivo, visando a exposição do pensamento de vários autores sobre o tema e indicação da própria opinião nos pontos relevantes. Embora considerado por alguns como um tabu, o suicídio sempre acompanhou a história da humanidade, desde a antiguidade. Com cada vez mais casos de depressão e doenças psicológicas, o suicídio se tornou um problema de saúde pública que preocupa médicos, psiquiatras, governantes e familiares que lidam diariamente com entes queridos que apresentam tendências suicidas. Estima-se que anualmente mais de um milhão de pessoas no mundo morrem em decorrência do suicídio. Neste artigo trataremos sobre o crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio ou a automutilação, previsto o artigo 122 do Código Penal. Abordaremos as principais mudanças trazidas pela Lei 13.968/2019, bem como outras legislações nacionais que tratam sobre o tema tais como o Código Civil e o Código Penal Militar. Por fim, faremos algumas anotações sobre o chamado “suicide by cop” tema ainda pouco conhecido no Brasil.

Palavras-chave: Crime. Suicídio. Lei.

ABSTRACT

Compilation article, based on material and virtual bibliographic research, using the deductive method, aiming at exposing the thoughts of several authors on the topic and indicating their own opinion in the relevant points. Although considered by some to be a taboo, suicide has always followed the history of mankind, since antiquity. With more and more cases of depression and psychological illnesses, suicide has become a public health problem that worries doctors, psychiatrists, government officials and family members who deal daily with loved ones who are suicidal. It is estimated that more than one million people worldwide die each year as a result of suicide. In this article we will deal with the crime of inducing, instigating or assisting suicide or self-mutilation, provided for in article 122 of the Penal Code. We will address the main changes brought about by Law 13.968/2019, as well as other national laws that deal with the subject, such as the Civil Code and the Military Penal Code. Finally, we will make some notes on the so-called “suicide by cop”, a theme still little known in Brazil.

Key-words: Crime. Suicide. Law.

1. INTRODUÇÃO

            Embora considerado por alguns como um tabu, o suicídio é fenômeno social que cada vez mais vem ganhando destaque, sendo uma questão de saúde pública. Tanto que desde 2015 o Brasil institui o “setembro amarelo” como o mês de prevenção e conscientização contra o suicídio, com campanhas que visam identificar sinais da ideação suicida, como ajudar ou buscar ajuda.

            No Brasil são registrados cerca de doze mil suicídios todos os anos, o que importa em 6% da população, enquanto que no mundo cerca de um milhão de pessoas tiram a própria vida por ano, o que representa uma pessoa morta a cada quarenta segundos de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Isto significa dizer que o suicídio mata mais pessoas que a malária, o câncer de mama, guerra ou homicídio, sendo, portanto, um grave problema de saúde pública global. De acordo com comparações internacionais, a Guiana é o país com a maior taxa de suicídio per capita (30,2 por 100 mil), com alto número de ingestão de pesticidas, seguido por Rússia, onde o excesso de álcool é responsável pela alta taxa de suicídios. Outros países com altas taxas estão Lituânia, Lesoto, Uganda, Sri Lanka, Coreia do Sul, Índia e Japão.

            Entre as principais causas que levam uma pessoa a atentar contra a própria vida estão a depressão, transtorno bipolar e abuso de substâncias. Dados da Organização Mundial da Saúde advertem que o suicídio geralmente aparece associado a doenças mentais – sendo que a mais comum, atualmente, é a depressão, responsável por 30% dos casos relatados em todo o mundo. Estima-se que uma em cada quatro pessoas sofrerá de depressão ao longo da vida. O alcoolismo responde por 18% dos casos de suicídio, a esquizofrenia por 14% e os transtornos de personalidade por 13%. Os casos restantes são relacionados a outros diagnósticos psiquiátricos[1]. A taxa de suicídio é maior nos países de alta renda. Quase três vezes mais homens morrem por suicídio que mulheres em países de alta renda, em contraste com os países de baixa renda, onde a taxa é mais igual[2]. De acordo com a publicação “Suicide in the world – Global Health Estimates”[3]:

“O suicídio foi a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos, estando atrás apenas dos acidentes de trânsito. Entre adolescentes de 15 a 19 anos, o suicídio foi a segunda principal causa de morte entre meninas (após condições maternas) e a terceira principal causa de morte entre meninos (após acidentes de trânsito e violência interpessoal). Os métodos mais comuns de suicídio são enforcamento, envenenamento por pesticidas e armas de fogo. As principais intervenções que demonstraram sucesso na redução de suicídios estão restringindo o acesso a estes meios; orientando a mídia sobre a cobertura responsável de suicídios; implementando programas entre os jovens para desenvolvimento de habilidades que lhes permitam lidar com o estresse da vida; identificação precoce, gerenciamento e acompanhamento de pessoas em risco de suicídio.”

           No Brasil, a cada quarenta e seis minutos uma pessoa tira a própria vida, sendo em sua grande maioria homens, negros, com idade entre 10 e 29 anos. Roraima, Piauí, e Santa Catarina são os estados da federação onde mais pessoas do sexo feminino tiram suas vidas. Já entre as pessoas do sexo masculino destacam-se Piauí, Roraima e Rio Grande do Sul, tendo sido observado um aumento no número de mortes entre 2007 e 2017 nos estados de Rondônia, Maranhão e Rio de Janeiro.

            A ansiedade, a preocupação com o futuro, a mudança de situação, o desemprego, o isolamento, o medo e a perda de familiares ocasionados em decorrência da pandemia podem ter agravado ainda mais a questão do suicídio no mundo. Para se ter uma ideia, em outubro de 2020 o número de suicídios no Japão foi superior ao número de mortes por Covid-19 em todo o ano de 2020 no país. Em Altamira, no Pará, até abril de 2020 nenhuma pessoa havia morrido na cidade por conta do coronavírus, no entanto, entre janeiro e abril do mesmo ano, 15 pessoas já haviam tirado a própria vida, número este igual ao total de suicídios registrados durante o ano inteiro de 2019 na cidade.

            Além dos jovens, outra categoria de pessoas que apresentam grande índice de suicídio no Brasil são os policiais. Os policiais são os profissionais que lidam com o que há de pior na sociedade, mas que muitas vezes são esquecidos pelo poder público. Os policiais convivem diariamente com o medo, tensão, terror, estresse, todavia, são pouco valorizados, com salários insuficientes (na maior parte dos estados-membros), que não compensam o risco a que se submetem todos os dias. Se não bastasse a questão salarial, os policiais suportam jornadas de trabalhos excessivas e falta de condições de trabalho, o que inclui desde locais de trabalho insalubres à armamentos e equipamentos de segurança não confiáveis. Por certo, que tais condições, ainda que mencionadas de forma sucinta, já tendam a demonstrar porque a taxa de suicídios entre policiais no Brasil é maior do que a taxa de policiais que morrem em confrontos. Some-se a isso a depressão que o próprio trabalho pode ocasionar já que presenciam diariamente mortes, estupros e outras situações que causam sofrimento às pessoas, não tendo à disposição, na maioria das vezes, a assistência psicológica especializada prévia, que não é dada pelas instituições em que trabalham. Entre policiais, a taxa de suicídio é de 23,9 enquanto que no total da população o número é de 5,8 por 100 mil habitantes. Segundo a OMS mais de 90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados com o tratamento certo.

            Neste artigo trataremos do conceito de suicídio, analisando as implicações legais desse ato na legislação brasileira e abordando, de forma sucinta, o fenômeno conhecido como “suicide by cop” ou suicídio por policial.

            Inicialmente convém conceituar a palavra suicídio que deriva do latim e da união das palavras sui (em si) + cídio (matar, imolar, derrubar), traduzindo a ideia de matar a si. O dicionário Michaelis da Língua Portuguesa define suicídio como: “ação ou efeito de suicidar-se. Ruína ou desgraça, procurada espontaneamente ou por falta de juízo”[4]. O mesmo dicionário conceitua suicidar como “dar morte a si mesmo; pôr fim à própria vida. Arruinar-se, destruir a própria influencia e prestígio, ser a causa da própria ruína”[5].  

            Certo dicionário jurídico[6] define suicídio como a “conduta antijurídica consistente no fato de alguém destruir voluntariamente a própria vida”. Podendo ainda ser conceituado como “ato de exterminar, eliminar a própria vida. O mesmo que autocídio.”[7]

            Engana-se quem pensa que o suicídio é um problema mais recente na sociedade. Talvez os relatos mais antigos que tenhamos conhecimento são aqueles registrados nas escrituras sagradas. A bíblia relata ao menos cinco casos de suicídio, quais sejam os suicídios de Abimeleque (Juízes 9:50-56), do Rei Saul (1 Samuel 31:1-6), de Zinri (1Reis 16:18-19), de Aitofel (2 Samuel 17:23) e o mais famoso de todos, o de Judas (Mateus 27:3-10) que traiu Jesus Cristo.

            Na Roma antiga o suicídio era reprovado em determinadas situações. Por exemplo, se um soldado tentava se matar, era considerado desertor e a pena para tal tentativa era a própria morte. Falando sobre a criminalização do suicídio, a revista Super Interessante em sua edição de 30 de abril de 2005[8] escreveu:

“(...) a punição da prática não é exclusividade de civilizações pré-cristãs. Em países como Itália, França e Alemanha, o suicídio era punido com o sepultamento fora do solo sagrado (geralmente à margem de estradas) e com o confisco das propriedades do suicida pelo Estado até o século 18. No caso de tentativa frustrada, a punição ia de castigos corporais a aprisionamento. “A Inglaterra foi o último país a descriminar o suicídio, em 1961”.

 

            Ao longo da história mundial, diversas foram as celebridades que cometeram suicídio tais como Heath Ledger, Marilyn Monroe, Kurt Cobain, Lucy Gordon, Alexander McQueen e Anna Nicole Smith e outros. O maior suicídio coletivo da história ocorreu em 18 de novembro de 1978, quando 918 pessoas morreram em um misto de suicídio coletivo e assassinatos na Guiana, onde a grande maioria padeceu ao beber, voluntariamente, sob as ordens do pastor Jim Jones, uma mistura de suco de uva e cianeto e os demais foram mortos a tiros e facadas. Estima-se que mais de trezentas crianças faleceram durante este evento.

            No Brasil a prática do suicídio ou a tentativa, por si só, nunca foram tipificados como crime, o que é coerente uma vez que a pessoa que tenta se matar necessita de ajuda e não de uma punição, o que poderia agravar significativamente a vontade da pessoa de tirar a própria vida. Assim, temos que o suicídio não é crime. Uma pessoa que, por si só, atente contra a própria vida, sem influência de terceiros, por livre e espontânea vontade, caso sobreviva, não sofrerá punição pelo ato que causou a si. Ademais, haveria ofensa ao princípio da alteridade, porquanto estar-se-ia punindo alguém que não lesou bens alheios[9]. Convém relembrar que a morte é causa extintiva da punibilidade. Feitas estas breves considerações, passemos à análise legal do suicídio no ordenamento jurídico brasileiro. 

 

2. SUICÍDIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

2.1 SUICÍDIO NO CÓDIGO PENAL

            Conforme analisado anteriormente, o suicídio por si só não é considerado crime, todavia, o artigo 122 do Código Penal criminaliza a conduta de quem induz, instiga, auxilia alguém a cometer o suicídio ou, na redação mais atual do dispositivo, a mutilar-se.

            Falando sobre a conduta desse terceiro que de alguma forma contribui para o resultado suicídio, Cezar Roberto Bitencourt[10] discorre:

“Não sendo criminalizada a ação de matar-se ou a sua tentativa, a participação nessa conduta atípica, consequentemente, tampouco poderia ser penalmente punível, uma vez que, segundo a teoria da acessoriedade limitada, adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, a punibilidade da participação em sentido estrito, que é uma atividade secundária, exige que a conduta principal seja típica e antijurídica (Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal; Parte Geral, 5.ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, p.441.). a despeito dessa correta orientação político-dogmática, as legislações modernas, considerando a importância fundamental da vida humana, passaram a prever uma figura sui generis de crime, quando alguém, de alguma forma, concorrer para a realização do suicídio.” (grifos do autor)

            A criminalização do agente que concorre de alguma forma para a concretização do suicídio, está previsto no ordenamento jurídico pátrio desde o Código Criminal de 1830, não tendo sua redação original sofrido grandes mudanças até 2019, já que a ideia principal sempre foi a mesma. Dispunha o Código de 1830, in verbis[11]:

“Art. 196. Ajudar alguem a suicidar-se, ou fornecer-lhe meios para esse fim com conhecimento de causa.

Penas - de prisão por dous a seis annos.”

           A redação do artigo é autoexplicativa e cumpria de forma objetiva o fim a que se destinava, ou seja, quem de alguma forma ajudasse alguém a se suicidar ou fornecer meios para esse fim, tendo conhecimento de que a pessoa iria se matar, incorria no crime previsto no artigo 196 e poderia ser condenado a uma pena de prisão de dois a seis anos. Ao nosso ver a segunda parte do dispositivo (fornecer-lhe meios) seria dispensável, posto que o verbo ajudar abrangeria “fornecer meios” para a prática do delito. Por sua vez, o Código Criminal de 1890[12] previa no Capítulo III o seguinte artigo:

“Art. 299. Induzir, ou ajudar alguem a suicidar-se, ou para esse fim fornecer-lhe meios, com conhecimento de causa:

Pena - de prisão cellular por dous a quatro annos.”

         Conforme se depreende da leitura do artigo acima, o Código Criminal de 1890 apenas acrescentou o verbo “induzir” ao tipo penal. O Código Penal de 1940 manteve até 2019, a seguinte redação ao artigo 122:

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio

Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.

Parágrafo único - A pena é duplicada:

Aumento de pena

I - se o crime é praticado por motivo egoístico;

II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

            Deixaremos para tratar mais detalhadamente da redação do artigo 122 do Código Penal de 1940 quando abordarmos a atual redação dada pela Lei 13968/2019 uma vez que a nova lei apenas acrescentou a automutilação ao caput do artigo, mantendo o restante do conteúdo da redação de 1940.

2.1.1 A ATUAL REDAÇÃO DO ARTIGO 122 DO CÓDIGO PENAL

            A atual redação do artigo 122 do Código Penal foi dada pela Lei 13968/2019. Referida Lei entrou em vigor em 26 de dezembro de 2019, fruto do Projeto de Lei 664/2015 elaborado pelo senador Ciro Nogueira do PP do Piauí, o qual tinha como proposição inicial alterar somente o artigo 244-C do Estatuto da Criança e do Adolescente para tipificar o crime de induzimento, instigação ou auxílio à automutilação de criança ou adolescente.

            Por certo que a alteração do Código Penal é mais abrangente uma vez abarca todas as vítimas e não só as crianças e os adolescentes. Quanto à especial preocupação em tipificar a conduta da pessoa que induzia, instigava ou auxiliava crianças ou adolescentes esta se tornou mais evidente após os casos relacionados ao jogo baleia azul[13].  

            Posto isto, passemos a análise da atual redação do artigo 122 do Código Penal. Dispõe o “caput” artigo 122 do Código Penal:

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça:

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.

            Conforme já visto, o artigo 122 do Código Penal pune a conduta do agente que induz, instiga ou auxilia pessoa a cometer suicídio ou se automutilar. O bem jurídico tutelado pelo tipo penal é a vida humana extrauterina. De acordo com Cezar Roberto Bitencourt, a vida é um bem jurídico indisponível[14].O suicídio ofende interesses morais e éticos do Estado, e só não é punível pela inocuidade de tal proposição[15].

            O sujeito ativo do crime de participação em suicídio pode ser qualquer pessoa, não requerendo nenhuma condição particular, pois se trata dos chamados crimes comuns. É necessário, todavia, que o sujeito ativo tenha a capacidade de induzir, instigar ou auxiliar alguém a suicidar-se ou a se mutilar. O sujeito passivo, por sua vez, também poderá ser qualquer pessoa capaz de entender o significado de sua ação e de determinar-se de acordo com esse entendimento. Para que se configure o crime, o sujeito ativo deve dirigir sua ação a pessoa determinada, não se configurando o crime quando visar número indeterminado de pessoas. Caso a vítima seja forçada a suicidar-se ou não tiver condições de oferecer resistência alguma, haverá o homicídio e não participação em suicídio.

            Trata-se de crime de ação múltipla ou conteúdo variado, uma vez que o tipo penal possui diversos núcleos. A conduta nuclear consiste em induzir, instigar ou auxiliar. Induzir significa implantar na mente do sujeito passivo a ideia que não existia, persuadindo a vítima a tirar a própria vida. Instigar significa encorajar e incentivar, ou seja, a vítima já tem a vontade de se suicidar e é encorajada a fazê-lo. Auxiliar, por sua vez, tem o sentido de fornecer colaboração material, favorecendo mediante a provisão de meios ou instrumentos para a ocisão da vida. Quanto ao auxílio, convém destacar que é fundamental que o agende-te não pratique atos materiais ligados diretamente à provocação do resultado morte, pois neste caso estaria cometendo homicídio e não o crime do artigo 122.

            Mutilar significa retirar, retalhar ou cortar uma parte do corpo. Automutilação é a lesão autoprovocada intencionalmente pelo agente. Pode ser definida ainda como a lesão intencional e direta dos tecidos do corpo provocada pelo próprio agente.

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            O elemento subjetivo presente no crime é o dolo, consistente na vontade de concretizar os elementos do tipo penal. Trata-se de crime formal. André Estafam entendia que o crime do artigo 122 não admitia tentativa, uma vez que o tipo condicionava a punibilidade do ato à ocorrência do resultado morte ou da lesão corporal grave[16]. Com o advento das alterações dadas pela Lei 13.968/19 é perfeitamente possível a tentativa.

            A pena prevista para o “caput” do artigo 122 é a de reclusão de seis meses a dois anos, tratando-se, assim, de crime de menor potencial ofensivo que poderá ser abarcado pelos benefícios da Lei 9.099/95 caso o sujeito ativo atenda aos requisitos no caso concreto.

            Se da automutilação ou da tentativa de suicídio resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima à vítima, o autor estará sujeito a uma pena de reclusão de um a três anos (§1º do artigo 122 do Código Penal). Trata-se de uma qualificadora. Será possível o acordo de não persecução penal, caso o autor atenda os requisitos previstos no Código de Processo Penal.

            Caso a indução, instigação ou o auxilio resulte na morte da vítima a pena será a de reclusão de dois a seis anos. A pena será duplicada se: 1) o crime for praticado por motivo egoístico, torpe ou fútil; e 2) se a vítima for menor ou tiver, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

            Se a conduta for realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real, a pena será aumentada até o dobro. A pena será aumentada até a metade se o agente é líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual.

            Na hipótese do parágrafo primeiro, se resultar em lesão corporal de natureza gravíssima e é cometido contra menor de catorze anos ou contra quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responde o agente pelo crime descrito no parágrafo segundo do artigo 129 do Código Penal (lesão corporal gravíssima – pena de reclusão de dois a oito anos).

            Na situação em que o suicídio se consumar ou se da automutilação resultar morte, sendo a vítima menor de catorze anos ou quem não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, o agente responderá pelo crime de homicídio, nos termos do artigo 121.

            Por fim, insta relembrar que a participação em suicídio ou em automutilação, em todas as suas formas, é crime que se processa por ação penal pública incondicionada, sujeito ao rito do Tribunal do Júri por se tratar de crime doloso contra a vida e que a coação exercida para impedir suicídio não constitui crime de constrangimento ilegal (art. 146 § 3º,II CP).

2.2 SUICÍDIO NO CÓDIGO CIVIL

            O Código Civil trata na seção III do capítulo XV, nos artigos 789 a 802 sobre o contrato de seguro de vida. O contrato de seguro é o contrato pelo qual o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo à pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados (artigo 757 do Código Civil). O contrato de seguro abrange três elementos essenciais: o risco, a mutualidade e a boa-fé. O contrato de seguro, como o nome sugere, assegura/protege bens importantes ao contratante.

            Prevê o artigo 798 do Código Civil, in verbis:

Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.

Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado.

            De acordo com o dispositivo supra, o beneficiário do seguro não teria direito ao prêmio quando o segurado se suicida nos dois primeiros anos de vigência inicial do contrato, ou de sua recondução depois de suspenso. Assim, como explica Sergio Cavalieri Filho[17], o Código Civil estabeleceu uma “carência” para que o beneficiário do suicida possa receber a quantia estipulada no contrato de seguro. Cabe mencionar que, conforme disciplina o parágrafo único, a seguradora não pode estipular cláusula visando excluir o pagamento do capital por suicídio do segurado, tendo em vista tratar-se de cláusula nula.

            Quanto ao suicídio ocorrido antes do período de dois anos do contrato de seguro, por um tempo os beneficiários tentaram recorrer aos Tribunais, visando obter o valor do prêmio mesmo nessas hipóteses, algumas ações foram movidas em razão da súmula 61 do STJ[18] e súmula 105 do STF[19]. Entretanto, em 2018, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o assunto ao editar a súmula 610, com a seguinte redação: “O suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada[20]”. Com o advento da súmula 610, a súmula 61 foi cancelada e a 105 do STF restou superada, passando a ser analisado somente o critério objetivo (tempo), não sendo mais cabível a discussão sobre a premeditação do suicídio (critério subjetivo).

 

2.3 SUICÍDIO NO CÓDIGO PENAL MILITAR

            O Código Penal Militar foi instituído pelo Decreto-Lei 1001 de 21 de outubro de 1969. Embora sendo uma legislação mais específica e pouco abordada nos cursos tradicionais de direito, o CPM possuí previsão especial quanto ao suicídio.

            Por ser uma legislação pouco conhecida, convém trazermos algumas considerações primordiais quanto ao Direito Penal Militar. Incialmente pode-se afirmar que Direito Penal Militar consiste no conjunto de normas jurídicas que têm por objeto a determinação de infrações penais, com suas consequentes medidas coercitivas em face da violação, e, ainda, pela garantia dos bens juridicamente tutelados, mormente a regularidade de ação das forças militares, proteger a ordem jurídica militar, fomentando o alutar desenvolver das missões precípuas atribuídas às Forças Armadas e às Forças Auxiliares[21].

            Crimes militares são aqueles enumerados pela lei. Crime propriamente militar é todo aquele previsto apenas no Código Penal Militar, enquanto que crime impropriamente militar é aquele que está previsto tanto no Código Penal Militar quanto na legislação penal comum. Há ainda quem entende que o crime propriamente militar somente pode ser cometido por militar e o crime impropriamente militar é aquele previsto tanto no Código Penal comum como no Código Penal Militar, mas que por escolha do legislador, ganhou contornos militares.

            O dispositivo do Código Penal Militar que trata sobre suicídio encontra-se previstos no Título IV – Dos crimes contra a pessoa. Dispõe o artigo 207 do Código Penal Militar:

Provocação direta ou auxílio a suicídio

Art. 207. Instigar ou induzir alguém a suicidar-se, ou prestar-lhe auxílio para que o faça, vindo o suicídio consumar-se:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

            Conforme estudado anteriormente trata-se de crime impropriamente militar, uma vez que o Código Penal comum possui dispositivo semelhante. Aqui a objetividade jurídica é o direito à vida. O sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa, tanto o militar da ativa, federal ou estadual, como o militar inativo, ou mesmo o civil, este restrito, exclusivamente, à esfera federal em face da limitação constitucional das Justiças Militares Estaduais. O sujeito passivo pode ser qualquer pessoa atingida pela conduta, civil ou militar (ativo, inativo, federal ou estadual). O elemento subjetivo do tipo é o dolo (a vontade livre e consciente de induzir, instigar ou auxiliar a vítima a suicidar-se). A ação penal será pública incondicionada.

            Diferentemente do Código Penal comum, no Código Penal Militar o crime de provocação direta ou auxílio a suicídio está sujeito a uma pena de reclusão de dois a seis anos, ou seja, bem superior àquela prevista da legislação comum.

            A pena será agravada se o crime for praticado por motivo egoístico ou no caso da vítima ser menor ou ter diminuída, por qualquer motivo, a resistência moral.

            O parágrafo segundo do artigo 207 aborda a provocação indireta ao suicídio, nos seguintes termos:

§ 2º Com detenção de um a três anos, será punido quem, desumana e reiteradamente, inflige maus tratos a alguém, sob sua autoridade ou dependência, levando-o, em razão disso, à prática de suicídio.

 

            Aqui cabe uma crítica posto que, nos parece, que a hipótese prevista no parágrafo segundo é muito mais gravosa que a prevista no “caput”, todavia possui pena inferior. A própria redação fala de comportamento desumano, reiterado e maus tratos praticado por superior que causa tanto sofrimento à vítima que esta não vê outra solução para seus problemas, se não extinguir sua própria existência. Para nós tal situação é mais grave, pois, ao invés do que disciplina o “caput” em que a vítima, embora induzida, instigada ou auxiliada ainda teria, no nosso entendimento, uma opção de escolha, o que não se verifica no § 2º.   

            O parágrafo terceiro traz uma causa de redução de pena nas hipóteses de o suicídio ser tentado ou quando da tentativa resultar lesão grave. A redução da pena será de um a dois terços.  Pelo que se extrai do dispositivo, não havendo ao menos lesão corporal grave, não ocorrerá o delito.  A este respeito, Cicero Robson Coimbra Neves e Marcello Streifinger[22] comentam que caso haja lesão corporal leve haverá um fato jurídico-penalmente irrelevante, devendo ser apreciado, no caso do sujeito ativo militar, na esfera disciplinar.

            Finalmente, não se admite a tentativa, pois exige-se que o suicida consiga realizar sua intenção (morte) ou ao menos a lesão corporal, situação esta em que o sujeito ativo não responderá pela tentativa, mas sim pela modalidade autônoma do § 3º.

 

2.4 LEI 13.819/20119

            A lei 13.819/2019 instituiu a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela união, em cooperação com os Estados, Distrito Federal e os Municípios e entrou em vigor em 26 de abril de 2019.

            A Política nacional de prevenção da Automutilação e do Suicídio tem como objetivos: promover a saúde mental; prevenir a violência autoprovocada; controlar os fatores determinantes e condicionantes da saúde mental; garantir o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, especialmente daquelas com histórico de ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio; abordar adequadamente os familiares e as pessoas próximas das vítimas de suicídio e garantir-lhes assistência psicossocial; informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das lesões autoprovocadas como problemas de saúde pública passíveis de prevenção; promover a articulação intersetorial para a prevenção do suicídio, envolvendo entidades de saúde, educação, comunicação, imprensa, polícia, entre outras; promover a notificação de eventos, o desenvolvimento e o aprimoramento de métodos de coleta e análise de dados sobre automutilações, tentativas de suicídio e suicídios consumados, envolvendo a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e os estabelecimentos de saúde e de medicina legal, para subsidiar a formulação de políticas e tomadas de decisão; e promover a educação permanente de gestores e de profissionais de saúde em todos os níveis de atenção quanto ao sofrimento psíquico e às lesões autoprovocadas.

            A lei prevê ainda o atendimento telefônico e por outras formas de comunicação  destinado às pessoas em sofrimento psíquico.

            Os casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada são de notificação compulsória pelos estabelecimentos de saúde públicos e privados às autoridades sanitárias e pelos estabelecimentos de ensino públicos e privados ao conselho tutelar. A notificação compulsória tem caráter sigiloso e as autoridades que a tenham recebido ficam obrigadas a manter o sigilo.

            Para os efeitos da Lei 13.819/19 entende-se por violência autoprovocada: o suicídio consumado, a tentativa de suicídio e o ato de automutilação, com ou sem ideação suicida. Ademais, nos casos que envolverem investigação de suspeita de suicídio, a autoridade competente deverá comunicar à autoridade sanitária a conclusão do inquérito policial que apurou as circunstâncias da morte.

 

3. SUICIDE BY COP

            O termo em inglês “suicide by cop” pode ser traduzido como “suicídio por policial” ou “suicídio pela polícia”. Trata-se de um assunto ainda pouco conhecido e pouco divulgado no Brasil, sendo o tema mais abordado pela doutrina policial. A tradução do termo pode gerar uma ideia irônica quanto ao tema, razão pela qual a doutrina americana mais recente procura adequar o assunto para “law enforcement-forced-assisted suicide” e “police-assisted suicide” que significaria algo como suicídio assistido forçado pela aplicação da lei ou simplesmente “suicídio assistido por policial”, porque, em verdade, o policial acaba sendo apenas um meio para que o agente, que já tem o desejo de acabar com a própria vida, consiga realizar seu intento. 

            Falando do tema em si e sobre a incidência deste no Brasil, o Coronel da Polícia Militar de São Paulo Valmor Racorti[23] explica que:

O termo atual, “Suicídio por Policial” foi analisado pela primeira vez pelo Policial e Psicólogo americano Karl Harris em 1983. Um trabalho mais recente, publicado no “Journal of Forensic Studies”, em 2009, examinou mais de 700 tiroteios nos Estados Unidos e classificou 252 (36%) como suicídios por policiais. O documento também sugeriu que a frequência destes incidentes estava em alta. Nos EUA, estudos afirmam que apenas 13% das mortes aparentes por suicídio por policial foram planejadas, na medida em que uma carta foi deixada absolvendo os agentes envolvidos de irregularidade. No Brasil são poucas as pesquisas ou estatísticas sobre o assunto, pois o tema é recente os estudos começaram a aparecer somente em 2008. No GATE esses casos vem aumentando a cada ano, até o início de dezembro de 2018 o grupo atuou em 22 ocorrências desse tipo, um recorde histórico.

           O fenômeno “Suicide by cop” ou mais modernamente “police-assisted suicide” é abordado em manchetes e notícias dos Estados Unidos desde o início da década de 80, tendo o termo se popularizado a partir dos anos 2000. Mas afinal, o que é esse fenômeno?

            “Suicide by cop” ou “police-assisted suicide” é um método suicida em que um indivíduo se comporta deliberadamente de maneira ameaçadora, com a intenção de provocar uma resposta letal de um agente de segurança pública ou de um agente da lei. Em outras palavras, o sujeito engaja-se numa situação criminal no intuito de forçar o policial ou outra pessoa a mata-lo[24].

            O Coronel Valmor Racorti[25] assim define o fenômeno:

É um método passivo de suicídio feito por pessoas que não têm coragem de se matar, e por isso cometem deliberadamente comportamentos criminosos de grande poder ofensivo, para desencadear uma resposta letal da Polícia, seja ameaçando a si próprio, ou terceiros, com uma arma real ou falsa, ou executando uma manobra agressiva contra os agentes da lei. Para estes indivíduos, não há ninguém mais qualificado para revidar sua agressão de forma letal do que um Policial, pois além de ser treinado e equipado, sua vida está sendo ameaçada. O suicídio por Policial é uma das situações que classificamos como complexas.

            O mesmo autor explica que[26]:

De forma genérica, existem dois tipos de suicídio por policial. O primeiro é o marginal que já cumpriu pena, e que ao voltar a cometer um crime e ser encurralado pela Polícia, prefere provocar um tiroteio e ser alvejado mortalmente, do que voltar para a cadeia. O segundo tipo são pessoas que não necessariamente possuem antecedentes criminais, mas que por situações variadas já estão pensando no suicídio e, como no caso anterior, usam a Polícia para aplicar a lei e atingir seu objetivo.

            Os motivos que podem levar uma pessoa a cometer o suicídio são os mais variados, destacando-se os motivos relacionados a valores sociais, culpa, motivos passionais, grandeza e atenção, temor quanto a retornar para a prisão, problemas financeiros, drogas e álcool.

            De acordo com o Doutor em Psicologia Barry Perrou[27], fundador do “Public Safet Research Institute” e ex-comandante da equipe de negociação de crises, identificou quinze situações que podem indicar que estamos diante do fenômeno do suicídio assistido por policial, sendo eles: 1) O sujeito mesmo acuado, se recusa a negociar; 2) o sujeito acaba de matar alguém, especialmente um parente próximo como por exemplo sua mãe, esposa ou filho; 3) o sujeito diz que tem uma doença fatal; 4) as demandas do sujeito para à polícia não incluem negociações para fuga ou liberdade; 5) o sujeito passou por uma ou mais mudanças traumáticas de vida (p.ex. morte de um ente querido, divórcio, devastação financeira, etc.); 6) antes da situação, sujeito se desfaz de todo o seu dinheiro e posses; 7) o sujeito tem histórico de agressões; 8) o sujeito dize que só se renderá ao responsável; 9) o sujeito indica que pensou em planejar sua morte; 10) o sujeito manifestou o interesse em querer morrer de forma “machista”/ “como homem”; 11) manifestou interesse em “sair em grande estilo”; 12) o sujeito expressa sentimento de desesperança ou desamparo; 13) o sujeito dita sua vontade aos negociadores; 14) sujeito exige ser morto; e 15) sujeito define um prazo para ser morto.

            Pesquisas realizadas pelo Dr. William Dolman, médico legista, entre 1993 e 2007, analisando cerca de 268 casos de suicídio assistido por policial, identificou que em 95% dos casos as vítimas eram homens, dos quais 54% estavam desempregados, 41% eram brancos, 80% dos homens estavam armados e 87% fizeram comunicações suicidas antes ou durante o incidente.

            No Brasil, uma situação veiculada pela mídia que pode ter caracterizado o suicídio assistido por policial foi o sequestro na ponte Rio-Niterói ocorrido em 20 de agosto de 2019, no Rio de Janeiro, ocasião em que Willian Augusto Silva fez trinta e nove pessoas reféns em um ônibus. Apesar de estar armado apenas com uma faca e uma suposta garrafa de gasolina, as negociações duraram mais de três horas e meia. Alguns passageiros relataram que Willian tinha coerência, estava muito calmo e tranquilo, sendo que dizia que estava com uma garrafa de gasolina, mas não falou que ia tacar fogo no ônibus em nenhum momento. Em determinado momento, Willian teria aceitado se render, mas ao tentar retornar ao coletivo, acabou sendo alvejado por um atirador de elite, vindo a óbito. Um primo de Willian disse posteriormente à imprensa que chegou a ouvir pelo rádio de seu primo, que ele (Willian) não iria se entregar. O mesmo familiar disse também que Willian era depressivo e fazia tratamento, tendo sofrido traumas durante a vida, apesar de ter uma família estruturada.

            No exemplo acima dado, é possível identificar alguns dos indicadores do Dr. Barry Perrou que caracterizam o fenômeno do suicídio por policial ou suicídio assistido por policial.

            Em uma situação de perigo real em que o policial, ainda que identifique a intenção do sujeito em provocar sua própria morte pela ação do agente da lei, caso reste infrutíferas as negociações e, de fato, o policial tenha que agir e venha a causar a morte do sujeito, o policial jamais poderia responder por auxílio ao suicídio ou por qualquer outro delito. Se na situação concreta, não houve excesso por parte do agente da lei, a situação estará abarcada pelas excludentes de ilicitude: legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal. O policial age em defesa do bem coletivo e em defesa da sociedade, devendo, além disso, agir para defender sua própria vida o que é extremante razoável tendo em vista que a vida é um bem juridicamente tutelado e todo homem possui o direito de defender tal bem. O artigo 25 do Código Penal, especialmente em seu parágrafo único, deixa isso bem claro ao dispor:

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.      

Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.  (grifos nossos) 

            O doutrinador Rogério Sanches Cunha[28] ao tratar do estrito cumprimento do deve legal, ensina:

O agente público, no desempenho de suas atividades, não raras vezes é obrigado, por lei (em sentido amplo), a violar um bem jurídico. Essa intervenção lesiva, dentro de limites aceitáveis, estará justificada pelo estrito cumprimento do dever legal, não se consubstanciando, portanto, em crime (art. 23, III, 1ª parte, do CP). De fato, seria de todo desarrazoado que a lei estabelecesse a prática de determinada atividade pelo agente e, ao mesmo tempo, impusesse-lhe pena caso esta atividade se subsumisse a algum fato típico. E no caso desta descriminante, isso se torna ainda mais evidente porque, ao contrário do que ocorre no exercício regular de direito, aqui a lei obriga o agente a atuar; a punição consistiria em verdadeira teratologia.

            Assim verificamos que o suicídio assistido por policial é uma forma real de suicídio em que o agente público é utilizado pela vítima como instrumento para acabar com a própria vida. Por ser “usado” pela vítima, o policial não cometerá nenhum delito, uma vez que sua conduta, desde que moderada, será abarcada pelas excludentes de ilicitude.

            Com o reconhecimento deste fenômeno, será necessário cada vez mais o treinamento dos agentes públicos que lidam com situações de crises, bem como a elaboração de programas públicos e estratégias que desencorajem tal prática e ofereça o tratamento necessário às potenciais vítimas.

4 .CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Neste artigo tentamos discorrer brevemente sobre o suicídio e sobre suas implicações legais no ordenamento jurídico pátrio.

            Logo na introdução admitimos o suicídio como sendo um fenômeno social e um problema de saúde pública. Verificamos que todo ano ocorrem quase um milhão de suicídios no mundo, enquanto que no Brasil são cerca de doze mil por ano, o que equivale a uma pessoa a cada quarenta e seis minutos. Analisamos o perfil das vítimas e as causas que mais levam uma pessoa a tirar a própria vida, sendo a depressão a responsável por 30% das mortes por suicídio. Trouxemos dados sobre os países com maior incidência de suicídio e reconhecemos que o suicídio mata mais que a malária, câncer e guerras.

            Ainda no capítulo um destacamos a preocupação referente ao suicídio por policiais que é quatro vezes maior do que em outras categorias de profissionais. Entre policiais a taxa de suicídio é de 23,9 a cada cem mil habitantes enquanto que no total da população é de 5,8. Definimos o significado de suicídio e a origem da palavra e trouxemos algumas curiosidades quanto a este ato, que sempre acompanhou a humanidade desde os primórdios da história humana, ressaltando que em civilizações antigas a mera tentativa de suicídio era punida com a morte e perda de bens.

            Consignamos que suicídio não é crime porque lesaria o princípio da alteridade, uma vez que não lesa bens jurídicos alheios.

            No capítulo dois tratamos do suicídio no ordenamento jurídico brasileiro. Falamos sobre as alterações trazidas ao Código Penal em decorrência da entrava em vigor da Lei 13968/2019 que acrescentou a automutilação à conduta e passou a admitir a tentativa uma vez que não exigiu mais na redação a ocorrência de um resultado, como era antigamente.

            Posteriormente, aventamos sobre o suicídio no Código Civil e concluímos que o beneficiário do suicídio não tem direito ao capital estipulado quando o segurado cometer suicídio nos dois primeiros anos de vigência do contrato, estando tal questão pacificada por conta da Súmula 610 do STJ.

            Versamos sobre o auxilio ao suicídio no Código Penal Militar, que possui certas similaridades ao mesmo delito previsto no Código Penal comum e por fim analisamos a Lei 13.819/2019 sobre a Política Nacional de Prevenção de Automutilação e do Suicídio que estabelece diversos objetivos e medidas a serem adotadas visando prevenir o suicídio e a automutilação.

            Finalmente, no capítulo três abordamos o “suicide by cop”, conceituando este fenômeno e reconhecendo que o termo mais correto seria “police-assisted suicide” ou suicídio assistido por policial. Conquanto seja um tema ainda pouco conhecido no Brasil, vimos que o termo surgiu na década de 1980, tendo se tornado mais popular a partir dos anos 2000. Observamos que as vítimas do suicídio assistido por policial, na grande maioria das situações, possuem as mesmas características das vítimas verificadas em outras formas de suicídio. O suicídio por policial consiste na forma em que a vítima opta por tirar a própria vida. Chegamos a conclusão de que não há crime para o policial que se vê diante desta espécie de suicídio, uma vez que sua conduta estará abarcada pela legitima defesa ou pelo estrito cumprimento do dever legal.

            Assim, dentre tudo o que foi abordado neste artigo, concluímos que o suicídio é um fenômeno social preocupante, com números elevadíssimos de vítimas, sendo necessária a adoção de políticas públicas efetivas que evitem a ocorrência do suicídio e da automutilação. A maior causa do suicídio é a depressão e esta doença é o novo “mal do século” de modo que estima-se que uma em cada quatro pessoas do mundo terá depressão em alguma fase da sua vida, o que exige estrema atenção. A criação de campanhas como Setembro amarelo e de políticas públicas como as estipuladas na Lei 13.819/2019 são bem vistas uma vez que mais de 90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados com o tratamento correto. Pela análise dos dispositivos penais, observamos que as penas cominadas aos agentes que auxiliam, induzem ou por qualquer meio contribuem para que outra pessoa cometa o suicídio são ínfimas. Quanto ao suicídio assistido por policial, resta necessária uma observação mais apurada das situações práticas, com o adequado treinamento dos policiais que lidam com esse fenômeno de alta complexidade e um reconhecimento dessas situações pela mídia de forma a enaltecer o trabalho policial e proteger a reputação das instituições de segurança pública haja vista que são condutas que visam o bem coletivo e estão abarcadas por excludentes de ilicitude.

 

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VEJA. Da redação. Suicídio é segunda causa de morte entre jovens de 15 a 24 anos, diz OMS. Publicado em 09/09/2019. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/saude/suicidio-e-segunda-causa-de-morte-entre-jovens-de-15-a-24-anos-diz-oms/> Acesso em 05/01/2021

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Sobre a autora
Aline Albuquerque Ferreira

Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Ex-Advogada. Pós-graduada em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público. Pós- graduanda em Direito Público. Possui graduação em direito pela Universidade Paulista (2011). Aprovada no IV Exame da Ordem. Tem experiência em direito, com ênfase em direito penal e direito do consumidor.Foi estagiária concursada do Ministério Público Estadual (área criminal) e Ministério Público Federal (área: tributária, constitucional). Foi estagiária da magistratura estadual de São Paulo na área criminal, estagiária na vara das execuções criminais de São Paulo e Vara das Execuções Fiscais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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