ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A VENDA CASADA

13/09/2021 às 17:55
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O ARTIGO DISCUTE O INSTITUTO DIANTE DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ.

ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A VENDA CASADA

Rogério Tadeu Romano

O artigo 39º do Código de Defesa do Consumidor determina:

É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos

A norma do inciso I proíbe a conhecida “operação casada” ou “venda casada”, por meio do qual o fornecedor pretende obrigar o consumidor a adquirir um produto ou serviço apenas pelo fato de ele estar interessado em adquirir produto ou serviço.

Na lição de Rizzato Nunes (Curso de Direito do Consumidor, 3ª edição, pág. 541), a regra do inciso I veda dois tipos de operações casadas:

a) O condicionamento da aquisição de um produto ou serviço a outro produto ou serviço; e

b) A venda da quantidade diversa daquela que o consumidor queira.

A expressão “sem justa causa” está atrelada à segunda parte da proposição, porquanto a norma diz: “bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”.

Concluiu Rizzato Nunes (obra citada) que dessa forma, a hipótese da letra a, isto é, o condicionamento da venda de um produto ou serviço à aquisição de outro produto ou serviço, é incondicionada. Não há justificativa nem por justa causa. Esta só e válida na quantidade ofertada.

Tenha-se que a operação casada pressupõe a existência de produtos e serviços que são usualmente vendidos separados.

O que a Lei prevê é a ampla liberdade de escolha do consumidor quanto ao que deseja consumir, não sendo lícita a imposição, do fornecedor, de qualquer produto ou serviço para aquisição de outro. Conforme Rizzatto Nunes “a operação casada pressupõe a existência de produtos e serviços que são usualmente vendidos separados”. Dessa forma, o que o fornecedor está proibido é de impor a aquisição conjunta de produtos ainda que o preço global seja mais barato que o unitário.

Fabrício Bolzan (Direito do Consumidor Esquematizado, 2013, p. 1633) destaca os seguintes critérios que deverão ser levados em conta quando da exigência do consumidor no tocante à vedação da venda casada.

· “[...] que os produtos e serviços sejam usualmente vendidos separados;

· Que a solicitação da unidade não desnature o produto – exemplo: se retirar um iogurte da cartela de seis, ninguém mais vai querer comprar os cinco remanescentes, nem poderia o fornecedor, nestes casos, vender o produto com a ausência de complemento;

· Que a conduta do consumidor não prejudique o fornecedor a ponto de este não conseguir mais vender determinado produto em razão da ausência de sua completude, contexto que ocorreria certamente caso o consumidor exigisse cem gramas a serem retiradas do saco de um quilo de arroz”.

O STJ entende que é considerada abusiva a prática de limitar a liberdade de escolha do consumidor vin­culando a compra de produto ou serviço à aquisição concomitante de outro produto ou serviço de natureza distinta e comercializado em separado, hipótese em que se configura a venda casada.

A denominada venda casada (tying arrangement) representa uma violação à boa-fé objetiva e consiste no prejuízo à liberdade de escolha do consumidor decorrente do condicionamento, subordinação e vinculação da aquisição de um produto ou serviço (principal – “tying”) à concomitante aquisição de outro (secundário – “tied”), quando o propósito do consumidor é, unicamente, o de obter o produto ou serviço principal.

A matéria foi objeto de importante discussão pela ministra Nancy Andrighi, no no REsp 1737428/RS, julgado em 12/03/2019.

Ali se disse que a essência do microssistema de defesa do consumidor se encontra no reconhecimento de sua vulnerabilidade em relação aos fornecedores de produtos e serviços, que detêm todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir e para quem produzir, sem falar-se na fixação de suas margens de lucro.

A boa-fé objetiva é uma norma de conduta que impõe a cooperação entre os contratantes em vista da plena satisfação das pretensões que servem de ensejo ao acordo de vontades que dá origem à avença, sendo tratada, de forma expressa, no CDC, no reconhecimento do direito dos consumidores de proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais bem como práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos ou serviços (art. , IV, do CDC).

Segundo a lesão enorme, são abusivas as cláusulas contratuais que configurem lesão pura, decorrentes da simples quebra da equivalência entre as prestações, verificada, de forma objetiva, mesmo que não exista vício na formação do acordo de vontades (arts. 39, V, 51, IV, § 1º, III, do CDC).

Uma das formas de violação da boa-fé objetiva é a venda casada ( tying arrangement ), que consiste no prejuízo à liberdade de escolha do consumidor decorrente do condicionamento, subordinação e vinculação da aquisição de um produto ou serviço (principal – tying) à concomitante aquisição de outro (secundário – tied), quando o propósito do consumidor é, unicamente, o de obter o produto ou serviço principal.

A venda casada às avessas, indireta ou dissimulada consiste em se admitir uma conduta de consumo intimamente relacionada a um produto ou serviço, mas cujo exercício é restringido à única opção oferecida pelo próprio fornecedor, limitando, assim, a liberdade de escolha do consumidor.

O CDC prevê expressamente uma modalidade de venda casada, no art. 39, IX, que se configura em razão da imposição, pelo fornecedor ao consumidor, da contratação indesejada de um intermediário escolhido pelo fornecedor, cuja participação na relação negocial não é obrigatória segundo as leis especiais regentes da matéria.

Disse, então, a ministra Nancy Andrighi, naquele julgamento:

“Segundo a boa-fé objetiva, prevista também de forma expressa no art. 422 do CC⁄02, as partes devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e de lealdade, de modo a permitir a concretização das justas expectativas que justificaram a celebração do contrato.

A boa-fé objetiva é, pois, uma norma de conduta que impõe a cooperação entre os contratantes em vista da plena satisfação das pretensões que servem de ensejo ao acordo de vontades que dá origem à avença.

De fato, a boa-fé objetiva obriga as partes a terem comportamento compatível com os fins econômicos e sociais pretendidos objetivamente pela operação negocial , para, de forma recíproca, atuarem “com consideração aos interesses comuns , em vista de se alcançar o efeito prático que justifica a própria existência do contrato (TEPEDINO, Gustavo ( et. al .). Código Civil interpretado conforme a Constituição da Republica. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 16, sem destaque no original).

No direito do consumidor, os contornos da boa-fé objetiva estão expressos, entre outros, no direito de: i) obtenção de informação adequada (art. , III, do CDC); ii) proteção contra a publicidade enganosa, abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais bem como práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos ou serviços (art. , IV, do CDC); e iii) modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais (art. , V, do CDC).

Segundo a lesão enorme, complementar à boa-fé objetiva e tratada especificamente no sistema de proteção ao consumidor, são abusivas as cláusulas que configurem lesão pura, decorrentes da simples quebra da equivalência entre as prestações , verificada, de forma objetiva, mesmo que não exista vício na formação do acordo de vontades .

Realmente, nosso CDC disciplinou expressamente a lesão enorme no art. 39, V, tornando defeso ao fornecedor exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva , e no art. 51, IV, e § 1º, III, fixando a abusividade de cláusulas que que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada e que se mostr [em] excessivamente onerosa [s] para o consumidor .

Assim, conforme destacado pela doutrina, isso quer dizer que a simples quebra da equivalência é suficiente para a extinção do contrato (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Cláusulas abusivas no Código de Defesa do Consumidor. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). Estudos sobre a proteção do consumidor no Brasil e no MERCOSUL. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, 1994, p. 13-32, sem destaque no original).

Nesse sentido, a cláusula abusiva é toda alteração da referida igualdade, própria da justiça comutativa, que desequilibre o contrato, tornando-o desvantajoso ao consumidor enquanto confere vantagem sem co-respectivo (sem sinalagma, do grego, câmbio) ao fornecedor (Luciano de Camargo Penteado. As cláusulas abusivas e o direito do consumidor, Jurisprudência Sistemática, RT, 725⁄93, mar. 1996).

.......

Uma das condutas que podem ser praticadas pelos fornecedores que prejudica a liberdade de escolha na contratação pelo consumidor é a venda casada ( tying arrangement ), que se configura na subordinação e vinculação de a) aquisição conjunta de dois produtos ou serviços; ou de b) limites quantitativos na aquisição de produtos ou serviços.

Trata-se, com efeito, do condicionamento da aquisição de um produto ou serviço (principal – tying ) à concomitante aquisição de outro (secundário – tied ), quando o propósito do consumidor é, unicamente, o de obter o produto ou serviço principal .

De fato, na venda casada, o exercício dessa subordinação ou vinculação entre produtos e serviços resulta, sob o prisma do consumidor, na declaração de vontade irreal , de aquisição de um segundo produto ou serviço absolutamente dispensável (MIRAGEM, Bruno Nubens. Direito do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2008, p. 186).

De fato, a venda casada constante do artigo 39, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor se perfaz quando o fornecedor obriga o consumidor , na compra de um produto, a levar outro que não deseje, apenas para ter direito ao primeiro, seu verdadeiro intento , circunstância que violaria sua liberdade de escolha, direito básico do consumidor (art. 6º, inciso II, do CDC) (Melo, Tasso Duarte de. A definição de venda casada segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, Curitiba, v. 4, n. 13, p. 77-91, mar. 2014).

......

A doutrina e a jurisprudência enfrentaram, ademais, situação fática que se convencionou denominar venda casada às avessas, indireta ou dissimulada.

Referida prática também abusiva consiste em se admitir uma conduta de consumo intimamente relacionada a um produto ou serviço, mas cujo exercício, é restringido à única opção oferecida pelo próprio fornecedor, limitando, assim, a liberdade de escolha do consumidor.

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Essa circunstância é bem ilustrada na hipótese da exploração de exibição cinematográfica paralela à de serviços de lanchonete.

Ao examiná-la, esta e. 3ª Turma concluiu que ao compelir o consumidor a comprar dentro do próprio cinema todo e qualquer produto alimentício, a administradora dissimula uma venda casada e, sem dúvida alguma, limita a liberdade de escolha do consumidor (art. , II, do CDC), o que revela prática abusiva: não obriga o consumidor a adquirir o produto, porém impede que o faça em outro estabelecimento (REsp 1331948⁄SP, Terceira Turma, DJe 05⁄09⁄2016).

Situação semelhante é enfrentada na contratação de seguro destinado a garantir o risco de financiamento bancário. Em relação ao ponto, a 2ª Seção definiu, em tese repetitiva, que nos contratos bancários em geral, o consumidor não pode ser compelido a contratar seguro com a instituição financeira ou com seguradora por ela indicada , pois em qualquer contrato bancário, configura venda casada a prática das instituições financeiras de impor ao consumidor a contratação de seguro com determinada seguradora (REsp 1639259⁄SP, Segunda Seção, DJe 17⁄12⁄2018).

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Uma das formas de se praticar a venda casada especificamente previstas no CDC é a contida no art. 39, IX, de referido diploma legal, que trata da recusa à venda direita de qualquer bem a serviço a consumidor que disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento.

Essa prática abusiva se configura em razão da imposição, pelo fornecedor ao consumidor, da contratação indesejada de um intermediário escolhido pelo fornecedor, cuja participação na relação negocial não é obrigatória segundo as leis especiais regentes da matéria.

Conforme destaca a doutrina, o cerne dessa conduta abusiva é a de se restringir a escolha do consumidor , pois cuida-se de imposição de intermediários àquele que se dispõe a adquirir, diretamente , produtos e serviços mediante pronto pagamento (GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, Vol. I, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2011, pág. 393, sem destaque no original).”

Essas as linhas a traçar sobre a matéria retiradas daquele emblemático julgamento.

Para o STJ, a venda casada ocorre em virtude do condicionamento a uma única escolha, a apenas uma alternativa, já que não é conferido ao consumidor usufruir de outro produto senão aquele alienado pelo fornecedor (REsp 1331948/SP).

O STJ considera ainda que “ao compelir o consumidor a comprar dentro do próprio cinema todo e qualquer produto alimentício, o estabelecimento dissimula uma venda casada (art. 39, I, do CDC), limitando a liberdade de escolha do consumidor (art. , II, do CDC), o que revela prática abusiva.” (REsp 1331948/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 14/06/2016, DJe 05/09/2016).

Nos contratos bancários em geral, o consumidor não pode ser compelido a contratar seguro com a instituição financeira ou com seguradora por ela indicada. Assim, representa “venda casada” obrigar o consumidor a contratar seguro de proteção financeira (REsp 1639259/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, julgado em 12/12/2018, DJe 17/12/2018).

São conhecidas decisões do STJ na discussão de “venda casada” no sistema financeiro da habitação:

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. TAXA REFERENCIAL (TR). LEGALIDADE. SEGURO HABITACIONAL. CONTRATAÇÃO OBRIGATÓRIA COM O AGENTE FINANCEIRO OU POR SEGURADORA POR ELE INDICADA. VENDA CASADA CONFIGURADA.

1. Para os efeitos do art. 543-C do CPC:

1.1. No âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, a partir da Lei 8.177/91, é permitida a utilização da Taxa Referencial (TR) como índice de correção monetária do saldo devedor. Ainda que o contrato tenha sido firmado antes da Lei n.º 8.177/91, também é cabível a aplicação da TR, desde que haja previsão contratual de correção monetária pela taxa básica de remuneração dos depósitos em poupança, sem nenhum outro índice específico.

1.2. É necessária a contratação do seguro habitacional, no âmbito do SFH. Contudo, não há obrigatoriedade de que o mutuário contrate o referido seguro diretamente com o agente financeiro, ou por seguradora indicada por este, exigência esta que configura “venda casada”, vedada pelo art. 39, inciso I, do CDC.

2. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido.REsp 969129/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 15/12/2009. (grifo nosso)

SFH. SEGURO HABITACIONAL. CONTRATAÇÃO FRENTE AO PRÓPRIO MUTUANTE OU SEGURADORA POR ELE INDICADA. DESNECESSIDADE. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. VENDA CASADA.

- Discute-se neste processo se, na celebração de contrato de mútuo para aquisição de moradia, o mutuário está obrigado a contratar o seguro habitacional diretamente com o agente financeiro ou com seguradora por este indicada, ou se lhe é facultado buscar no mercado a cobertura que melhor lhe aprouver.

- O seguro habitacional foi um dos meios encontrados pelo legislador para garantir as operações originárias do SFH, visando a atender a política habitacional e a incentivar a aquisição da casa própria. A apólice colabora para com a viabilização dos empréstimos, reduzindo os riscos inerentes ao repasse de recursos aos mutuários.

- Diante dessa exigência da lei, tornou-se habitual que, na celebração do contrato de financiamento habitacional, as instituições financeiras imponham ao mutuário um seguro administrado por elas próprias ou por empresa pertencente ao seu grupo econômico.

- A despeito da aquisição do seguro ser fator determinante para o financiamento habitacional, a lei não determina que a apólice deva ser necessariamente contratada frente ao próprio mutuante ou seguradora por ele indicada.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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