A partir da identificação inicial de casos do novo coronavírus (Covid-19) em seres humanos até a consolidação de um infeliz quadro pandêmico, observa-se a necessidade de distanciamento ou isolamento social como um esforço coletivo para evitar a propagação do vírus. Desde então, foram aprovadas diversas medidas legais especiais a fim de assegurar o cumprimento das recomendações da Organização Mundial da Saúde (PEIXOTO; BECKER,2020).
Neste contexto, por se tratar de uma circunstância que exerce influência direta sobre relações políticas, sociais, culturais e econômicas, o direito privado figura como objeto de novos conflitos. Por exemplo, discute-se sobre os efeitos da pandemia sobre a continuidade de contratos, responsabilidade das partes em relações de consumo, suspensão de contratos trabalhistas, modificações na guarda de menores no âmbito de direito de família e, até mesmo sobre o funcionamento do poder judiciário (MENEZES; AMORIM, 2020).
As consequências de uma pandemia manifestam-se nos mais variados setores da sociedade. Escolas, teatros, academias, universidades, lojas, entre outros, precisaram parar ou, pelo menos, reduzir o exercício de suas atividades com o objetivo de desacelerar a propagação do vírus entre a população. Da mesma forma, o próprio poder judiciário sofreu paralizações, suspensões de prazos e de determinadas atividades (PEIXOTO; BECKER, 2020).
Em um primeiro momento, é importante ressaltar que por meio do Projeto de Lei n. 1.179/2020, tramita a análise do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET). A intenção do legislador, no caso, demonstra preocupação em efetivar a uniformização de decisões judiciais e garantir a qualidade no trabalho do Ministério Público, Defensoria Pública e advogados em geral. Além disso, intenta prognosticar possíveis contendas individuais e coletivas para solucioná-las acertivamente (MARTINS, 2020).
A insegurança jurídica apresenta-se como uma preocupação latente para aqueles que laboram no meio jurídico, pois a suspensão de atividades e os termos nos quais essa flexibilização acontecem não acontecem de forma padrozinada. Desse modo, resta evidenciada a relevância do referido projeto de lei.
Processos tramitarão com maior lentidão, prazos serão perdidos, muitos advogados não terão condições de arcar com suas estruturas ou com suas próprias subsistências. Em se prolongando no tempo, far-se-á indispensável que as principais entidades que gerem o sistema processual, aí incluídos, dentre outros, o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Procuradoria-Geral da República, envidem esforços para que as medidas possam ser adotadas de modo mais uniforme e para que não se gere uma completa paralisação da atividade jurisdicional. (PEIXOTO, BECKER, 2020, s/n)
Ademais, faz-se necessário o questinamento acerca do cumprimento dos mais diversos contratos em curso já que, em um momento tão incerto e imprevisível, muitas famílias serão afetadas com flutuação em sua renda habitual, impossibilitando a continuade de obrigações anteriormente assumidas. Igualmente, as paralizações impossibilitam que diversas empresas continuem a cumprir suas atividades. Neste sentido, é possível analisar:
(i) a pandemia como evento de força maior ou caso fortuito, a acarretar a impossibilidade objetiva no cumprimento da prestação; (ii) a pandemia como evento que gera excessiva onerosidade a um dos contratantes; ou, ainda, (iii) a pandemia como evento que desequilibra (por vezes dramaticamente) a situação patrimonial do contratante, sem repercussão direta na economia interna contrato. (TAPEDINO; OLIVA; DIAS, 2020, s/n)
Em tais ocasiões, percebe-se que os efeitos jurídicos resultantes de cada uma das possibilidades culminarão em alto número de resoluções e revisões contratuais, pleitos de exceção de contrato não cumprido e abatimento no preço. Ademais, nos casos em que a pandemia afete apenas a condição financeira do indíviduo envolvido e não a relação contratual em si, espera-se que seja feito o uso dos tópicos acerca da excessiva onerosidade das obrigações, previstos no Código Civil de 2002 (TAPEDINO; OLIVA; DIAS, 2020).
Sendo assim, o imprevisível e extraordinário contexto pandêmico pode flexibilizar as condições dos contratos em vigência. A ideia é que cláusulas abusivas sejam reavaliadas e a interpretação dos termos dispostos em tais documentos tenha por objetivo atender condições possíveis e razoáveis para a continuidade do acordo.
[...] os impactos e os efeitos advindos da pandemia foram e/ou poderão ser suficientemente capazes de tornar impossível ou excessivamente onerosa a execução das obrigações pactuadas, sob aquela relação mercantil, materializada pelo instrumento contratual. Vale dizer: a pandemia, presente de maneira concreta e real nas relações jurídico-empresariais, pode ser capaz sim, de inviabilizar, por completo, o fiel cumprimento da obrigação, não restando outro meio viável de se promover a obrigação. (MARQUES, 2020, p.6)
Por fim, além do âmbito jurídico-econômico, a pandemia acarreta efeitos complexos para o convívio familiar e social, afetando o direito de família. O receio do contágio, por muitas vezes, causa o surgimento de conflitos relativos à guarda de menores já que o convívio pode ser negado aos genitores não guardiões.
Da mesma forma, surgem conflitos relativos ao abandono afetivo de idosos que não auferem cuidado familiar ou, no extremo oposto, pode acarretar abusos relativos à usurpação da autonomia de decisões sobre suas próprias vidas sob a escusa de não serem capazes de cuidar de si mesmos (MENEZES; AMORIM, 2020).
Considerações finais
A pandemia causada pelo coronavírus (Covid-19) é responsável por diversas alterações legislativas que influenciam diretamente no funcionamento do mundo jurídico atual. As transformações alcançam diversos setores da vida humana e, assim, incitam adaptações no direito positivo a fim de que a norma acompanhe o contexto social.
Portanto, é possível afirmar que o ordenamento jurídico (positivado ou não) manifesta- se como um reflexo da realidade social, transformando-se gradualmente em esforço para lidar com a imprevisibilidade e inúmeros desafios decorrentes do dever de garantir o direito à vida.
Referências
MARQUES, Antônio Terêncio. Breves linhas sobre o impacto do coronavírus – covid 19 nas relações empresariais. Migalhas. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/324489/breves-linhas-sobre-o-impacto-do-coronavirus-covid-19-nas-relacoes-empresariais. Acesso em 20 maio. 2020.
MARTINS, Humberto. A regulação de direito privado ante os efeitos da pandemia da Covid-19: o PL 1.179/20 (Parte I). Consultor Jurídico. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-27/regulacao-direito-privado-durante-epidemia-pl-1 17920-parte. Acesso em 20 maio. 2020.
MENEZES, Joyceane Bezerra de; AMORIM, Ana Mônica Anselmo de. Os impactos do COVID-19 no direito de família e a fratura do diálogo e da empatia. civilistica.com, v. 9, n. 1, p. 1-38, 9 maio 2020.
PEIXOTO, Marco Aurélio; BECKER, Rodrigo. Pandemia jurídica – impactos do novo coronavírus na atividade jurisdicional. JOTA. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/pandemia-juridica-impactos-do-novo-coronavirus-na-atividade-jurisdicional-20032020. Acesso em 20 maio. 2020.
TAPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato; DIAS, Antônio Pedro. Contratos, força maior, excessiva onerosidade e desequilíbrio patrimonial. Consultor Jurídico. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-20/opiniao-efeitos-pandemia-covid-19-relacoes-patrimoniais. Acesso em 20 maio. 2020.