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Estado liberal

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29/12/2006 às 00:00
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Estado de Direito Liberal

            Pode-se dizer que o Estado de Direito e o Estado Liberal são tipos distintos? Ou será que historicamente os termos e as realidades que expressam foram-se coadunando, alicerçando-se num único tipo de Estado, numa estrutura uniforme?

            Em geral, os manuais de Ciência Política e a doutrina jurídica (Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional), costumam associar Estado de Direito e Estado Liberal, sem grandes diferenças. Tanto são tidos como sinônimos que há subsunção ou soma na terminologia e na nomenclatura, ou seja, diz-se simplesmente Estado de Direito Liberal - o que, evidentemente, é correto, mas só em parte.

            Afinal, será mesmo que não se encontra nenhuma diferença jurídica e política entre esses dois tipos de Estado?

            Será que a própria qualidade da estrutura democrática que veio se formando nestes séculos não encontrou bases históricas ou ganhos conceituais e institucionais que pudessem diferenciar o liberalismo do Estado de Direito?

            Assim, podemos ver que há alguns aspectos do Estado de Direito que vieram diferenciando-se ou se alargaram no contexto histórico do Estado Liberal. Por exemplo, o Estado Liberal não se contentou em assegurar que vigorasse o governo das leis, e assim foram propostos meios políticos ou garantias constitucionais para que o Estado fosse realmente controlado e se mantivesse distante dos afagos da tirania – em sentido estrito, Montesquieu falará da divisão dos poderes. Já Locke dirá que, fortalecendo o espaço de ação dos indivíduos, conseqüentemente o Estado sofrerá uma limitação em seus avanços institucionais. Não nos esqueçamos de que o objetivo seria controlar o poder supremo que sobreveio do antigo Estado Moderno.

            Ainda referente a este nível de diferenças, mas agora mais restritamente à organização institucional, ao funcionamento e à permanência de cada um dos Estados, talvez se possa acentuar que o Estado Liberal produziu garantias institucionais a fim de que ele próprio não tivesse como se transformar em tirania.

            De forma simples e direta: o Estado Liberal, além do império da lei [07], a regra básica do Estado de Direito, produziu amarras, ataduras, vínculos políticos, jurídicos e institucionais que o impedem de regressar ao estágio da tirania. O caso típico é o da transferência direta de direitos aos cidadãos, a fim de que resista às tentativas da tirania: 1) o direito de resistência, invocado antes da ocorrência do golpe; 2) o direito de revolução, quando se requisita, violentamente, o retorno ao Estado de Direito.

            O Estado liberal, portanto, constituiu regras e fundamentos inamovíveis, direitos e garantias intransponíveis, a fim de que não houvesse "quebra de continuidade institucional" (golpes militares ou constitucionais), e assim também poder salvaguardar o Estado de Direito que melhor interessava ao capitalismo da época. Esse mecanismo de auto-preservação do que há de liberal no Estado pode ser entendido ou exemplificado pelas cláusulas pétreas. Pois, se de um lado as cláusulas de pedra resguardam os direitos civis e individuais (voto livre, secreto e soberano), de outro, impedem que a violação desses direitos venha a ameaçar o próprio Estado de Direito: as cláusulas pétreas proíbem terminantemente que se altere a "forma federativa do Estado".

            Isso ocorre porque o Estado Liberal criou e fortaleceu cláusulas (garantias institucionais e constitucionais) de proteção, respeito e certa aplicabilidade das normas, dos princípios e dos direitos do próprio Estado de Direito. Essas regras de segurança jurídica do Estado de Direito, na verdade, nada mais são do que um desdobramento do Estado Constitucional americano originário (à época da Revolução Americana) e o intrincado mecanismo elaborado em torno do sistema de freios e contrapesos. O Estado cria regras duras para impedir que ele, o próprio Estado, atente contra o Estado de Direito.

            Outra diferença diz respeito às bases históricas que originaram um modelo e outro – enquanto o Estado de Direito é um modelo teórico, o Estado liberal tem fortes laços na Revolução Francesa, uma conotação histórica de marcantes colorações liberais e burguesas. Dessa forma, enquanto o Estado de Direito se aplica a qualquer tipo de Estado (democrático, socialista ou nacional-socialista [08]), o Estado Liberal perdura até a década de 1930, na virada da quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, EUA, na famosa crise de superabundância, ou anos 50-60, com o Welfare State.

            A partir deste momento, o Estado Liberal passa a intervir de maneira mais acirrada na economia. O Estado Liberal é um modelo que se encerrou com o New Deal, pois a partir daí o Estado passou a intervir mais fortemente na economia, gerando o chamado Estado Social. Em suma, o Estado liberal é um Estado absenteísta e o Estado Social mantêm-se pela via do protecionismo. Contudo, deve-se frisar que ambos são representantes típicos do Estado Capitalista, o que se confirma pelo fato de que o Estado Social foi gerado em função da Revolução Russa (1917), como oposição ao socialismo.

            Agora, por fim, é preciso que se pergunte: quando é que todo esse "quadro de defesa e segurança jurídica" se tornará realidade para a maioria? Enfim, quando o Estado de Direito seguirá mais Rousseau e menos Locke, isto é, quando o Estado de Direito poderá refletir a vontade geral – e não apenas a vontade dos liberais, dos capitalistas?

            Essa temática será desenvolvida na parte final do texto, momento em que poderemos relacionar/comparar o individualismo, de Locke, e a democracia de Rousseau.


Individualismo

            Por motivos óbvios, o Estado Liberal também será melhor compreendido se seguirmos aprofundando nosso entendimento sobre o próprio liberalismo. Neste primeiro momento utilizaremos um texto clássico no Brasil, a fim de entendermos o Estado Liberal. Trata-se da obra que Paulo Bonavides dedicou especialmente à análise do Estado Liberal, em confronto com o Estado Social.

            Mas antes disso, relembremos que também o liberalismo será definido com base em alguns princípios:

            a)tripartição do poder (interdependência);

            b)sistema representativo (representação virtual);

            c)intangibilidade dos direitos fundamentais do homem:

            -os direitos fundamentais, principalmente os individuais, são direitos inquestionáveis porque são considerados universais e naturais.

            Com isso podermos investigar melhor os reais propósitos do liberalismo político que historicamente veio administrando o Estado Liberal. Leibholz, citado por Bonavides (2004), define os propósitos do liberalismo, iniciando-se o debate pela questão da liberdade:

            O valor essencial que inspira o liberalismo não se volta para a comunidade, mas para a liberdade criadora do indivíduo dotado de razão

. Partindo desse ponto de vista, havia o liberalismo desenvolvido um sistema metafísico completo, fundado na fé de que uma solução racional total podia resultar do livre concurso das opiniões individuais em todos os domínios da vida (Bonavides, 2004, p. 53 – grifos nossos).

            A razão está presente no projeto político liberal porque já se trata do iluminismo, da emancipação da consciência do indivíduo, transformando-o em cidadao responsável por seus atos e atuante na construção dos valores morais (liberais) que deveriam guiar a sociedade. Neste caso, poderíamos pensar em Kant, mas também em Rousseau, como veremos na última parte do texto. Agora, é evidente que será dado destaque ao indivíduo no contexto social, mas é como se este indivíduo tivesse que se fazer por si só. De certa forma, isto ocorre porque a personalidade individual que nos inclina às conquistas individuais precede ao Estado. Ao Estado cabe não atrapalhar esse processo de crescimento individual, da emancipação da razão individual de cada cidadão:

            A importância que tem o indivíduo para o conteúdo do liberalismo clássico manifesta-se, com particular relevo, no fato de que, originariamente, o valor da personalidade era concebido como ilimitado e anterior ao Estado

. É sob esse aspecto que se introduz a doutrina liberal nas primeiras Constituições escritas, as Cartas americanas e francesas, sujas teses adquiriram, para a democracia liberal, o valor de uma profissão de fé religiosa e mística. Nos Estados Unidos, essa mentalidade fundada na crença da personalidade soberana e ilimitada do indivíduo, precedendo o Estado, se manteve até o fim do século XIX, graças à atitude conservadora da Suprema Corte (Bonavides, 2004, p. 53 – grifos nossos).

            Depois, Bonavides (2004), interpretando o autor alemão Vierkandt, nos diz que a presença do Estado deve ser suavizada, relativisada e que, de certo modo, quanto mais ausente ou distante, melhor: "Quanto menos palpável a presença do Estado nos atos da vida humana, mais larga e generosa a esfera de liberdade outorgada ao indivíduo. Caberia a este fazer ou deixar de fazer o que lhe aprouvesse" (Bonavides, 2004, p. 60 – grifos nossos).

            Bonavides ainda irá advertir, mais uma vez, para a necessidade da liberdade criadora, no espaço liberal, e certamente desenvolvida sob o espírito capitalista, pois: "Só tem valor a liberdade como condição prévia, como base de um procedimento ativo e criador, mediante o qual o Homem, sem o estorvo de qualquer pressão estranha, e sem o encadeamento de uma baixa paixão, siga as suas próprias aptidões" (Bonavides, 2004, p. 60 – grifos nossos).

            Quanto ao Direito propriamente dito, os clássicos liberais (Locke e Montesquieu) definirão como essencial ao homem (e ao sistema capitalista) o direito à propriedade. A liberdade, no fundo, será uma liberdade suficiente para se requerer e para se usufruir do direito de propriedade: "Desses direitos, o mais típico era o direito de propriedade, que se apresenta no contratualismo lockiano por direito anterior e superior a toda criação jurídica do Homem, depois da passagem do Estado de Natureza ao Estado de Sociedade" (Bonavides, 2004, p. 168 – grifos nossos).

            Novamente, podemos ver esta análise tanto em Locke quanto em Montesquieu: "Em ambos os casos, com Locke ou Montesquieu, a idéia que persiste no fundo do debate é esse princípio invariável do liberalismo – a proteção e tutela do indivíduo, premissa essencial do sistema capitalista" (Bonavides, 2004, p. 168).

            Ao Estado Liberal ou ao liberalismo, de forma mais ampla, seria dada a primazia da defesa da própria liberdade pública, da liberdade política do cidadão, como um freio necessário aos Estados não-liberais ou simplesmente totalitários. Bonavides cita o brasileiro J. P. Galvão de Souza: "É preciso defender a dignidade humana contra as violências do Estado Totalitário, que não existe só nas chamadas democracias populares, mas é gerado nas democracias ocidentais herdeiras do liberalismo, em virtude dos princípios deste mesmo liberalismo" (Bonavides, 2004, p. 60).

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            Então, como podemos ver, as relações entre Estado e Indivíduo deveriam ser simples, limitando-se às querelas e proteções jurídicas:

            Qual deveria ser a relação estabelecida, então, entre Estado e indivíduo, já que se espera, no Estado Liberal, que o próprio Estado não mais seja considerado um fim em si mesmo? O Estado Liberal deveria se limitar a manter a ordem jurídica: "E essa ordem será tanto mais completa e adequada quanto mais larga a liberdade de iniciativa que se permitir ao indivíduo num círculo de ampla segurança jurídica" (Bonavides, 2003 p. 87 – grifos nossos).

            Uma outra face desse mesmo Estado Liberal será revelada pelo Estado Laico, que é de ideologia liberal, mas que agora emprega um maior efetivo na defesa intransigente da liberdade religiosa, na separação clara entre Estado e Igreja e na defesa do que o próprio Locke chamará de tolerância religiosa. Portanto, o Estado Liberal clássico ainda produziu o substrato do princípio da tolerância (antes religiosa e depois política).

            Mas, o que é Estado Laico e tolerância religiosa e política?


Estado Laico

            A secularização da política no âmbito do próprio Estado Moderno já antecipava o Estado Liberal. Porém foi somente no Estado Liberal que se (a)firmou o princípio da liberdade religiosa, e que se desdobrou com o tempo no princípio da tolerância religiosa. Assim, gradativamente, continuamente transformou-se no princípio da liberdade e da tolerância política. E por isso abordaremos também este aspecto a seguir.

            O liberalismo erigido à época da formação do chamado Estado Liberal (pelo menos entre a Revolução Inglesa, 1689, e a Francesa, 1789) desenvolveu, articulou e angariou novas dimensões para a própria idéia e prática da liberdade. E assim é que esse longo processo de desenvolvimento e de formação do Estado Liberal viria assegurar teoricamente que: ou todos são livres ou ninguém o é; se um não é livre, nenhum é. O capitalismo necessitava de mão-de-obra livre e, em regra, não poderia conviver com o trabalho escravo. Por isso, essa profunda e radical dimensão liberal da liberdade também estabeleceu uma relação com a igualdade formal [09] – ou seja, só é igual (em direitos) quem é livre (para usufruí-los) [10]. No capitalismo vigente, o cidadão é livre para vender força de trabalho.

            A liberdade que se entendia, tomando por base esse processo histórico, era justamente a liberdade religiosa e certamente a mais complicada de ser tomada, uma vez que o poder absolutista (essa fase de pré-liberação do Estado) foi, acima de tudo, um poder religioso. Em vários momentos anteriores à laicização do Estado (separação do Estado, da política, e da religião), o poder do Papa (papado) era o símbolo maior do poder terreno. A secularização da política demandou a geração e a aceitação da crença de que os homens eram capazes de se organizar socialmente, sob o controle do Estado, para viverem: Deus deve cuidar do céu e os homens e sua política se incumbirão da Terra. Porém, dita há uns 200 anos, essa frase levaria qualquer um à fogueira.

            Como ensina Locke, a liberdade religiosa precedeu qualquer noção ou prática da liberdade, pois a liberdade de credo pressupõe a liberdade de pensamento e só depois a liberdade de expressão, de reunião, de associação, de participação política. O livre arbítrio denota a exteriorização da própria consciência, pois a ação política consciente é decorrente da livre formação do pensamento:

            É que o Estado não pode atribuir nenhum novo direito à igreja como também não, inversamente, a igreja ao Estado. Assim, a igreja, quer o magistrado a ela adira ou a abandone, permanece sempre a mesma que antes, uma sociedade livre e voluntária (...) O poder civil é o mesmo em toda a parte e não pode conferir uma autoridade eclesiástica maior a um príncipe cristão do que a que pode conferir a um príncipe pagão, isto é, não pode conferir nenhuma (...) Ninguém, nenhuma igreja e até nenhum Estado tem, pois, qualquer direito de atentar contra os bens civis de outrem nem, sob pretexto da religião, de o despojar das suas posses terrestres. Quem pensar de outra maneira, gostaria que pensasse no número infinito de processos e de guerras que assim proporciona ao gênero humano; no incitamento à pilhagem, ao assassínio, aos ódios eternos: em nenhum lado a segurança ou a paz e menos ainda a amizade, poderão se estabelecer e conservar entre os homens, se houvesse de prevalecer a opinião de que a soberania se funda na graça e que a religião deve propagar-se pela força e pelas armas (Locke, 1987, pp. 97-99).

            A necessidade de o Estado se tornar laico, portanto, exige tanto destronar o poder quanto assegurar que o Estado não vá regular a religião. O Estado deve ser reprimido para não se arvorar como detentor de uma religião oficial ao mesmo tempo em que desautoriza outras práticas religiosas ou opções ideológicas. O Estado deve ser ateu, independentemente do que o governo ou o próprio governante confesse. O Estado Laico, por fim, deveria encontrar respaldo, reflexo na própria lei que regula o Poder Político em torno do Estado Liberal.

            Ainda é importante frisar que o Estado Laico também concorre para a secularização do Direito:

            A passagem dos comportamentos pelo crivo da inocência e da culpabilidade foi separada da gestão das almas e do policiamento das leis de Deus para ser confiada às instituições de uma justiça humana responsável pelo direito criado por cidadãos para reger suas interações; pode-se qualificar essa passagem de secularização (Assier-Andrieu, 2000, p. 305).

            Fora do contexto liberal e religioso inglês (que ainda se debatia em defesa do protestantismo), sob forte influência de Rousseau, na França, a liberdade política ganharia mais peso e densidade, ao se equiparar liberdade e democracia ou liberdade e participação. Então, em Rousseau, de modo mais contundente, a liberdade virá associada a um projeto político mais radical, mais profundo, uma vez que não bastava a idéia da liberdade vigiada pela lei. Aliás, a esta liberdade negativa, Rousseau irá propor a democracia radical, a democracia de raízes mais profundas.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado liberal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1276, 29 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9335. Acesso em: 25 abr. 2024.

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