ANOTAÇÕES AO CRIME DE FRAUDE A CREDORES
Rogério Tadeu Romano
O Estadão, em 21 de setembro do corrente ano, noticiou que o MP paulista quer saber se a Odebrecht estava quebrada pouco antes de pedir recuperação judicial. A suspeita é de fraude a credores.
Observo ainda aquela coluna:
“O Ministério Público paulista quer que o TJ de São Paulo determine uma investigação contábil para saber se a Odebrecht (agora Novonor) estava quebrada ou não em 2016 e em 2018, pouco antes de pedir recuperação judicial. A suspeita é de que pode ter havido fraude aos credores. Nessa data, a Odebrecht, já muito alvejada pela Lava Jato, rolou dívidas com os grandes bancos. Eles deram mais dinheiro e trocaram garantias pouco líquidas por ações da Braskem, a maior petroquímica das Américas. Procurada, a empresa não quis se manifestar.”
A fraude a credor é a patologia do crédito.
Dispõe o artigo 168 da Lei de Falências:
“Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem.
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.”
Era a falência fraudulenta na antiga lei de falências.
No artigo 187 cogitava-se da pena de reclusão para os atos fraudulentos praticados pelo devedor, antes ou depois da falência:
a) Com o fito de criar ou assegurar injusta vantagem para si ou para outrem;
b) De que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores.
O ato fraudulento é lesivo, ofensivo, danoso ou de que possa resultar prejuízo ou dano, como bem revelou José da Silva Pacheco(Processo de falência e concordata, 5ª edição, pág. 925).
Ainda na lição de José da Silva Pacheco(obra citada) para que esse ato seja fraudulento, faz-se mister que o agente o tenha praticado, visando a uma injusta vantagem para si ou para outrem e que do mesmo resulte ou possa resultar prejuízo aos credores.
A verificação, por certo, tem que ser objetiva, sem se indagar da intenção do agente de prejudicar ou não. Desde que o ato praticado resulte prejuízo ou possa resultá-lo, o ato é fraudulento.
Há, por outro lado, várias afirmações respeitáveis no sentido de que não possa haver aplicação de coautoria ao tipo legal. Mas o não empresário somente poderá ser coautor, ter o domínio do fato, se praticar esse crime em concurso de agentes. Sozinho, por óbvio, não.
É de todo importante a realização de um laudo pericial, prova pericial, máxime a sua importância para o caso.
No crime falimentar o objeto jurídico está na proteção ao crédito público.
A Lei n. 14.112/20 acrescentou o art. 6º-A à Lei de Falências, vedando expressamente ao devedor, até a aprovação do plano de recuperação judicial, a distribuição de lucros ou dividendos a sócios e acionistas, sob pena de responder pelo art. 168.
No crime versado há a fraude condenável.
Ensinou Manoel Pedro Pimentel (Legislação penal especial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 116-117) que “a fraude é a simulação posta a serviço do engano. De um recurso natural, que originariamente era, provendo as necessidades de seres vivos, converteu-se em arma perigosa da malícia quando empregada pelo homem para enganar o semelhante. O dano resultante dá a medida da fraude e clama, em certos casos, pela defesa dos bens ou interesses tutelados através de enérgicas medidas penais”.
Como disse Ricardo Antônio Andreucci(O crime falimentar de fraude a credores – empório do direito) a “vantagem indevida” a que se refere o dispositivo, é somente de natureza econômica ou traduzível em valor econômico, contrária ao direito.
O elemento subjetivo do tipo é o dolo. Esse dolo é específico, pois da leitura do artigo citado tem-se que ““com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem”. Nesse caso, a figura típica exige um particular elemento subjetivo para a sua integração, consistente em determinada finalidade. O fato típico, portanto, somente estará completo se estiver presente o particular elemento subjetivo, como bem disse Ricardo Antônio Andreucci. .
Trata-se de crime formal que ocorre com a consumação do ato fraudulento, independente do dano que venha a trazer a terceiros. A consumação ocorre também com a distribuição de lucros ou dividendos a sócios ou acionistas antes da aprovação do plano de recuperação judicial. A tentativa é admissível, se fracionável o “iter criminis”.
A sentença que decreta a falência, de índole declaratória, é condição objetiva de punibilidade. De sorte que não há falar em tal crime se não há ato judicial que a sentença que decreta a falência, conceda a recuperação judicial ou extrajudicial.
O § 1º prevê causa de aumento de pena 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se o agente elabora escrituração contábil ou balanço com dados inexatos; omite, na escrituração contábil ou no balanço, lançamento que deles deveria constar, ou altera escrituração ou balanço verdadeiros; destrói, apaga ou corrompe dados contábeis ou negociais armazenados em computador ou sistema informatizado; simula a composição do capital social; ou ainda destrói, oculta ou inutiliza, total ou parcialmente, os documentos de escrituração contábil obrigatórios.
O § 2º prevê aumento de pena de 1/3 (um terço) até metade se o devedor manteve ou movimentou recursos ou valores paralelamente à contabilidade exigida pela legislação, inclusive na hipótese de violação do disposto no art. 6º-A.
Esse parágrafo segundo sofreu alteração em sua redação pela Lei n. 14.112/20, passando a prever a causa de aumento de pena de 1/3 (um terço) até a metade também para a hipótese de infração ao disposto no art. 6º-A da Lei de Falências, que veda ao devedor, até a aprovação do plano de recuperação judicial, a distribuição de lucros ou dividendos a sócios acionistas.
Por seu turno, o §3º tratou do concurso de pessoas, estabelecendo que, nas mesmas penas incidem os contadores, técnicos contábeis, auditores e outros profissionais que, de qualquer modo, concorrerem para as condutas criminosas descritas no artigo, na medida de sua culpabilidade. Aplica-se, aqui, o artigo 29 do Código Penal, na forma de coautoria e ainda de participação.
Por fim, o §4º estabeleceu causa de redução ou substituição da pena. Tratando-se de falência de microempresa ou de empresa de pequeno porte, e não se constatando prática habitual de condutas fraudulentas por parte do falido, poderá o juiz reduzir a pena de reclusão de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) ou substituí-la pelas penas restritivas de direitos, pelas de perda de bens e valores ou pelas de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, como bem disse Ricardo Antonio Andreucci, na obra citada.
Estamos diante de causas de aumento de pena e não de um tipo penal autônomo. Isso se via desde a redação original da Lei n. 11.101/05. Não se trata de tipo penal autônomo.
Repito que, para o caso, inexiste um crime autônomo de contabilidade paralela, ou seja, não constitui para o caso, crime a manutenção, por si só, de contabilidade paralela pelo devedor, ou seja, a manutenção ou movimentação de recursos ou valores paralelamente à contabilidade exigida pela legislação, que, na linguagem popular, convencionou-se chamar de “caixa dois”. É causa de aumento de pena de um tipo penal de fraude a credores.
Não se aplicaria, pois, em concurso material(artigo 69 do Código Penal) o tipo penal previsto no artigo 11 da Lei nº 7.492/86, lei de “crimes de colarinho branco”, que é um delito pluriofensivo, já que outros bens poderão ser ofendidos, secundariamente, como a fé pública, o patrimônio e a ordem tributária, como diziam Paulo José da Costa Jr., M. Elisabeth Queijo e Charles M. Machado(Crimes do colarinho branco, 2000, pág. 103).
Mas, caso a manutenção de contabilidade paralela tenha por finalidade a supressão ou redução de tributo ou contribuição social e qualquer acessório, poderá, em tese, estar tipificado crime contra a ordem tributária, previsto pela Lei n. 8.137/90, tratando-se, ainda, de crime contra a ordem tributária, em concurso material(artigo 69 do CP).
Observo que manter revela habitualidade, permanência. Trata-se de uma forma delituosa habitual.
Discuto sobre a questão processual da competência para instruir e julgar tal delito.
A Constituição Federal nos traz de forma clara:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
Assim as questões que envolvam falência não são objeto da competência(limite de jurisdição) não são objeto de julgamento por juízes federais.
Anteriormente, quando da vigência do Decreto – Lei 7.661/45, havia o artigo 109, § 2º, o qual descrevia o posicionamento específico do Juízo Criminal para julgamento de eventual Processo Crime; aqui transcrito:
“Art. 109. Com a denúncia, ou, se esta não tiver sido oferecida, decorrido o prazo do parágrafo único do artigo anterior, haja ou não queixa, o escrivão fará, imediatamente, conclusão dos autos. O juiz, no prazo de cinco dias, se não tiver havido oferecimento de denúncia ou de queixa ou se não receber a que tiver sido oferecida, determinará que os autos sejam apensados ao processo da falência.
§ 2° Se receber a denúncia ou a queixa, o juiz, em despacho fundamentado, determinará a remessa imediata dos autos ao juízo criminal competente para prosseguimento da ação nos termos da lei processual penal.”.
No atual diploma falimentar, têm-se o artigo 183, que diz:
“Art. 183. Compete ao juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, conhecer da ação penal pelos crimes previstos nesta Lei.”