Resumo: Com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 855.178/RN, houve um aprimoramento da solidariedade entre os entes federativos em matéria de direito sanitário, consolidado pela elaboração do Tema 793. A tese jurídica fixada possui efeito erga omnes, impondo aos tribunais inferiores que fundamentem suas decisões definindo, obrigatoriamente, a competência material e financeira a ser cumprida pelo ente federativo competente. Entretanto, o STF não afastou a possibilidade de o cumprimento ser direcionado a um ente federativo diverso, considerando que, nesses casos, há a possibilidade de ressarcimento do ente que foi onerado equivocadamente. O ponto central a ser discutido no presente artigo é a construção da solidariedade federativa pelo Supremo Tribunal Federal, na medida em que a Corte cria uma espécie de solidariedade sanitária. De forma mais ampla, o objetivo do STF seria desenvolver um posicionamento doutrinário e jurisprudencial, consolidando a ideia de uma solidariedade prestacional. Essa concepção poderia ser aplicada a qualquer um dos direitos prestacionais que envolvem a competência comum dos entes federativos, nos termos do art. 23 da Constituição Federal. A análise a seguir será pautada na decisão que originou o Tema 793, na doutrina civilista sobre solidariedade, no desenvolvimento do tema no âmbito do Judiciário e na compreensão dessa nova abordagem por doutrinadores sanitaristas.
Palavras-chave: Direito a saúde. Competência Comum. Solidariedade. Direitos prestacionais. Tema 793 STF. Elementos obrigatórios na sentença/despacho judicial. Desenvolvimento.
Introdução
Tudo no mundo é suscetível de aprimoramento e desenvolvimento. A solidariedade não foge a essa lógica.
O ponto a ser trabalhado no presente artigo busca ir além da compreensão tradicional sobre solidariedade, ultrapassando inclusive o conceito de solidariedade entre os entes federativos desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 793. O objetivo é apresentar elementos de contraposição à solidariedade delineada pelo STF, reajustando sua compreensão para um modelo que alcance todas as demandas prestacionais do Estado, desvinculando-se de uma abordagem civilista e estruturando-se nos moldes previstos pelo texto constitucional.
Quanto ao objetivo, não se pretende apenas elaborar um posicionamento doutrinário e jurisprudencial a partir da ótica dos advogados sanitaristas, mas também dar uma solução definitiva às questões de competência dentro das ações sanitárias e demais demandas prestacionais do Estado, bem como ao alcance das condenações, ainda que liminares.
Além disso, busca-se contribuir para um reflexo positivo na atuação dos gestores públicos, desde o nível municipal até o federal. Isso porque, ao cumprir decisões exclusivamente dentro de sua competência, evita-se a oneração indevida de determinado ente federativo por obrigações que não lhe são atribuídas.
Dessa forma, este artigo apresentará a compreensão do modelo civilista sobre solidariedade, o aprimoramento da matéria pelo Tema 793 do STF e, por fim, a possibilidade de desenvolvimento do conceito de solidariedade no contexto jurídico atual.
Modelo civilista de solidariedade
O Código Civil é claro ao discorrer sobre solidariedade e seu alcance, abordando a matéria de forma precisa e objetiva nos artigos 264 a 285 do Código Civil de 2002 (CC/2002).
Quanto a isso, podemos afirmar que haverá solidariedade quando "na mesma obrigação concorre mais de um credor ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda"[2]. Além disso, não há presunção de solidariedade, uma vez que ela deve resultar expressamente da lei ou da vontade das partes.
A partir dessa definição, podemos classificar a solidariedade em duas modalidades principais:
Solidariedade passiva: ocorre quando cada devedor é responsável pela integralidade da dívida, cabendo ao credor a escolha de contra quem exercer a cobrança.
Solidariedade ativa: ocorre quando cada credor tem o direito de exigir a integralidade da dívida do devedor, sendo este obrigado a pagar a totalidade a qualquer um dos credores.
Nesse sentido, observa-se a compreensão dos doutores Mário Alberto Konrad e Sandra Ligian Nerling Konrad sobre a matéria:
A obrigação será solidária se, conforme salientamos, havendo pluralidade de sujeitos ativos ou passivos, cada devedor estiver obrigado pelo pagamento da totalidade da prestação – solidariedade passiva – ou se cada credor tiver o direito de exigir a totalidade da dívida – solidariedade ativa (CC, arts. 264, 267 e 275). Importante frisar, ab initio, que, em razão desse principal efeito da obrigação solidária, a solidariedade nunca se presume, decorrendo ou da vontade das partes ou de previsão legal (CC, art. 265). Isto é assim tendo em vista que a solidariedade passiva só traz vantagens para o credor ou credores, e o mesmo se dá na solidariedade ativa.3
Compreendida a questão da solidariedade no âmbito do direito civil, passamos ao aprimoramento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal na decisão do Tema 793 e, posteriormente, à análise do confronto entre os entendimentos para o desenvolvimento da matéria no presente artigo.
O aprimoramento da solidariedade no âmbito do Supremo Tribunal Federal e no Tema 793.
A questão da solidariedade entre os entes federativos nas ações sanitárias[4] é debatida há longa data, tendo sua primeira aparição de destaque em 2004, na ADPF 45 MC/DF. Nessa ocasião, o Ministro Celso de Mello decidiu sobre a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário em casos de descumprimento de direitos individuais ou coletivos, com o objetivo de definir a competência e o cumprimento das obrigações por parte dos entes federativos demandados. Assim, deu-se início à discussão sobre a solidariedade entre os entes federativos, ainda que de forma indireta.
Quase cinco anos depois, com o aumento crescente das demandas sanitárias, o Ministro Gilmar Mendes promoveu, em 2009, uma Audiência Pública com a participação de médicos, juristas, gestores e representantes da sociedade civil. O objetivo era realizar um juízo de ponderação entre princípios e diretrizes políticas, adotando o sopesamento de princípios, conforme preconizado pelo doutrinador Robert Alexy. O Ministro enfatizou que todos os aspectos da demanda, positivos e negativos, devem ser considerados na tomada de decisões jurídicas e políticas.
Na referida decisão, o Ministro chegou à seguinte conclusão, que transcrevo integralmente para preservar a essência do parágrafo:
Após refletir sobre as informações colhidas na audiência pública – saúde e sobre a jurisprudência recente deste Tribunal, é possível afirmar que em matéria de saúde pública, a responsabilidade dos entes da federação deve ser efetivamente solidária.5
Assim, deu-se início ao período mais ativo da judicialização da saúde, uma vez que a decisão não estipulou limites à solidariedade entre os entes da federação. O entendimento adotado permitiu que qualquer ente federativo pudesse ser responsabilizado por qualquer demanda, independentemente do valor do procedimento, de sua complexidade ou da existência de política pública que direcionasse o cumprimento da obrigação a um ente federativo diverso daquele pleiteado.
Por essas razões, diante do crescente impacto financeiro sobre o erário decorrente das ações sanitárias, das controvérsias no âmbito do Judiciário quanto à matéria e do caso paradigmático do RE nº 855.178/SE, de relatoria do Ministro Luiz Fux, o tema foi aprimorado pelo Supremo Tribunal Federal.
A decisão mais recente, com voto vencedor do Ministro Edson Fachin, consolidou-se no Tema 793 do STF, cuja redação é a seguinte:
Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Além da redação do Tema 793, faz-se necessário destacar alguns trechos relevantes sobre o aprimoramento da matéria da solidariedade entre os entes federativos, como a afirmação do Ministro Edson Fachin quanto ao fato de que a obrigação decorrente da solidariedade federativa está diretamente relacionada ao artigo 23, inciso II, da Constituição Federal. Ou seja, trata-se de uma prestação em sentido amplo (lato sensu), cuja promoção nas ações sanitárias deve ocorrer de forma hierarquizada e descentralizada, conforme as regras de competência do Sistema Único de Saúde, previstas no artigo 198, caput, e inciso I, da Constituição Federal. Dessa forma, todos os entes da federação podem vir a integrar a ação sanitária para ampliar o alcance do cumprimento da decisão.
Nesse ponto, ao comparar essa concepção com a solidariedade civilista, torna-se evidente a diferença entre os dois conceitos. Enquanto na esfera cível os devedores solidários respondem integralmente pela obrigação, no contexto das ações sanitárias, a solidariedade federativa deve observar os critérios de competência, hierarquia e descentralização do SUS, conforme estabelecido pelo Tema 793 do STF.
Dessa forma, os entes federativos não estão automaticamente obrigados a cumprir a demanda principal, mas apenas aquilo que seja de sua competência específica. Nesse sentido, compete à União fornecer medicamentos ou tratamentos não padronizados no SUS, dado que sua responsabilidade inclui a incorporação de novas tecnologias no sistema de saúde, por meio do Ministério da Saúde, conforme previsto no artigo 19-Q da Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90).
Portanto, verifica-se que a solidariedade entre os entes federativos não se assemelha à solidariedade civilista, uma vez que cada ente só pode ser condenado por uma omissão, falha ou negativa de um serviço que esteja dentro de sua competência. A inclusão obrigatória ocorre somente em relação ao ente federativo competente, enquanto os demais podem permanecer no processo como litisconsortes facultativos ou serem excluídos por ausência de competência para cumprimento da política pública pleiteada.
A decisão, nesse aspecto, não foi clara sobre o procedimento a ser adotado após o redirecionamento da competência, com exceção dos casos envolvendo medicamentos ou tratamentos não incorporados ao SUS, nos quais a inclusão da União é obrigatória. Nos demais casos, não há uma determinação expressa quanto à exclusão dos entes federativos que não sejam competentes para o cumprimento da demanda específica.
É a partir dessa lacuna que nos aprofundaremos no desenvolvimento do conceito de solidariedade prestacional, analisando seus reflexos jurídicos e sua aplicabilidade nas ações sanitárias e demais políticas públicas.
A possibilidade de desenvolvimento da solidariedade aprimorada no Tema 793 para os demais direitos prestacionais que envolvem competência comum entre os entes federativos.
Diante do exposto, no que se refere à solidariedade entre os entes federativos em matéria de direito sanitário, propomos que a solidariedade, conforme compreendida na edição do Tema 793 do STF, possa ser interpretada como solidariedade prestacional. Isso se justifica na medida em que esse conceito abrange todos os direitos prestacionais elencados no artigo 23 da Constituição Federal de 1988, buscando, em todas as ações que envolvem essas matérias, facilitar a atuação dos gestores públicos, desde o nível municipal até o federal.
A proposta aqui apresentada visa possibilitar que os entes federativos se organizem e estejam preparados para cumprir suas obrigações, desde que devidamente justificada e comprovada a necessidade. No caso das ações sanitárias, essa necessidade pode decorrer da ineficácia ou inexistência de política pública, bem como da medicina baseada em evidências.
Além disso, a solidariedade prestacional ampliaria o espectro de cumprimento das decisões liminares e definitivas de maneira progressiva. Ou seja, caso a demanda seja de competência da União, esta não poderá repassá-la para os demais entes federativos, diferentemente de uma medida inicialmente pleiteada junto ao município, que poderia vir a ser suprida pelo Estado-membro ou pela União, mediante ressarcimento posterior, conforme previsto na própria redação do Tema 793.
O cerne da questão é que o STF vinculou as decisões sobre ações sanitárias dos tribunais inferiores, determinando que o cumprimento da demanda seja direcionado ao ente federativo competente, em obediência ao que estabelece o artigo 198 da Constituição Federal, especialmente no que se refere à hierarquia e descentralização das políticas de saúde.
No entanto, uma vez que a decisão não esclarece a situação dos demais entes federativos quando há o direcionamento ao ente competente, este estudo propõe, com base em outras decisões do STF sobre saúde e solidariedade federativa, que o ideal seria a participação de todos os entes federativos em ações que envolvem direitos prestacionais de competência comum (artigo 23 da CF/88).
Essa vinculação poderia atribuir a competência da matéria à Justiça Federal, considerando que a deficiência ou ineficácia da prestação de serviço por um ente federativo pode acarretar impactos negativos nos demais entes.
Nesse sentido, o STF já apresentou alguns esclarecimentos sobre as ações sanitárias, determinando, por exemplo, que em processos que envolvem procedimentos não padronizados, a União deve obrigatoriamente integrar o polo passivo, sendo responsável financeiramente pelo cumprimento da decisão. Além disso, cabe à União apresentar justificativas sobre a incorporação ou não de determinado medicamento ou tratamento ao SUS.
Sem a necessidade de aprofundar-se em cada uma das inúmeras leis que regem os direitos prestacionais (Saúde, Educação, Moradia, Meio Ambiente, Saneamento Básico etc.), do meu ponto de vista, facilitaria ao Poder Judiciário adotar, como regra geral, a inclusão de todos os entes federativos nessas ações.
No entanto, seria necessária a ressalva de que alguns entes federativos integrariam o polo passivo apenas como litisconsortes facultativos, visando resguardar o interesse do Estado em todas as suas esferas. Além disso, em casos em que o cumprimento da demanda recaia sobre um ente federativo distinto daquele inicialmente acionado, não haveria necessidade de deslocamento de competência, caso a matéria estivesse sempre no âmbito da Justiça Federal.
A título de exemplo, imagine-se uma ação judicial pleiteando o fornecimento de vaga em creche. Caso haja discussão sobre qual ente federativo (Município, Estado-membro ou União) detém a obrigação de prestar o serviço, o fato de todos já estarem no processo permitiria uma análise mais célere e eficaz do caso concreto. Assim, seria possível verificar a viabilidade da solução, seja por meio da atuação isolada ou em parceria entre os entes federativos, levando-se em consideração a disponibilidade de vagas em creches, a aceitação dos genitores quanto às ofertas apresentadas e a possibilidade de condenação de algum dos entes.
Dessa forma, todos poderiam se organizar para evitar novas demandas semelhantes ou, ao menos, reduzir sua recorrência, tornando essa uma medida mais eficiente para combater a judicialização e as deficiências do Estado. Isso evitaria a fragmentação de demandas, promovendo uma comunicação mais eficaz entre os gestores públicos.
Além disso, essa sistemática também encerraria discussões sobre competência, especialmente quando um Juízo Estadual direciona a demanda para a Justiça Federal devido à necessidade de tratamento não padronizado. Atualmente, ocorre um impasse, pois, enquanto a Justiça Federal pode entender que a União não deve integrar o polo passivo, o Tema 793 do STF exige essa inclusão. Esse conflito decorre da aplicação da Súmula 150[6] do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que impede o redirecionamento da demanda para o ente federativo competente/capacitado.
O levantamento de dados sobre a funcionalidade do modelo de solidariedade prestacional, que prevê a inclusão de todos os entes federativos nas demandas de competência comum (artigo 23 da Constituição Federal de 1988), pode ser analisado ao longo da década seguinte à audiência pública de 2009. Esse evento, de forma geral, contribuiu para o aumento expressivo das ações sanitárias e para o crescimento dos gastos de Municípios e Estados-membros com demandas que não estavam capacitados ou obrigados a cumprir.
A diferença, no momento atual, é que, com a aplicação do Tema 793 do STF, a presença de todos os entes federativos no processo não gera impactos negativos na questão orçamentária. Isso ocorre porque, embora todos participem da ação, a responsabilidade orçamentária permanece restrita ao ente competente, conforme as regras de descentralização e hierarquia do SUS.
Além disso, caso seja necessário o cumprimento da obrigação por um ente federativo diverso do inicialmente demandado, sua presença já estaria garantida no processo, evitando a necessidade de um novo ajuizamento ou deslocamento de competência.
A título de exemplo, um caso bastante comum tanto antes quanto depois do Tema 793 era a fragmentação do cumprimento de determinada demanda. Em ações sanitárias, frequentemente um Estado-membro era condenado à compra de um medicamento específico, mas o Juízo direcionava ao Município o dever de entregá-lo ao paciente, sem atribuir-lhe a obrigação da aquisição, apenas a logística de disponibilização do fármaco ao requerente.
Esse caso demonstra com mais clareza os benefícios da integração de todos os entes federativos em ações que envolvem direitos prestacionais de competência comum, possibilitando uma melhor organização na execução das decisões judiciais e evitando lacunas no cumprimento das obrigações.
Mais ainda, em relação ao último trecho da redação do Tema 793 e à ausência de debate entre os Ministros sobre o eventual descumprimento da obrigação pelo ente federativo competente, apresento a seguinte proposta e suas respectivas justificativas.
Antes de abordar esse ponto, considero necessário destacar uma passagem do Ministro Dias Toffoli, em que ele expressa sua visão sobre a atuação dos entes federativos nas ações sanitárias. Esse entendimento, de igual forma, pode ser aplicado às demandas prestacionais em geral. Observe-se:
Nesse passo, tenho que se pode vislumbrar a Federação como um círculo, cujo feixe de raios, partindo do ente central, a União, direciona-se ao Distrito Federal e aos estados; deste, a seu turno, partem os raios que atingem os municípios, ocupantes da extremidade da figura. Nesse círculo, em matéria de saúde, quanto mais se caminha em direção ao ente central do Sistema (direção centrípeta), maior a responsabilização técnico-financeira identificada, ao passo em que, quanto mais se dirige aos entes da linha de superfície do raio federativo, maior a obrigação de execução das políticas de saúde. Embora, portanto, a responsabilidade seja una, no sentido de que todos tem o dever inafastável de garantir saúde a seus cidadãos, a divisão de responsabilidades no SUS segue uma gradação ascendente: centrípeta na ampliação das responsabilidades técnicas e de financiamento; e centrífuga na atribuição de execução das ações e serviços de saúde.
(grifo do autor – Min. Dias Toffoli, Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória 127 – São Paulo)
Observa-se que, em nenhum momento, o Supremo Tribunal Federal (STF) buscou desvincular a responsabilidade dos entes federativos quanto às obrigações decorrentes de sua competência comum. O que a Corte fez foi determinar que as decisões judiciais devem observar as regras de competência do SUS, garantindo que o cumprimento das demandas seja direcionado ao ente federativo tecnicamente e financeiramente capacitado.
Dessa forma, reitero a argumentação do Ministro Dias Toffoli, mencionada anteriormente, sobre a forma centrípeta da responsabilização, reforçando que a solidariedade entre os entes federativos não pode ser utilizada como justificativa para isentar qualquer um deles de suas obrigações.
Ainda na perspectiva do Ministro Dias Toffoli, e em consonância com os objetivos deste artigo, apresento outra passagem de sua decisão, que reafirma a impossibilidade de um ente federativo se eximir do cumprimento de uma prestação sob sua competência comum, apenas porque outro ente também possui atribuição para tal.
O que se busca neste momento é justamente resguardar o interesse da população, ampliando o espectro de cumprimento das decisões judiciais, sem, contudo, onerar indevidamente qualquer ente federativo, como ocorria antes da adoção do Tema 793 do STF, quando a judicialização da saúde resultava em encargos excessivos para determinados entes.
Nesse sentido, segue a passagem do Ministro Dias Toffoli:
A prefacial ordem constitucional, portanto, é clara quanto à impossibilidade de se argumentar pela ausência de responsabilidade de qualquer dos entes seja qual for a etapa da implementação do direito à saúde. A Constituição Federal traça, isso sim, por meio da divisão de atribuições, organização ao sistema, mas sempre com participação de todos os entes em cada forma de concretização do direito.
(grifo do autor – Min. Dias Toffoli, Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória 127 – São Paulo)
Com fundamento nas próprias decisões do STF — seja por meio de decisões monocráticas, acórdãos que impactaram diretamente o andamento das ações sanitárias ou, ainda, pela decisão proferida no Tema 793 —, considero possível adotar a compreensão de que o STF consolidou a ideia de uma solidariedade prestacional.
Ainda que não regulamentada expressamente nos moldes propostos neste artigo, é evidente que a linha de pensamento do STF indica que as ações sanitárias devem envolver todos os entes federativos, garantindo que a decisão judicial leve em consideração a competência específica de cada ente federativo, sem, contudo, afastar o dever solidário dos demais.
Esse entendimento pode ser aplicado a todos os direitos prestacionais elencados no artigo 23 da Constituição Federal, reforçando que a solidariedade entre os entes federativos não deve ser utilizada para isentar qualquer ente de suas obrigações, mas sim para coordenar o cumprimento da prestação de forma eficiente e equitativa.
Diante disso, apresento a seguir o desenvolvimento da tese sobre a solidariedade entre os entes federativos, com vistas à sua fixação na doutrina e na jurisprudência:
Os entes federativos, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis pelas demandas prestacionais elencadas no artigo 23 da Constituição Federal. No entanto, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial federal direcionar o cumprimento da obrigação conforme as regras de repartição de competências, bem como determinar o ressarcimento ao ente que suportou o ônus financeiro.
Em caso de descumprimento por parte do ente federativo competente, deve-se adotar um direcionamento progressivo do cumprimento da obrigação, sempre respeitando a hierarquia federativa. Assim, nas obrigações de competência da União, não se pode transferir a execução para outro ente federativo.
Acredito que essa abordagem, por si só, não seja suficiente para barrar completamente a judicialização envolvendo os direitos prestacionais elencados no artigo 23 da Constituição Federal. No entanto, considero que, ao menos dessa forma, torna-se possível estabilizar a judicialização, ao mesmo tempo em que a atuação conjunta de todos os entes federativos possibilita a criação de mecanismos que acelerem a resolução de pontos de interesse comum, evitando que essas questões sejam discutidas tardiamente na demanda.
Notas
1 “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.
2 Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda.
3 KONRAD, Mário Alberto e NERLING, Sandra Ligian Konrad, Direito Civil, 1: Parte Geral, Obrigações e Contratos, 5. ed. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 127.
4 Proposta adotada pelo Procurador Felipe Cidral Sestrem da Procuradoria-Geral do Município de Joinville em conversa sobre o Tema 793 do STF
5 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610255
6 https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/sumstj/article/download/5492/5615