A teoria do Direito Penal do Inimigo

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27/09/2021 às 21:58

Resumo:


  • O Direito Penal do Inimigo, proposto por Gunther Jakobs, sugere um tratamento penal diferenciado para indivíduos classificados como "inimigos", baseando-se na ideia de que certas pessoas são fontes de perigo e devem ser contidas para proteger a sociedade e a validade da norma.

  • A teoria é alvo de críticas por se opor aos princípios de um Estado Democrático de Direito, violando direitos fundamentais e garantias processuais, além de desafiar a noção de igualdade perante a lei ao categorizar pessoas como "inimigos".

  • Apesar de sua complexidade e impacto no debate penal, a aplicação prática do Direito Penal do Inimigo é controversa e conflita com os valores humanitários e democráticos, não sendo compatível com sistemas jurídicos que prezam pela dignidade humana e direitos individuais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A presente pesquisa aborda os efeitos da Teoria do Direito Penal do Inimigo de Gunther Jakobs; as velocidades do Direito Penal de Jesús-María Silva Sànchez e a relação dessas teorias com o Direito Penal do inimigo.

Introdução

O presente trabalho percorre a esfera do Direito Penal, analisando singelamente a teoria elaborada pelo estudioso alemão Gunther Jakobs. Este que procurou, por meio de seus ensinamentos, dividir os seres humanos em pessoas racionais (o famigerado “cidadão de bem”) e pessoas perigosas (más pessoas), denominando, estas, como Inimigos do Estado.

O projeto punitivo apresentado por Jakobs é caracterizado como um sistema de imputação diferente, o qual tem gerado grandes discussões na política criminal mundial nos últimos anos. Como será devidamente analisado, Jakobs adota a definição de crime como negação da validade da norma. Sendo assim, ele redefine a aplicação da norma de forma diferenciada, dividindo entre cidadãos e inimigos. O primeiro, sendo punido para que se preserve o significado de afirmação da validade da lei, aplicando sanções para fatos já executados; enquanto o segundo sendo punido para que se previna a sociedade de fatos futuros que poderão ser executados pelo infrator.

Este autor propõe a ideia de abandonar a tutela ao bem jurídico, tutelando, outrossim, pela aplicabilidade da norma. Neste tipo de doutrina penalista expansionista, o delinquente que, por princípios, decide se voltar contra as normas jurídicas, deve ser caracterizado como inimigo. Ademais, acrescenta o autor que, atualmente, o Estado pode agir de duas maneiras com o infrator: vê-lo como uma pessoa que delinque (que tenha cometido um erro) ou vê-lo como um indivíduo que deve ser impedido de destruir a validade da norma (tratando-o como um risco à sociedade/inimigo).

Desta forma, ensina o doutrinador que aquele que, por princípio, delinque, não oferece garantia alguma acerca do seu comportamento pessoal, podendo voltar a delinquir a qualquer momento. À vista disso, este referido criminoso, não pode ser tratado como todos os demais cidadãos inclusos em um Estado Democrático de Direito, e sim deve ser combatido como inimigo. Para Jakobs, esta teoria busca única e exclusivamente tutelar pelo legítimo Direito dos cidadãos, como o Direito à segurança.

Deste modo, nota-se que o Direito Penal do Inimigo utilizou-se da forma de punição proposta por Jesús-Maria Siva Sanchez, o qual expos um sistema que diferencia o Direito Penal em três grandes classificações, analisando a intensidade da rigidez dos princípios e garantias, e, as regras de imputação, entre outros fatores classificatórios que serão devidamente analisados nos capítulos subsequentes.

Logo, levantando o problema central de pesquisa deste estudo, o objetivo é estudar a teoria do Direito Penal do Inimigo, oriunda da terceira velocidade do Direito Penal de Silva Sanchez. Ainda, quanto ao tema, buscar-se-á observas os fundamentos e os efeitos da implementação da teoria de Jakobs, para tanto, objetiva-se, por meio deste estudo, analisar se a teoria do Direito Penal do Inimigo possui, realmente, a intenção de proteger o Estado Democrático de Direito. Bem como, se é necessário e eficaz a aplicação de tratamentos mais rigorosos aos “Inimigos”.

Quanto à relevância da produção deste estudo, nota-se que atualmente vivemos inseridos em uma sociedade considerada sociedade de risco. Por conta disso, aparecem doutrinadores como Gunther Jakobs que busca elaborar teorias acerca da implementação de penas mais rígidas a criminosos que fazem do crime, praticamente, sua atividade profissional. Por conta disso, há grande interesse em estudar a referida teoria para ver, deste modo, como a sua aplicabilidade pode contribuir positivamente para a situação de perigo constante em que vivemos introduzidos. Para efetivação da teoria de Jakobs, analisaremos a aplicação de penas mais rígidas e aplicadas de forma mais rápida, para os considerados “inimigos”; por outro lado, é de grande importância analisar até que ponto vale a pena diminuir as garantias processuais, penais e constitucionais dos denominados “inimigos”, passando por cima, assim, de direitos fundamentais do homem.

Para tanto, o presente trabalho dividir-se-á, no primeiro capítulo, entre a teoria das velocidades do Direito, de Jesus-Maria Silva Sanchez, a fim de compreender a origem da teoria do Direito Penal do Inimigo. E, em uma segunda parte, adentraremos no estudo da teoria de Gunther Jakobs, buscando entender a divisão entre pessoas e inimigos, bem como estudando os prós e contras na implementação da teoria.


1. AS VELOCIDADES DO DIREITO PENAL

Jesús-Maria Silva Sánches, doutrinador formado pela Universidad Pompeu Fabra1, desenvolveu a teoria da expansão do Direito Penal, a qual, basicamente, criou os institutos denominados velocidades do Direito Penal. As velocidades do Direito Penal foram categorizadas e divididas por conta das classificações de Direito Penal mínimo, Direito Penal dualista, Direito Penal máximo e Direito Penal internacional.

A teoria do referido autor dispõe, por exemplo, acerca da sistemática processual penal adotada em determinado ordenamento jurídico e, também, sobre o tempo em que o Estado utiliza-se para punir uma infração penal. Ilustra-se, esta última característica, com a atuação da sistemática punitivista: se o Estado atua de forma mais lenta, tem-se então a possibilidade de uma sanção privativa de liberdade ao final do processo, caracterizando-se o Direito Penal de primeira velocidade; outrossim, caso o Estado atue de forma mais rápida, aplicando outra medida não privativa de liberdade, tem-se a segunda velocidade.

Ademais, a terceira velocidade advém da atuação imediata do Estado, impondo pena privativa de liberdade e restringindo direitos e garantias fundamentais do indivíduo criminoso (Inimigo). Ainda, há estudos direcionados a uma quarta velocidade do Direito Penal, a qual tem grande vinculação ao Tribunal Penal Internacional.

Sendo assim, começando a adentrar as chamadas velocidades do Direito Penal, nota-se que a referia teoria traz consigo a ideia de que temos, no ordenamento jurídico mundial, várias dimensões de Direito Penal, graduados, por exemplo, de acordo com a sua rigidez. Nesta esteira, analisar-se-á, nos subcapítulos sequentes, cada uma destas velocidades, apontando algumas características particulares destas.

1.1. Primeira velocidade do Direito Penal

A primeira velocidade do Direito Penal é representada pelo Direito Penal do “cárcere”. A qual versa sobre a tutela de bens jurídicos, aplicando sanções que caibam a pena privativa de liberdade2. Nesta velocidade se mantêm rígidos os princípios políticos-criminais, as regras de imputação e os princípios processuais3.

As diretrizes da primeira velocidade do Direito Penal apareceram nas orientações da Escola Penal alemã de Frankfurt constituída em 1924. Esta nasceu depois da incidência de Kant, Hegel, Karl Marx, Friedrich Engels e Nietzsche. Já no século XX, as aparições das doutrinas da Escola ocorreram após a expansão dos pensamentos do existencialismo de Heidegger4, da fenomenologia de Husserl5 e da ontologia de Hartmann6.

As propostas da Escola de Frankfurt, defendidas por Hassemer, Pritwitz, Herzog, Naucke, Muñoz Conde, dentre outros, ofereciam resistência às alterações de cunho legislativo e dogmático propostas pela tendência expansionista. Sendo assim, quanto ao Direito Penal, partiam da premissa de que este deve ser limitado ao máximo, o que implica sua incidência apenas sobre aquelas condutas que violem, de maneira agressiva, os bens indispensáveis para a vida em comum, como a vida, a saúde, a propriedade etc7.

Silva Sanchéz afirma que o Direito Penal defendido pelos autores acima expostos, na Escola Penal Alemã de Frankfurt principalmente por Hassemer e outros da escola de Frankfurt, nunca existiu da forma acima referida. Na verdade, as regras garantistas eram apenas um contrapeso ao autoritarismo e ao extraordinário rigor das sanções impostas, de modo que não eram verdadeiramente voltados à exclusiva proteção de bens altamente pessoais8.

Sendo assim, ao relacionar o pensamento dos doutrinadores alemães com o problema de pesquisa posto em análise neste trabalho, tem-se que as velocidades do Direito Penal encontram viés para sua elaboração em diversos acontecimentos históricos. Nota-se, assim, que além das características da Escola Penal Alemã presentes na primeira velocidade do Direito Penal, esta velocidade também, obteve respaldo em acontecimentos sociais e históricos, como a Revolução Francesa9, em 178910. Quanto a isso, importante o posicionamento de Jesús-Maria acerca da ênfase que o autor da sobre aqueles infratores que são condenados com penas de prisão de longa duração, devendo os pressupostos clássicos de imputação serem respeitados com rigor, privilégio este oriundo da democracia apresentada pela Revolução Francesa11.

À vista disso, quanto à aplicação de pena privativa de liberdade, Jesús-Maria colaciona:

Para resumir, pode ser dito que, à medida que a sanção seja a de prisão, uma pura consideração de proporcionalidade requereria que a conduta assim sancionada tivesse uma significativa repercussão em termos de afetação ou lesividade individual; ao mesmo tempo, seria procedente – exatamente pelo que foi aludido – manter um claro sistema de imputação individual (pessoal).12

Ainda, a teoria do garantismo penal13 – característica idônea da primeira velocidade do Direito Penal - segundo Martinho Otto Gerlack Neto, infere que o Direito Penal deve ser invocado apenas em casos de extrema necessidade:

Uma redução dos mecanismos punitivos do Estado ao mínimo necessário, ao contrário do que pretendem os defensores do direito penal máximo, justificando-se a intervenção penal somente em casos extremamente necessários para a proteção dos cidadãos.14

Isto é, a luz do princípio da intervenção mínima15, o Direito Penal tem por objetivo ser convocado apenas para cuidar de bens jurídicos fundamentais16. Assim, outros ilícitos de menor caráter ofensivo17 devem ficar a cargo dos demais ramos jurídicos18.

Ou seja, a teoria do Direito Penal de garantias (primeira velocidade) defende que a função do Direito Penal é a restrição aos direitos individuais daqueles que atentam contra o ordenamento jurídico. Ademais, a primeira velocidade do Direito Penal, também conceituada como teoria garantista do Direito Penal, é uma redução dos mecanismos punitivos do Estado. Abrangendo assim a intervenção penal somente em casos de extrema necessidade19. Nesta esteira, por fim, se finda apontando que a primeira velocidade do Direito Penal se funda em garantias individuais inarredáveis, como meio eficaz para proteção do cidadão e obtenção de justiça, sistema esse adotado, inclusive, pelo ordenamento jurídico brasileiro.

1.2. Segunda velocidade do Direito Penal

A principal característica da segunda velocidade do Direito Penal20 é a substituição da pena privativa de liberdade por penas alternativas, como penas restritivas de direito, penas pecuniárias, entre outras. À vista disso, as garantias penais, processuais e constitucionais tornam-se mais flexíveis nesta velocidade21, por conta da relativação do Direito Penal22.

Conforme Jesús-María Silva Sánchez, a segunda velocidade do Direito Penal é o “ponto médio”23 entre um Direito Penal amplo, flexível e máximo e um Direito Penal mínimo e rígido24. Conforme entendimento expresso em sua doutrina, Jesús-Maria escreve acerca da flexibilização do modelo de imputação:

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(...) a medida que a sanção não seja a de prisão, mas privativa de direitos ou pecuniária, parece que não teria que se exigir tão estrita afetação pessoal; e a imputação tampouco teria que ser tão abertamente pessoal. A ausência de penas “corporais” permitiria flexibilizar o modelo de imputação.25

Ou seja, existem infrações penais26 que merecem apenamento diferenciado, as quais não se enquadram nas penas privativas de liberdade. Estas podem infringir um bem jurídico tutelado menos relevante ou o crime pode ter sido executado de forma menos grave.

Como visto anteriormente, essa velocidade incorpora duas predisposições incompatíveis entre si, sendo essas a flexibilização das garantias e adoção das medidas alternativas à prisão27. Por conta dessa característica, esse grupo de infrações penais é atribuído à grande maioria dos crimes econômicos por resultar em um maior alcance do amparo estatal.

Como exemplo da existência da segunda velocidade do Direito Penal é a criação dos Juizados Especiais Criminais28, os quais passaram a existir com o sancionamento da Lei n.º 9.099/9529 30. Assim, por meio destes Juizados, tem-se a efetivação do procedimento sumaríssimo31 para aquelas infrações penais as quais possibilitam a flexibilização de garantias como, por exemplo, a garantia ao devido processo legal, a isonomia processual, ao contraditório e ampla defesa, a motivação das decisões dentre outras, abrindo espaço para medidas alternativas32 à pena privativa de liberdade.

A Lei dos Juizados Especiais Criminais é uma tentativa de inserir no Estado uma ideia menos intervencionista. Lado outro, a lei enaltece uma atividade punitivista mais eficaz, na medida em que dispensa, nos casos de menor lesividade a determinados bens jurídicos, a fase de inquérito policial, encaminhando o criminoso e a vítima à apresentação direta ao juiz e ao agente ministerial. Sendo assim, neste momento, pode ocorrer a proposta de transação entre a vítima e o criminoso. Entretanto, nos casos em que a persecução do crime dependa de representação por parte da vítima, a transação penal caracteriza a extinção da punibilidade. Igualmente, nesta apresentação perante o juízo, pode o agente ministerial propor uma pena, não caracterizada pela pena privativa de liberdade que, se aceita pelo criminoso, começa a ser executada imediatamente (transação penal).

Por conta da elaboração deste dispositivo legal, deu-se um grande passo em direção ao avanço do Direito Penal Brasileiro. Com caráter menos intervencionista, as penas culminadas nesta lei, libera o Direito Penal de aplicação de sanções para crimes de menor potencial lesivos, aqueles que podem ser solúveis na esfera da transação civil, tornando assim o Direito mais rápido e diminuindo a demanda de algumas varas criminais, sem esquecer das garantias constitucionais e processuais dos indivíduos (referidas acima), apenas as flexibilizando.

Outra bastante característica desta modalidade é a instauração, no ordenamento jurídico brasileiro, da Colaboração Premiada, com o advento da lei n.º 12.85033. Esta formalidade criada a fim de buscar provas por meio da troca entre confissões por diminuição de pena mostra a intenção do legislador em tornar o processo penal mais rápido, nem que para isso tenha que abrir mão de determinadas formalidades e direitos.

Percebe-se que a segunda velocidade do Direito Penal nasceu como uma forma de alcançar o equilíbrio necessário entre as necessidades sociais e a dignidade humana. É um modelo que pretende responder ao problema contemporâneo de demanda demasiada do poder judiciário, tornando, muitas vezes, a justiça lenta e falha.

Por fim, nota-se que a elaboração desta segunda velocidade é de grande importância para o Direito Penal porque apresenta uma função que muito se busca: a de efetividade. É um Direito que se aproxima, em muito, a um Direito administrativo sancionatório, mas sem esquecer-se da gravidade do delito, podendo, desta forma, exercer maior intervenção e controle social. Utiliza-se, então, de decisões que flexibilizam garantias e assim sancionam fatos isoladamente não tão lesivos.

1.3. Terceira velocidade do Direito Penal

A terceira velocidade do Direito Penal é a modalidade responsável por processamento e julgamento daqueles que são definidos como “inimigos” do Estado. O também denominado Direito Penal do Inimigo vai ser aparato de estudo nos capítulos subsequentes, motivo pelo qual analisar-se-á superficialmente suas características neste momento.

Parafraseando o doutrinador Luiz Flávio Gomes:

(...) de acordo com a tese de Jakobs, o Estado pode proceder de dois modos contra os delinquentes: pode vê-los como pessoas que delinquem ou como indivíduos que apresentam perigo para o próprio Estado. Dois, portanto, seriam os Direitos Penais: um é o do cidadão, que deve ser respeitado e contar com todas as garantias penais e processuais; para ele vale na integralidade o devido processo legal; o outro é o Direito Penal do inimigo. Este deve ser tratado como fonte de perigo e, portanto, como meio para intimidar outras pessoas. O Direito Penal do cidadão é um Direito Penal de todos; o Direito Penal do inimigo é contra aqueles que atentam permanentemente contra o Estado: é coação física, até chegar à guerra. Cidadão é quem, mesmo depois do crime, oferece garantias de que se conduzirá como pessoa que atua com fidelidade ao Direito. Inimigo é quem não oferece essa garantia34.

A aludida velocidade cinge-se a incrementar desproporcionalmente as sanções penais, aplicando penas exorbitantes para os criminosos. Sendo assim, trata-se de uma circunstância de exceção, daquele delinquente que tem o crime como prática reiterada ou, até mesmo, em situação de guerra. A elaboração e aplicabilidade35 da referida velocidade do Direito Penal teve por propósito a proteção, exclusiva, da segurança público, tutelando pela aplicabilidade da norma. Sendo assim, como mencionado alhures, foram deixadas de lado as garantias36 penais, processuais e de execução dos cidadãos frente ao poder estatal37.

O doutrinador Iago Oliveira Ferreira sistematizou as principais características da analisada velocidade, sendo elas:

a) hipertrofia legislativa irracional (caos normativo); b) instrumentalização do direito penal; c) inoperatividade, seletividade e simbolismo; d) excessiva antecipação da tutela penal (prevencionismo); e) descodificação; f) desformalização (flexibilização das garantias penais, processuais e execucionais); e g) prisionalização (explosão carcerária)38.

Nota-se assim, que trata de uma modalidade de aplicação do Direito que busca o efetivo combate a criminalidade. Vale consignar, ainda, outra característica da referida velocidade, sendo esta o objetivo de identificar determinados autores de delitos do que promover a sanção a fatos lesivos ao corpo social. Isto por que, condutas como, utilizando-se a legislação brasileira para exemplificar, a falsificação de moeda (consoante artigo 291 do Código Penal39) e tráfico ilícito de drogas (consoante artigo 34 da lei n.º 11.343/200640) não infringem qualquer bem jurídico fundamental, mas, sim, representam a possibilidade de o autor destes ilícitos cometer de novo41. Tudo isso, na perspectiva da teoria que estamos observando.

A fim de exemplificar a aplicabilidade da terceira velocidade e, assim, procurar respostar o problema principal deste estudo, vale citar o ocorrido com a Espanha. No referido país há a presença de legislações que tem como objetivo principal a diminuição da criminalidade habitual, como o código penal da segurança. Este tem como aposta a repressão mais severa daqueles criminosos que tem a vida delinquente como atividade profissional, sendo, assim, a “habitualidade” o elemento que justificou a aceitação da teoria do Direito Penal de terceira velocidade42.

À vista disso, os doutrinadores espanhóis, ao redigir o código penal da segurança, buscou punir, com pena privativa de liberdade, aqueles infratores que atingissem quatro violações consecutivas contra a propriedade, no período de um ano. Enfim, essa mesma reforma do Código penal espanhol permitiu que incidisse, sobre um determinado delito, uma pena superior àquela correspondente ao delito, unicamente justificada pela periculosidade do infrator reincidente, materializando, assim, a teoria da aplicação da terceira velocidade do Direito Penal43.

Ou seja, a terceira velocidade implica em uma reação do poder do Estado contra indivíduos perigosos, objetivando o seu combate e a sua neutralização, tal como numa guerra. No Brasil é possível identificar esse Direito Penal na prática do tráfico de drogas, identificado como o grande mal ao qual a sociedade Brasileira esta submetida. Nesta senda, nota-se que aquele indivíduo que integra uma faccção criminosa e, por meio desta, tira seu sustento, utilizando-se do tráfico de drogas, tem o crime como atividade profissional e reincide no delito por muitas vezes, inserindo-se, assim, teoricamente, nas sanções da terceira velocidade do direito penal.

Vale utilizar-se das próprias palavras de Sanchez para delinear o sentindo de “guerra” acima exposto:

(...) o Direito Penal da terceira velocidade não pode manifestar-se senão como o instrumento de abordagem de fatos “de emergência”, uma vez que expressão de uma espécie de “Direito de guerra” com o qual a sociedade, diante da gravidade da situação excepcional de conflito, renuncia de modo qualificado a suportar os custos da liberdade de ação44.

Veja-se, portanto, que não há duvida da existência de um Direito Penal com as características aqui demonstradas e, o próprio autor Sanchez acolhe a ideia do Direito Penal de terceira velocidade se tratar de um “mal menor”, visto que se trata de um reação justificável ao perigo em que a sociedade atual esta inserida. Em termos de proporcionalidade, o autor consagra que a forma de sanção desta velocidade esta estritamente proporcional ao perigo apresentado pela chamada sociedade de risco.

A referida sociedade de risco, a qual será devidamente analisada nas páginas seguintes, promove a ideia de que o Direito Penal deve ser utilizado como instrumento para solucionar todos os problemas da sociedade. Como consequência desta expansão, ocorre a incidência do Direito Penal em áreas que não são de sua responsabilidade, o que leva a um modelo de Direito Penal máximo. Com a incidência de um modelo de Direito Penal máximo, ocorre, consequentemente, a supramencionada flexibilização de garantias constitucionais, para, então, satisfazer as expectativas dos indivíduos45.

1.4. Considerações acerca da possível existência de uma quarta velocidade do Direito Penal

Primordialmente, vale acrescentar que não há autores, no Brasil, que tenham escrito acerca da quarta velocidade do Direito Penal, entretanto a sua existência já foi mencionada por alguns pesquisadores, motivo pelo qual não poderia deixar de ser mencionada. Assim, o tratamento conferido à temática é mínimo, entretanto, o professor Alexandre Salim, doutor em Direito pela Universidade de Roma46, apresentou a referida modalidade como aquela que abarca ideias neopunitivistas. No mais, relatou o professor que a quarta velocidade do Direito Penal condiz atualmente com o Direito Penal internacional47.

Oriunda das mesmas diretrizes da terceira velocidade do Direito Penal, a quarta velocidade está amplamente ligado ao Direito Internacional. Indica o tratamento a delinquentes que são igualmente caracterizados como inimigos, entretanto, nesta modalidade, como Chefes de Estado, por exemplo. Dentre os principais exemplos da referida velocidade, esta pode ser observada no julgamento dos crimes nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial, ou quando os referidos Chefes de Estado violam tratados internacionais, infringindo assim, a tutela dos direitos humanos48.

Esta categoria é exemplificada pelo julgamento e condenação de importantes personagens da história mundial, como Saddam Hussein49. Com relação à exemplificação referida, o responsável por processar e julgar os crimes característicos dessa velocidade, atualmente, é o Tribunal Penal Internacional, embora esta velocidade do Direito Penal encontre as mesmas características da terceira velocidade, quanto à diminuição das garantias processuais, penais e constitucionais.

Responsável por processar e julgar os crimes oriundos da quarta velocidade, o Tribunal Penal Internacional é uma instituição internacional permanente que foi estabelecida por meio de um tratado. Este exerce jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade, em âmbito internacional50. A competência do Tribunal recai, em especial, sobre quatro crimes, conforme o artigo 5º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional:

Artigo 5º. Crimes da Competência do Tribunal

1. A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes:

a) O crime de genocídio;

b) Crimes contra a humanidade;

c) Crimes de guerra;

d) O crime de agressão.

2. O Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde que, nos termos dos artigos 121 e 123, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas51.

Ademais, o Tribunal Penal Internacional não é um substituto da jurisdição penal nacional e não suplementa os sistemas penais de cada país. De outro modo, o ordenamento jurídico do Tribunal é “complementar” a eles (artigo 1, 1752). Sendo assim, o Tribunal não faz mais do que cada Estado individualmente, neste sentido, o supra tribunal é uma extensão da jurisdição penal nacional, conforme estabelecida em tratado, do qual, a ratificação é subordinada à autoridade parlamentar, o que o torna parte da legislação nacional de cada país. Isto posto, o Tribunal Penal internacional não infringe a soberania nacional, nem desprestigia os sistemas jurídicos nacionais que desejem cumprir suas obrigações internacionais53.

Quanto à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, a doutrinadora Fernanda Florentino Fernandez Jankov aduz:

Ao resumir o que abordaram sob o título novos paradigmas jurisdicionais (em relação ao Tribunal Penal Internacional), esclarecem, a respeito da jurisdição prescritiva e adjucativa (competência) do Tribunal: Esta é talvez a grande revolução: a jurisdição prescritiva (prescriptive jurisdiction) da comunidade internacional e a jurisdição adjucativa (adjudicative jurisdiction) da própria Corte possuem como premissas a redefinição dos princípios correntes do Direito Internacional. Na realidade, os princípios jurisdicionados ‘a qual Estado’ pode exercer sua autoridade sobre determinados casos, foram transformados em normas estabelecendo as circunstâncias nas quais a comunidade internacional pode prescrever normas (prescribe rules) de direito internacional penal e pode punir aqueles que infringem estas. A repartição das competências entre as jurisdições nacionais e internacionais incorporada no Estatuto como questão de jurisdição prescritiva e adjucativa (prescritive and adjucative jurisdiction) configura-se como presságio de uma organização da autoridade legal internacional de maneira quase federal no futuro (a União Européia oferece uma comparação útil, embora, no caso da corte, a organização seja implícita em vez de explícita).54

Nesta esteira, quanto a competência, o Tribunal Penal Internacional, assim como no nosso ordenamento pátrio, é dividida em competência ratione temporis, competência ratione loci e competência ratione personae. Quanto a competência ratione temporis, esta se caracteriza por limitar a jurisdição da corte somente aos crimes cometidos após a entrada do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional55.

Outrossim, quanto a competência ratione loci, o princípio geral é o de que o Tribunal tem jurisdição sobre os crimes cometidos no território dos Estados-Membros, independente da nacionalidade do acusado, consoante artigos 12 e 13, do Estatuto de Roma56. Inobstante, quanto a competência ratione personae, tem-se que somente incidem as normas do supra referido Estatuto sobre pessoas naturais, excluindo, assim, os Estados e organizações internacionais de sua jurisdição. Sendo assim, nota-se que a quarta velocidade do Direito Penal tem por objetivo processar e julgar os Chefes de Estados como pessoas físicas, não incluindo seus Estados. Por fim, a competência ratione personae encontra respaldo nos artigos 1, 25 e 2657 do Estatuto.

Nota-se, por fim, que o estabelecimento de Tribunais e Cortes penais internacionais cria o problema de coordenação da ação destes com os Tribunais nacionais. No caso ambos sejam competentes para julgar um mesmo crime, não existe regras gerais internacionais para resolver o problema. De igual maneira, nota-se que não existem regras internacionais que resolvam a situação de divergência de jurisdição entre dois ou mais Estados. Vale exemplificar a incidência do princípio da territorialidade por um Estado e o princípio da nacionalidade por outro Estado58.

Quanto à incidência do Tribunal Penal Internacional no Brasil, a sua incorporação no ordenamento pátrio ocorreu em 2002, a partir da incidência do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, por meio do Decreto n.º 4388/200259. Ainda, com a inserção da Emenda Constitucional n.º 45/200460, o Brasil passou a se submeter à jurisdição do Tribunal Penal Internacional61.

Como uma nova forma de tratar a criminalidade moderna, a quarta velocidade do direito penal coaduna com o incentivo de ONGs (Organizações Não Governamentais). As Organizações Não Governamentais estão estritamente ligadas aos direitos humanos, entretanto apoiam a diminuição das garantias em se tratando de processamento e julgamento de, por exemplo, criminosos Chefes de Estado.

Com efeito, há a ampla relação da quarta velocidade do Direito Penal com a terceira, por conta das limitações em relação às garantias, diferindo-se pela presença, nesta modalidade, de um “direito penal do autor”, uma vez que seu julgamento estará fortemente ligado com ao “ser”.

Sobre a autora
Juliana Piamolini

Especialista em Direito de Empresa pela Fundação Getúlio Vargas

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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