2. A TERCEIRA VELOCIDADE DO DIREITO PENAL: O DIREITO PENAL DO INIMIGO DE GUNTHER JAKOBS
O doutrinador criador da teoria do Direito Penal do Inimigo, Gunther Jakobs, nasceu em meados de 1937 e estudou Direito nas Universidades de Colônia, Kiel e Bonn, tendo se graduado nesta última em 1967. Grande discípulo dos pensamentos de Hans Welzel62, após o ataque de 11 de setembro contra as Torres Gêmeas63, o doutrinador passou a criar bases filosóficas legitimadoras contra a guerra, por exemplo, ao terrorismo. A essência da teoria de Jakobs diz acerca do tratamento diferenciado que é ofertado ao inimigo, onde o direito passa a lhe negar a sua condição de pessoa.
Assim sendo, o inimigo não mereceria o tratamento de pessoa e, quanto a isso, Eugênio Raúl Zaffaroni menciona:
Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais que a ideia seja matizada, quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), faz-se referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas, e esta é a primeira incompatibilidade que a aceitação dos hostis, no direito, apresenta com relação ao princípio do Estado de Direito. Na medida em que se trata um ser humano como algo meramente perigoso e, por conseguinte, necessitado de pura contenção, dele é retirado ou negado seu caráter de pessoa, ainda que certo direitos (por exemplo fazer testamento, contrair matrimônio, reconhecer filhos etc) lhe sejam reconhecidos. Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente como um ente perigoso.64
De outro prisma, Jakobs trabalhou, em seu estudo, a forma como preservar a vigência da norma, sendo a pena, neste contexto, a autopreservação do sistema jurídico-penal. Neste plano, Jakobs desenvolveu a lógica que, inseridos, atualmente, em sua sociedade considerada como sociedade do risco, diariamente ocorre a criminalização de novos comportamentos que, há algum tempo atrás, poderiam ser considerados indiferentes. Desta forma, deve ocorrer também a criação e desenvolvimento de respostas de natureza preventiva, que, uma vez aplicadas de forma célere, parecem tornar legítimo o modelo de Estado protetor.
Não é uma inverdade que atualmente vivemos o fenômeno da violência difundida e da cultura do medo, oriundos de uma sociedade do risco onde nota-se, inclusive, a presença do denominados “Inimigos”. Por conta disso, na teoria de Jakobs, o Estado responde a esses fenômenos com políticas criminais mais duras.
2.1. Da Sociedade do Risco ao Direito Penal do Inimigo
Sociedade do risco é um termo usado para descrever a maneira pela qual a sociedade moderna se organiza em resposta ao risco. Ou seja, é uma forma de como lidar com os perigos e com as inseguranças introduzidas pela modernização. Nesta senda, nota-se que o Direito é dinâmico, visto que conforme os perigos/delitos mudam, as sanções penais devem mudar também.
Em se tratando de conceituação de sociedade de risco, André Luis Callegari e Suelen Webber aduzem que a sociedade do risco é uma sociedade preocupada com problemas futuros:
O que se denomina sociedade do risco seria uma sociedade voltada às situações futuras e globais, as quais representam uma sociedade que não enfrenta apenas problemas locais e fronteiriços, mas problemas que afetam a humanidade como um todo.65
Devido a modernização da sociedade, o ordenamento jurídico deve manter-se em constante mudança, visto que é obrigado a tutelar novos bens jurídios e expandir-se, cada vez mais. Por conta disso, vive-se o caos normativo penal, porque ninguém sabe o que vigora onde66. Com bens jurídicos penais novos67 a serem tutelados, nasce a globalização do Direito Penal68, caracterizada pela tipificação de, por exemplo, crimes de perigo abstrato.
Em se tratando da diferenciação de crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato, Eugenio Raul Zaffaroni aponta:
(...) o perigo concreto foi entendido como um verdadeiro perigo e o abstrato como uma simples possibilidade. Semelhante interpretação é insustentável, porque com ela o chamado perigo abstrato seria um “perigo de perigo”, o que, em caso de tentativa, acarretaria a consquencia de requerer um “perigo de perigo de perigo”. Na realidade, não há tipos de perigo concreto e de perigo abstrato – ao menos em sentido estrito -, mas apenas tipos em que se exige a prova efetiva do perigo submetido ao bem jurídico, enquanto noutros há uma inversão do ônus da prova, pois o perigo é presumido com a realização da conduta, até que o contrário não seja provado, circunstância cuja prova cabe ao acusado. Trata-se de uma classificação com maior relevância processual do que penal “de fundo”.69
Ou seja, nos crimes de perigo abstrato, incide a punição pelo mero descumprimento da lei formal. Assim, o perigo não é elementar do tipo, pelo que, havendo ou não a probabilidade de dano, resta configurado crime, em ambas as opções. Ou seja, por crimes de perigo abstrato se depreende aquele que não exige a lesão de um bem jurídico, ou a colocação deste bem em risco real e concreto. Esta classificação abrange aqueles tipos penais que descrevem apenas um comportamento ou uma conduta, sem considerar um resultado específico como elemento expresso do injusto, como, por exemplo, o porte de arma70.
Por conta dos avanços tecnológicos ocorridos após a Revolução Industrial71, a sociedade pós-industrial deslocou muitos cidadões para a situação de marginalidade. Esses “marginalizados” foram caracterizados, pelos demais cidadões, como principal risco de seus patrimonios e de sua liberdade pessoal. Assim, por conta disso, consolidou-se o conceito primordial de sociedade do risco, preconizada por Ulrich Beck72.
Da mesma forma, a Alice Bianchini lembra que, na caracterização da sociedade moderna, como a de risco, o Direito Penal passou a ser um instrumento de governo, visto que, a política estatal justifica a intervenção do sistema punitivista antes mesmo da lesão a um bem jurídico protegido ocorrer. O que, segundo a autora, fere o princípio da culpabilidade, senão vejamos:
Este seria o contributo possível, no entendimento de considerável parcela de juristas, à solução de problemas sociocriminais, como os relativos às agressões ao meio ambiente, à criminalidade organizada (incluindo as preocupações com o tráfico de drogas e às políticas econômicas, financeira e tributária, dentre outras.73
Outrossim, vale apontar o principal paradigma da sociedade do risco, que é sua comunicação instantânea, em um Estado cuja prioridade é maximizar a sua eficiencia econômica no avanço tecnológico. Como forte exemplo, as notícias policiais sensacionalistas tornam questões de grande valor moral e social, principalmente para o Direito Penal, em uma grande oportunidade de atingir o ápice da audiência. Antes de continuar, buscando exemplificar a problematica social da banalidade da criminalidade difundida nos meios sociais, utiliza-se exemplos emblemáticos do Direito Penal brasileiro:
Nesse diapasão, o lobby que a mídia de audiência procura fazer é buscar que as pessoas se identifiquem com os fatos que estão vislumbrando na tela. Foi assim com o caso de Daniela Peres, foi assim com o caso Isabela Nardoni, e é esse um dos motivos que justifica as milhares de associações contra a violência no trânsito. É esse um dos motivos que fundamenta o grande sucesso dos filmes “Tropa de Elite”, principalmente em sua continuação, em que, para buscar o apelo final, a vítima da violência é o filho do protagonista. Apelo de identificação ímpar. Essa “trama narrativa” que, por meio de recursos que contemplam um cenário de angústia e sofrimento (fortemente auxiliados por recursos sonoros, jogos de câmera e cenários estratégicos), busca a empatia dos espectadores com as vítimas. Assim, os telespectadores passam a acompanhar passo a passo o que está acontecendo ou o que aconteceu com a vítima, vivenciando um sentimento de angústia, porque aquilo que está sendo representado poderia por ele ou por sua família ou conhecidos ter sido sofrido. Esse modo operandis pode ser percebido em diversos programas, tanto na televisão brasileira como no exterior. No Brasil, um dos programas que mais procurou fazer isso foi o programa Linha Direta, exibido na Rede Globo entre os anos de 1999 e 2007. Nele, podiase perceber que o repórter passava a ter mais do que o papel de transmitir a notícia. De fato, o programa buscava uma identificação entre o telespectador e a vítima, para que se despertasse o sentimento de injustiça na sociedade, o qual poderia ser restaurado com a apresentação do programa e a participação ativa do telespectador74.
Em se tratando de comunicação instantânea, a mídia leva ao cidadão a ideia de que a Administração Pública tem falhado no que tange a punição dos indivíduos criminalizados. Nesta senda, aduzem, novamente, os autores André Luis Callegari e Suelen Webber:
A sociedade se modifica a partir das comunicações sociais que são produzidas nela. No contexto social vivenciado na contemporaneidade, as comunicações que são transmitidas pelos meios de comunicação simbolicamente generalizados traduzem uma ideia que é utilizada como fundamentação para a expansão do Direito Penal. Nesse contexto, noções como “punir mais é melhor” ou “punir mais é a solução” fazem parte de um sentimento vago de insegurança que assola a sociedade brasileira e, talvez possa-se dizer, mundial. Esse é o sentimento alimentado pela mídia, de forma que os meios de comunicação de massa dão ao cidadão do Estado Democrático de Direito a “única solução” para que se diminua a criminalidade e se extermine o medo coletivo. Assim, as expectativas cognitivas dos indivíduos com relação à Administração Pública e o sistema político são no sentido de mais direito penal. Dito de outra forma: “Vamos penalizar tudo, vamos prender, vamos punir mais”.75
Como exemplo claro da incidência da teoria da sociedade do risco, bem como da teoria do Direito Penal do inimigo, o atentado terrorista ocorrido em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, foi noticiado pela imprensa internaiconal logo após o seu acontecimento. Desta forma, escolas brasileiras dispensaram seus alunos, mesmo as duas nações estando a milhares de quilometros distantes uma da outra76.
A proximidade virtual entre os cidadões na era globalizada do Direito Penal trás a sensanção de insegurança jurídica, de modo que por insegurança jurídica se entende a sensação do descumprimento do Direito Penal. Nota-se que, muitas vezes o Direito Penal é cumprido efetivamente77 mas para o cidadão inserido da sociedade do risco, mesmo com o devido cumprimento da sanção penal, ainda resta o sentimento de injustiça ou falta de efetividade penal.
Na sociedade contemporânea, o que ocorre é um desvirtuamento da pena, que, em vez de ser utilizada com critérios de efetividade, passa a ser usada como arma eleitoral, a qual é municiada pela mídia. O medo gerado pela imprensa, vende a ideia de que somente a produção de mais leis ou de leis mais severas por meio do sistema político pode acabar com esse temor78.
Assim sendo, vale dizer que a globalização do Direito Penal esta contaminando o Poder Judiciário por demonstrar a escassez de jurisdição internacional efetiva para alguns delitos79. Além disso, a globalização do Direito Penal busca a satisfazer os anceios coletivos, de modo que a imprensa e a política se curvam a esses anseios. Neste prisma, a intervenção penal se expande incontrolavelmente, principalmente quanto aos interesses supraindividuais80, introduzindo, inclusive, novos tipos penais.
Quanto aos efeitos da globalização, Eugênio Raúl Zaffaroni aduziu que:
Não há dúvida de que caminhar em um bosque duzentos anos atrás era diferente do que é hoje. Naquele tempo, a segurança dos outros resumia-se a saber que não mataríamos nem assaltaríamos quem cruzasse nosso caminho; hoje, para proporcionar segurança aos demais e, sobretudo, ao próprio Estado, exige-se de quem anda pelo mundo a precisão de movimento do gato doméstico em meio aos cristais. Devemos prestar a máxima atenção para não esquecer-mos de registrar nenhum rendimento para não lesar o fisco, nem comprar um cheque em dólares sem declará-lo para não favorecer o tráfico de cocaína, menos ainda para não ter plantas eventualmente alucinógenas no jardim ou comprar livros na rua que possa ser vendidos por terroristas81.
Os avanços da técnica e da ciência não acompanharam o crescimento do nível de segurança do homem. Muito pelo contrário, o contato entre os produtos da tecnologia fez surgir efeitos colaterais denominados, então, “riscos” para a sociedade. Eis que o “risco” da sociedade do risco é decorrência da soma das decisões humanas e não meramente uma conjugação de circunstancias aleatórias desvinculadas da sua ação.
Com isso, surgem as velocidade do Direito Penal, estudadas no capítulo anterior, da qual, por fim, deu origem ao estudo do Direito Penal do Inimigo. Este, sendo, uma resposta aos novos tipos penais e infrações penais introduzidas pelo mundo contemporâneo e pela mencionada sociedade de risco. O contexto mundial atual torna a reação político-sancionatória obrigatória.
2.2. Do Direito Penal do Inimigo
Conceituada também como “impressionante defesa da liberdade dos cidadãos”, a teoria de Gunther Jakobs divide os seres humanos em pessoas racionais (cidadão do bem) e indivíduos perigosos. Assim sendo, a forma de punição por parte do Estado para o cidadão do bem e para os indivíduos perigosos também seria diferente, dividindo-se, então, em Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo. Nesta divisão, para o cidadão do bem, a pena criminal preservaria o significado de afirmação da validade da norma, incidindo uma sanção contra fatos ocorridos no passado; ao passo que para o Inimigo, a pena criminal teria o significado de custódia de segurança preventiva, como medida para evitar o perigo de fatos futuros82.
Jakobs conceitua o crime como sendo a negação da validade da norma. Ou seja, o Inimigo não é aquele indivíduo que atenta contra a tutela de qualquer que seja o bem jurídico, mas sim aquele delinquente que atenta contra a validade da norma. O “bem tutelado”, no contexto traçado por Jakobs, é a norma, indo em direção, também, ao banimento de um perigo.
Sendo assim, consoante estudo delineado acima, tem-se que o Direito Penal do Inimigo é o tipo ideal de um Direito Penal que não respeito o autor e nem o classifica como pessoa, mas sim que tem por objetivo neutralizá-lo como fonte de perigo. Embora a conceituação de Inimigo acima esteja traçada de forma correta, é preciso salientar que durante toda a elaboração da sua doutrina, o principal foco de Jakobs era a proteção da norma, e não a preocupação com o Inimigo. A seu ver, é a norma que faz da consumação de uma morte um homicídio, é a norma que garante que tais fatos não serão cometidos pelos outros, possibilitando a orientação num mundo complexo. Por exemplo, se homicídios fossem cometidos repetidamente, em algum momento estaria afetada a confiança na efetividade da proibição do homicídio.
Considerado como um Direito Penal de emergência, a ser utilizado excepcionalmente83, Jakobs estabelece duas premissas básicas quanto à teoria do Direito Penal do Inimigo, são elas: a função do Direito Penal sendo a de garantir a identidade normativa da sociedade através da confirmação da vigência da norma e o conceito de pessoa ou cidadão sendo definido normativamente como a personalidade jurídica, sendo um atributo do Direito positivo que, em determinadas hipóteses pode ser revogado, transformando a pessoa em um mero indivíduo (Inimigo). Para Jakobs, um indivíduo que não se deixa coagir a viver em um estado de civilidade, não poderia receber as regalias do conceito de pessoa. O que leva a crer que, para o doutrinador, inimigos são “não pessoas” e lidar com estes nada mais é do que neutralizar uma fonte de perigo, como um animal selvagem ou estando, por exemplo, em um estado de guerra84.
Por oportuno, é veementemente comprovado que a preocupação de Gunther Jakobs permeia também o risco que os autores por tendência trazem para a sociedade atual, conforme exemplo citado pelo próprio autor, no atentado de 11 de setembro de 2001:
Ao que tudo isto segue parecendo muito obscuro, pode-se oferecer um rápido esclarecimento, mediante uma referência aos fatos de 11 de setembro de 2001. O que ainda se subentente a respeito do delinqüente de caráter cotidiano, isto é, não tratá-lo como indivíduo perigoso, mas como pessoa que age erroneamente, já passa a ser difícil, como se acaba de mostrar, no caso do autor por tendência. Isto está imbricado numa organização (...) e finaliza no terrorista, denominação dada a quem rechaça, por princípio, a legitimidade do ordenamento jurídico (...).85
Nesta mesma esteira, quanto à diferenciação entre cidadão e Inimigo, Jakobs preceitua que no Direito Penal do cidadão, o autor do crime é considerado uma pessoa em Direito, obtendo, assim, direitos e obrigações de ordem jurídica. Sendo assim, ao cidadão do bem incorrer em um tipo penal, é considerado como um mero deslize. Leva a crer, então, que aquela conduta não se repetirá, visto que o referido cidadão oferece a garantia cognitiva e, que dali em diante, tornar-se-á um cidadão fiel ao ordenamento jurídico.
Quanto ao diferente tratamento penal ofertado aos Inimigos, Eugênio Raúl Zaffaroni aduz que:
Quando os destinatários do tratamento diferenciado (os inimigos) são seres humanos não claramente identificáveis ab initio (um grupo com características físicas, étnicas ou culturais bem diferentes), e sim pessoas misturadas ao e confundidas com o resto da população e que só uma investigação policial ou judicial pode identificar, perguntar por um tratamento diferenciado para eles importa interrogar-se acerca da possibilidade de que o Estado de Direito possa limitar as garantias e as liberdades de todos os cidadãos com o objetivo de identificar e conter os Inimigos86.
Entretanto, em outro prisma, o Direito Penal do Inimigo não trata o criminoso como um cidadão, ou uma pessoa detentora de direitos, mas sim como uma fonte de perigo para a vigência da norma. Sendo, o Inimigo, um indivíduo que age de acordo com sua satisfação e seu interesse, e não pela consciência de lícito e ilícito. O Direito Penal do Inimigo aparece quando, através de várias condutas, o indivíduo se transforma em autor por tendência, através da reincidência, por exemplo. Assim sendo, o Estado Democrático de Direito daria, como respostas à esses delinquentes, o tratamento penal ofertado pela teoria de Jakobs, utilizando-se de aplicações de sanções mais drásticas, de forma mais rápida, abdicando, assim, das garantias penais, processuais e constitucionais estudadas na terceira velocidade do Direito Penal, de Silva-Sanchez.
Em síntese, o Direito Penal do Inimigo não é apenas a aplicação de penas mais severas, mas tem como existência fundamental a tutela pelo direito à segurança pública dos cidadãos. Assim, para Jakobs, o Estado tem o dever de não tratar como pessoa aqueles que vulneram a segurança pública:
Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só pode esperar ser tratado como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas. Portanto, seria completamente errôneo demonizar aquilo que se tem denominado Direito Penal do inimigo.87
Vale notar que a partir do momento que um ser humano é tratado como “aquele que vulnera a segurança pública” e, por conta disso, é necessário a sua contenção, é retirado do indivíduo o seu caráter de pessoa. Nesta linha, quanto ao tratamento diferenciado a esses indivíduos considerados focos de perigo para a humanidade, Eugênio Raúl Zaffaroni aduz que:
A privação de liberdade – ou a deportação – de uma pessoa em razão de um quarto ou quinto delito de gravidade leve ou média contra a propriedade, quando essa pessoa foi condenada e cumpriu pena pelos delitos anteriores, é uma reação totalmente desproporcional à entidade de seu injusto e de sua culpabilidade e, portanto, o sofrimento que se lhe impõe é uma pena entendida como mera contenção, um encerramento que cria um puro impedimento físico; trata-se de uma espécie de enjaulamento de um ente perigoso. É claro que esse não é nem pode ser o tratamento que se dá a alguém a quem se reconhece autonomia moral em razão da qual, fazendo uso dela, cometeu uma infração que causou dano aos direitos alheios, mais sim o que se destina a um animal ou a uma coisa perigosa88.
Em suma, o Direito Penal do Inimigo corresponde a uma proposta de reafirmação do poder do Estado, visando, sobretudo, a proteção do cidadão de bem, inserido na atual sociedade do risco, buscando atender às expectativas sociais frente à norma. Utilizando-se de elementos coercitivos e sem considerações acerca de garantias processuais ou materiais em face de uma determinada classe de infratores89, a teoria de Gunther Jakobs encontra fortes críticas no mundo jurídico atual. Assim, para apreciar essa afirmativa, é fundamental conhecer o farto arsenal de críticas à concepção de Gunther Jakobs.
2.3. Da implementação do Direito Penal do Inimigo
Nota-se que, consoante nosso problema de pesquisa, que a teoria de Jakobs trabalhou, exclusivamente, pela tutela da norma e não pela tutela dos bens jurídicos fundamentais, como o ordenamento jurídico brasileiro aborda. Nesta senda, o foco do doutrinador se dirige mais aos sujeitos perigosos do que aos próprios fatos lesivos, em si. Por conta disso, nascem as punições mais rigorosas e seletivas, para condutas que indiquem que o referido autor se amolda às características de um inimigo da sociedade. Com efeito, esta nova classificação do Direito Penal indica um tipo específico de autor, definido e tratado como um desigual90.
Cada vez que um terrorista, ditador ou criminoso famoso é capturado, nota-se a presença de traços do Direito Penal do Inimigo. Principalmente por conta dos ataques terroristas aos EUA, em 11 de setembro de 200191, onde notou-se a aplicabilidade da teoria de Gunther Jakobs, surgindo, assim, a materialização dos “inimigos” do Estado.
Em se tratando de implementação do Direito Penal do Inimigo, vale analisar, singelamente, que a teoria de Jakobs é utilizada para tornar legítima a ação estatal de combate, por exemplo, ao terrorismo, pregando tratamentos penais mais rígidos. Para as correntes mais garantistas, em um Estado Democrático de Direito, a divisão entre pessoas do bem e inimigos fere os princípios básico de uma Constituição, visto que, em grande parte do mundo, o direito tipificado visa pregar a igualdade entre as pessoas, independente de cor, sexo, religião, situação financeira e atitudes que tenham tomado. Nesta senda, nota-se que há forte dificuldade de identificar, também, quem teria legitimidade para classificar quem é inimigo e quem é pessoa do bem.
Permitir um tratamento penal diferente aos inimigos não identificáveis nem fisicamente reconhecíveis significa exercer um controle social mais autoritário sobre toda a população. O doutrinador Eugênio Raúl Zaffaroni acrescentou que só poderia existir a implementação do Direito Penal do inimigo, com seu tratamento penal diferenciado limitado aos inimigos, no marco de um extremo e estrito Direito Penal do autor92:
(...) se o tratamento diferenciado se destina ou se reduz a um grupo de pessoas claramente identificáveis mediante características físicas, o que só acontece nas lutas colonialistas, em que todo colonizado passa a ser um inimigo potencial, e os colonizadores estão acima de qualquer suspeita. Por mais aberrante e desprezível que fosse uma proposta semelhante – que ninguém formula fora do citado contexto colonialista -, devido ao seu flagrante desconhecimento da igualdade perante a lei (do direito a ser diferente), seria impossível negar que se trataria do pressuposto de um verdadeiro tratamento penal diferenciado que só afetaria seus destinatários. Porém, caso não fosse assim – e de fato não é -, a discussão não diz respeito à possibilidade de se tratar alguns estranhos de maneira diferenciada, pois esta não passa de uma pergunta enganosa93.
Assim, a fim de delinear mais claramente a implementação do Direito Penal do Inimigo, vale trazer à baila alguns casos emblemáticos, tais como situações trazidas desde a Idade Média, como na caças às bruxas94 da época, na caça aos cristãos, no extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, na perseguição aos comunistas nos países capitalistas durante a Guerra Fria e, atualmente, na guerra traçada entre traficantes de drogas das grandes metrópoles. Vale observar, no supra referido, que no decorrer de muitos anos a caracterização de “Inimigo” mudou drasticamente, levando a concluir que não resta delineado quais as premissas básicas para passar a tratar determinado indivíduo como “Inimigo”, e não mais como Cidadão.
Outra forte crítica quanto à implementação do Direito Penal do Inimigo, diz respeito a sua contradição quanto à vigência dos Direitos Humanos, sendo esses, inclusive, considerados direitos básicos e fundamentais95. Nota-se que, ao contrário do que prega o Direito Penal do Inimigo, os direitos básicos de um indivíduo (como o direito a vida, a dignidade, entre outros) e as garantias processuais básicas (como a assistência de um advogado, o contraditório, entre outros), de acordo com os Direitos Humanos, não podem ser suprimidos, por mais nefasta que tenha sido a conduta do criminoso. Veementemente comprovado, assim, a grande discrepância entre Direito Penal do Inimigo e Direitos Humanos, já que, para os contrários à teoria de Jakobs, por mais monstruoso que seja o indivíduo, ainda será um ser humano96.
Assim, em se tratando de violação aos Direitos Humanos97, ao contrário do que foi apresentado por Jakobs, os Direitos Humanos buscam, no ordenamento jurídico, mais políticas universalistas endereçadas a grupos socialmente vulneráveis. Ou seja, a implementação do Direito Penal do Inimigo fere a implementação dos Direitos Humanos, visto que este requer a universalidade e a indivisibilidade para todos os indivíduos, devendo, inclusive, ser respeitado o valor da diversidade de cada um. À vista disso, a classificação entre pessoas e não-pessoas se trata de algo horrendo, à luz dos Direitos Humanos98.
Ainda, tem-se que a expansão do Direito Penal fez com que surgissem legislações penais especiais, como a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente99, o Código de Defesa do Consumidor100, a Lei Antidrogas101, a Lei da Biossegurança102, a Lei de Crimes Ambientais103, entre outros. Por conta da criação das supra mencionadas legislações, a implementação do Direito Penal se tornou mais difícil para o aplicador do Direito. A dificuldade encontra-se no conhecimento desses microssistemas, bem como dessa grande multiplicidade de crimes esparsos em toda legislação e, na grande maioria, incompatíveis entre si. Nesta esteira, a implementação do Direito Penal do Inimigo encontra grande incompatibilidade entre legislações, visto que algumas tutelam os direitos do cidadão de bem, enquanto outras tutelam os direitos dos “Inimigos”.
Outrossim, à luz do pensamento de Cancio Meliá, acerca da incompatibilidade entre o Direito Penal do inimigo em relação ao Direito Penal do fato104, tem-se que:
Na doutrina tradicional, o princípio do Direito Penal do fato se entende como aquele princípio genuinamente liberal, de acordo com o qual devem ser excluídos da responsabilidade jurídico-penal os meros pensamentos, isto é, rechaçando-se um Direito Penal orientado na “atitude interna” do autor.105
Ainda, outra crítica levantada por Callegari e Giacomolli, quanto é teoria de Jakobs diz que:
Os paradigmas preconizados pela teoria de Jakobs evidenciam aos seus “inimigos” toda a incompetência Estatal ao reagir com irracionalidade e ao diferencias o cidadão “normal” do “outro”.106
Ou seja, a aplicabilidade da teoria de Jakobs retrata a escassez de efetividade da ação estatal para combater a violência e a criminalidade. Assim, nos trâmites da teoria de Gunther, o indivíduo comum passa a ser uma “não pessoa”, visto que, agindo racionalmente (ou seja, tratando o criminoso como um indivíduo normal, detentor de direitos básicos) o Estado não consegue coibir sua atividade criminal. Assim sendo, opta por desclassificar os indivíduos da categoria de “pessoa”, tornando-o Inimigo do Estado. Nota-se, ainda, que “Inimigo”, nesta senda, para Callegari e Giacomolli, é o indivíduo em que o Estado não teve capacidade de exercer seu poder de sanção, a fim de fazê-lo encerrar a prática delituosa.
Nesta senda, vale levantar a analise de que a implementação do Direito Penal do inimigo no ordenamento jurídico pátrio, por exemplo, influenciaria o direito às garantias não só dos ditos inimigos, mas do demais também. Quanto a isto, Eugênio Raúl Zaffaroni alude:
Não só é ilusória a afirmação de que o Direito Penal do inimigo afetará unicamente as garantias destes, como também é ilusória a sua suposta eficácia contra os inimigos. Quando são postas de lado as considerações teóricas e se admite que os direitos de todos os cidadãos será afetados, imediatamente invoca-se o eficientismo penal, próprio do Estado autoritário e sua razão de Estado, recolocando a opção tão reiterada quanto falsa entre eficácia e garantias, mediante a qual a única coisa que se quer dizer é que, dessa forma, serão obtidas mais sentenças condenatórias ou – o que dá no mesmo na América Latina – mais prisões cautelares. Ao mesmo tempo é inegável que, ao aumentar a discricionaridade investigadora das agências policiais, ampliam-se as oportunidades para a tortura. Uma crua e correta tradução do eficientismo penal em termo reais permite defini-lo – livre de suas máscaras – como uma tácita reclamação de legalização da tortura107.
Como se observa, as críticas ao Direito Penal do inimigo tem relação com a censura que a doutrina faz sobre os novos paradigmas do Direito Penal moderno, quais sejam o simbolismo excessivo, a flexibilização das garantias, a flexibilização dos princípios e a retomada de políticas criminais preocupadas com o autor (e menos com o fato em si). Deixando, assim, a verdadeira função do Direito Penal (a reprimir o autor e prevenir que aquele fato não ocorra novamente) de lado.