Feminicídio e transexualidade:

crítica e debate sobre a aplicação da qualificadora nos processos criminais

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O presente artigo científico, fruto de pesquisa realizada em estudos de Pós-graduação, visa a expor o debate acerca da aplicação da qualificadora de feminicídio tendo por vítimas transexuais mulheres, sob uma perspectiva crítica dos direitos humanos.

1 INTRODUÇÃO

Com a vigência da Lei nº 13.104/15, foi incluída mais uma qualificadora do crime de homicídio no Código Penal: o feminicídio. Trata-se do crime praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Em razão disso, uma parcela da doutrina, mais conservadora, defende que apenas as mulheres que nasceram com o sexo feminino seriam consideradas vítimas de feminicídio.

Contudo, uma outra corrente, mais moderna e filiada aos tratados internacionais, aos princípios constitucionais e às recentes decisões da Corte Suprema, defende que as mulheres transexuais devem ser consideradas vítimas do delito supracitado, devendo lhes ser concedido o direito à igualdade material.

Diante desta discussão doutrinária, já surgem no Brasil decisões judiciais favoráveis à aplicação no caso concreto da qualificadora do feminicídio nas hipóteses em que as mulheres transexuais forem vítimas de tal delito.

Desse modo, o presente trabalho é apresentado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, se encontra um estudo sobre o conceito de transexualidade, a questão de gênero e a diferença desta para o conceito de sexo.

No segundo capítulo, foram abordados os direitos das mulheres transexuais no Brasil e no mundo, dentre eles a alteração do prenome e do sexo no registro civil independentemente da cirurgia de readequação sexual.

Com relação ao terceiro capítulo, foi abordado o feminicídio, sua origem, seu conceito e algumas questões práticas.

No tocante ao quarto e último capítulo, foi estudada a divergência doutrinária acerca da aplicabilidade da qualificadora às hipóteses em que a mulher transexual figurar como vítima, bem como as primeiras decisões judiciais favoráveis a esta aplicação.

Cumpre salientar que o método de pesquisa utilizado foi o teórico, mediante materiais bibliográficos e doutrinas, bem como análises de jurisprudências e de pesquisas estatísticas.

Por fim, constata-se que os objetivos deste trabalho foram tratar de toda a questão envolvendo as transexuais e propor um maior debate acadêmico, bem como uma conscientização dos operadores do Direito no país, mormente os magistrados, mediante as decisões prolatadas, com o escopo de concretizar os direitos à igualdade material e à dignidade da pessoa humana.

2 CONCEITO DE TRANSEXUALIDADE E SUA DIFERENÇA ENTRE GÊNERO E SEXO

É notório que o ser humano nasce com um sexo biológico definido, isto é, o órgão sexual externo, o qual é diferente entre homens e mulheres. A orientação sexual, por sua vez, se relaciona com a atração sexual, surgindo, assim, três classificações: homossexual (atração pelo indivíduo do mesmo sexo), heterossexual (atração por indivíduo de sexo diferente) e bissexual (atração por indivíduos de ambos os sexos).

No tocante à identidade de gênero, a qual constituiria, em tese, outro conceito, parte-se da premissa de que a concordância entre o sexo biológico e o psicológico caracteriza a pessoa como cisgênera. Contudo, quando não há esta concordância, a pessoa é denominada transgênera ou transexual.

Segundo Genival Veloso de França, “as características clínicas do transexualismo se reforçam com a evidência de uma convicção de pertencer ao sexo oposto, o que lhe faz contestar e valer essa determinação até de forma violenta e desesperada” (FRANÇA, 2017, p. 143).

Ressalta-se que o gênero está relacionado às expectativas, ideias sobre homens e mulheres, ou seja, às pré-concepções para os comportamentos esperados pela sociedade caso nasçam homens ou mulheres - pré-noções estas que são um meio simples de dividir a sociedade. Assim, o gênero não opera conforme a necessidade, mas sim de acordo com a fórmula social criada (SMITH, 2019, p. 114).

Em razão disso, a professora norte-americana Judith Butler considera que gênero e sexo são culturalmente definidos e determinados. Na atualidade, a cultura do local onde uma pessoa nasceu, os deveres impostos, as regras sociais e de pertencimento são todos estabelecidos pela sociedade, mas esta os chama de “biologia”. Nomes próprios, comportamentos, qualidades, características e até profissões estabelecidas pela sociedade para homens e mulheres são todos construções sociais (BUTLER, 2017).

A doutrina mais abalizada defende que o gênero não necessariamente decorre do sexo ser feminino ou masculino, sendo uma categoria independente. Ou seja, um homem e masculino podem expressar tanto um corpo de mulher quanto um estereótipo de homem. Já a mulher e o feminino podem exprimir um corpo de homem, bem como um corpo de mulher.

Desse modo, o gênero se transformou em um meio de distinção entre homens e mulheres, bem como os papeis impostos a cada um deles no meio social e nas relações sociais. Além disso, o gênero enseja as relações de poder existentes (SCOTT, 1995, p. 86).

Cumpre salientar que toda relação social é uma relação de poder e o poder se ampara em um discurso que o fundamenta, bem como em um corpo social com o escopo de reprimir mudanças e manter as dominações estruturais existentes. Assim, o poder não se limita apenas em negar; pelo contrário, ele circula e forma saberes. (FOUCAULT, 2015).

A questão do gênero deve ser estudada sob a ótica da construção social e cultural. Peter Burke, ao tratar do tema, exemplifica com o caso de Maria van Antwerpen, holandesa, nascida na cidade de Breda em 1719, que restou órfã e foi acolhida e maltratada por uma tia. Com o escopo de fugir dos maus-tratos, começou a trabalhar como empregada doméstica, mas foi demitida. Assim, como o único meio naquele contexto histórico e social para uma mulher sozinha sobreviver seria a prostituição, haja vista a dominação e a violência física e sexual masculina existentes, ela, para fugir desse meio que lhe seria imposto, se alistou como soldado e viveu como se fosse homem. (BURKE, 2012, p. 88)

Logo, os comportamentos heteronormativos, mediante os poderes criados, produzem assimetrias de gênero e, consequentemente, violência social, tal como estudaremos a seguir.

3 OS DIREITOS DAS PESSOAS TRANSEXUAIS NO BRASIL E NO MUNDO

Atualmente, os transexuais possuem alguns direitos no Brasil, os quais foram conquistados recentemente após anos de luta. Em primeiro lugar, com relação à cirurgia de transgenitalização, o Brasil não possui legislação própria, sendo regulada pelo Conselho Federal de Medicina, mediante a Resolução nº 1.955/2010, a qual prevê a possibilidade de intervenções médicas necessárias para a readequação do sexo psicológico ao sexo biológico.

No tocante à mudança de nome e prenome, a Lei de Registros Públicos (Lei nº 6015/73), em seu artigo 57, prevê que qualquer alteração posterior de nome ocorre somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público e permitida por sentença judicial. Em seu artigo 58, dispõe que o prenome será definitivo.

Contudo, não se deve olvidar que a Constituição Federal de 1988, posterior à Lei nº 6015/73 e conhecida como “Constituição Cidadã”, prevê como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) e como direitos fundamentais o direito à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem (artigo 5º, inciso X) e à igualdade (art. 5º, caput). Assim, se todos são iguais e devem ter sua imagem e sua identidade protegidas, infere-se que a Carta Magna protegeu também a identidade de gênero, sem que haja quaisquer discriminações.

Destaca-se, ademais, que o Pacto de San José da Costa Rica, internalizado no Brasil pelo Decreto nº 678/92, dispõe sobre o respeito ao direito ao nome (art. 18); ao reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3º); à liberdade pessoal (art. 7.1) e à honra e à dignidade (art. 11.2).

Em razão disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no ano de 2017, editou a Opinião Consultiva nº 24, segundo a qual a mudança de nome e a adequação dos registros públicos e dos documentos de identidade para que estes sejam conformes à identidade de gênero autopercebida constitui um direito, de modo que os Estados têm o dever de reconhecer, regulamentar e estabelecer os procedimentos adequados para tais fins.

Acrescente-se que a Corte prevê que a alteração de nome e a retificação da anotação do gênero devem se basear unicamente no consentimento livre e informado do solicitante, sem que sejam exigidos como requisitos certidões médicas ou operações cirúrgicas de transgenitalização (PAIVA e HEEMAN, 2020, p. 510).

Desse modo, diante das previsões na Constituição Federal, no Pacto de San José da Costa Rica e da Opinião Consultiva nº 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme supracitados, o Supremo Tribunal Federal (STF), no ano de 2018, ao julgar a ADI 4275, deu uma interpretação conforme à Constituição para o artigo 58 da Lei 6015/73, a fim de permitir a alteração de prenome e gênero no registro civil mediante averbação no registro original, independentemente de cirurgia de transgenitalização.

Evidencia-se o voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 4275, segundo o qual:

(…) é imperioso acolher novos valores e consagrar uma nova concepção de direito fundada em uma nova visão de mundo, superando os desafios impostos pela necessidade de mudança de paradigmas em ordem a viabilizar, até mesmo como política de Estado, a instauração e a consolidação de uma ordem jurídica genuinamente inclusiva, acrescentando que o regime democrático não admite opressão da minoria por grupos majoritários.1

Após a decisão supracitada do STF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento nº 73/2018 e dispôs que toda pessoa maior de dezoito anos e habilitada à prática de todos os atos da vida civil poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida.

No tocante a demais direitos das pessoas transexuais, deve-se registrar sobre os Princípios de Yogyakarta, os quais consistem em um documento sobre direitos humanos nas áreas de orientação sexual e identidade de gênero. Dentre os diversos direitos ali estabelecidos, constata-se o direito à vida e o direito de não sofrer tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante, inclusive em uma eventual prisão.

Cumpre salientar, ainda, a decisão do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2019, ao julgar a ADPF 527, que garantiu às transexuais o direito a recolhimento em presídios femininos. Todavia, a liminar não concedeu este direito às travestis.2

De acordo com o referido ministro, as transexuais se identificam com o gênero oposto ao seu sexo biológico e buscam ajustá-lo à imagem de gênero que têm de si. As travestis, embora se apresentem para o mundo com o gênero oposto àquele correspondente a seu sexo biológico, não perceberiam seu corpo como inadequado.

Outrossim, o Ministro Barroso ressaltou que os transgêneros são expostos a graves situações de violência, que colocam em risco a sua integridade física, psíquica e sua vida. Registre-se que o Brasil lidera o ranking mundial de violência contra transgêneros, sendo o Brasil o país que mais possui casos de homicídios contra pessoas transexuais em todo o mundo nos últimos dez anos, conforme dossiê elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e publicado em janeiro de 2020.3

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4 O FEMINICÍDIO: CONCEITO, ORIGEM E ASPECTOS PRÁTICOS

O termo “feminicídio” surgiu a partir da expressão em inglês feminicide, a qual significa o homicídio praticado contra mulheres por questão de gênero, dentro do âmbito familiar, doméstico ou em outra relação de interação no meio social.

Ressalta-se que o termo “feminicídio” foi utilizado pela primeira vez em 1992, por Diana Rusell e Jill Radford, em seu livro “Femicide: the politics of woman killing”, a fim de não ressaltar a acidentalidade da morte violenta das mulheres (MELLO, 2016). O escopo na utilização do termo supracitado é demonstrar que se trata de um fenômeno relacionado ao processo de subordinação das mulheres, ou seja, à dominação masculina.

De acordo com Pierre Bourdieu, as mulheres historicamente foram submetidas a um processo de socialização que tende a diminuí-las, a negá-las, a se resignarem e silenciarem e, assim, se tornarem vítimas da representação dominante. Já os homens devem ser viris, isto é, terem capacidade reprodutiva, sexual e social, bem como aptidão ao combate e à violência (BORDIEU, 2012, p.64).

Ressalta-se que o patriarcado busca manter relações de gênero desiguais e não inclusivas mediante o uso da violência e de comportamentos misóginos, ou seja, de completo ódio, desprezo ou preconceito contra mulheres. A expressão “misoginia” é oriunda do grego misogynia, que une mísos, ódio, e gyné, mulher, significando a aversão à mulher, a qual está diretamente relacionada à violência contra mulher e aos feminicídios praticados (SCHWARCZ, 2019, p. 197).

Destaca-se que no Brasil, 4,8 a cada 100 mil mulheres são assassinadas. Ou seja, a cada duas horas uma mulher é morta em razão do seu gênero. Os números são tão alarmantes que fizeram o Brasil constar como o quinto país com maior número de mulheres assassinadas em todo o mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).4

Dessa forma, a violência de gênero não representa apenas uma relação de dominação e poder masculino, com a consequente submissão feminina. Além disso, revela como os papéis diferentes impostos pela sociedade e reforçados pelo patriarcado ensejaram modelos violentos de relacionamento.

Diante do elevadíssimo número de casos de violência doméstica e familiar, no ano de 2006, adveio a Lei nº 11340, conhecida popularmente como “Lei Maria da Penha”, cujo escopo é combater as espécies de violência praticadas contra as mulheres em âmbito doméstico e/ou familiar.

No ano de 2015, foi publicada a Lei nº 13.104/2015, que acrescentou ao Código Penal a figura do feminicídio como uma qualificadora, cuja pena varia entre doze a trinta anos de reclusão e torna o crime hediondo (Lei nº 8072/90). A origem desta nova qualificadora é a CPI Mista da Violência contra a Mulher, que justificou a proposta com o índice de 13 (treze) mulheres assassinadas a cada dia no Brasil por seus companheiros ou ex-companheiros.5

Embora esta qualificadora seja um avanço e uma medida que visa o combate à punição, por outro lado, os modelos culturais impostos pela sociedade patriarcal ainda não foram modificados. (MENDES; BELTRAME; 2015, p. 5). É necessário também o empenho da sociedade civil, bem como a realização de campanhas públicas de orientação; investimento na educação e na conscientização de todos, inclusive as novas gerações; formação de redes de apoio e proteção às vítimas; celeridade na investigação e nos processos judiciais, dentre outras medidas.

Cumpre salientar que não basta que uma mulher figure como sujeito passivo no delito tipificado no artigo 121 do Código Penal que já ensejará automaticamente a aplicação da qualificadora do feminicídio. Para que seja de fato configurada a qualificadora, será verificado se o homicídio é praticado contra a mulher por razões de condição do sexo feminino, quais sejam, a violência doméstica e familiar e/ou o menosprezo ou discriminação à condição de mulher (artigo 121, §2º-A, incisos I e II, do Código Penal).

Ressalta-se que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no final do ano de 2017, editou a Súmula nº 600, a fim de reforçar a ideia de que não se exige coabitação para caracterizar a violência doméstica e familiar, a qual está conceituada no artigo 5º da Lei nº 11340/06.

Registre-se que os legisladores criaram um aumento de pena de 1/3 (um terço) até 1/2 (metade) quando o crime de feminicídio for praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, bem como contra pessoa menor de quatorze, maior de sessenta anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental (art. 121, §7º, incisos I e II, do Código Penal). O escopo legislativo foi proteger as vítimas mais vulneráveis, seja em razão de gestação, de idade ou de uma eventual deficiência.

Ademais, em 2018, mediante a Lei nº 13.771, foram incluídos os incisos III e IV no supracitado §7º do artigo 121 do Código Penal, os quais estabeleceram aumento de pena quando o feminicídio for praticado na presença física ou virtual de descendentes e ascendentes (por meio da internet ou de aplicativo de celular que permita videochamada), assim como em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do artigo 22 da Lei nº 11340/06.

No tocante a esta última hipótese, o escopo do legislador foi punir de forma mais grave o homicida que comete o delito apesar da existência de medidas protetivas contra si decretadas nos termos da denominada “Lei Maria da Penha”. Trata-se das medidas de suspensão da posse ou restrição do porte de armas (inciso I); do afastamento do lar ou da convivência com a vítima (inciso II) e da proibição de certas condutas, tais como: a aproximação da ofendida, de familiares e testemunhas, sendo fixada um limite mínimo de distância, bem como a proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas e a proibição de frequentar certos lugares (inciso III).

Como se trata de um crime doloso contra a vida, o processo e julgamento do feminicídio são de competência do Tribunal do Júri, cuja previsão é constitucional, conforme o artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da Constituição Federal.

Note-se que alguns autores questionam acerca da constitucionalidade da qualificadora do feminicídio por supostamente violar o princípio da igualdade, ao fazer uma distinção entre crimes praticados contra homens e contra mulheres. Todavia, não há essa violação porque não basta o crime ser praticado contra mulher, devendo se enquadrar no contexto da razão ser a condição de sexo feminino, conforme já supramencionado.

Outrossim, a Lei nº 11340/06, ao tratar da violência doméstica e familiar, e a Lei nº 13104/15, ao dispor tal qualificadora, buscaram promover a igualdade material. Trata-se de ações afirmativas em favor das mulheres, visto que são mais vulneráveis fisicamente em comparação com os homens e são submetidas historicamente a um contexto de violência e dominação masculina, em razão do gênero (ESTEFAM, 2016, p. 142).

Evidencia-se, ainda, que não há que se falar em violação ao Princípio do “Ne bis in idem” entre as qualificadoras do feminicídio e do motivo torpe (artigo 121, §2º, inciso I, do Código Penal). O STJ possui jurisprudência uníssona nesse sentido e entende que o feminicídio seria uma qualificadora de natureza objetiva, enquanto o motivo torpe seria uma qualificadora de caráter subjetivo. Assim, ambas as qualificadoras podem coexistir em um determinado caso concreto, não havendo dupla punição.

De acordo com o STJ, é devida a incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto, natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente. Assim, não há se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto a primeira tem natureza subjetiva e a segunda, objetiva (HC nº 433.898-RS).

Contudo, parte da doutrina ousa discordar do entendimento do Supremo Tribunal no que tange à natureza da qualificadora do feminicídio, a qual seria subjetiva, visto que pressupõe uma motivação especial, qual seja, o homicídio ser cometido contra mulher por razões da condição de sexo feminino. Assim, a qualificadora incidiria pela motivação, disposta no inciso VI, do artigo 121, e não pelos meios de execução, isto é, pela violência doméstica e familiar, funcionando o §2º-A apenas como uma explicação (CUNHA, 2019).

5 A APLICABILIDADE DA QUALIFICADORA DE FEMINICÍDIO EM DECISÕES JUDICIAIS NAS HIPÓTESES DE VÍTIMAS TRANSEXUAIS

Com relação às transexuais, os índices de violência são assustadores e pouco se tem feito para combater tais práticas. Segundo a ONG Transgender Europe, o Brasil admitiu entre janeiro de 2008 e abril de 2013 o assassinato de 486 (quatrocentos e oitenta e seis) transexuais e travestis, número quatro vezes maior do que os verificados no México, o segundo país com maior número de homicídios contra a população transexual em todo o mundo (SCHWARCZ, 2019, p. 199).

Cumpre salientar que a ONU (Organização das Nações Unidas), em 2014, ao elaborar o Modelo de protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio), estabeleceu como espécie de violência contra mulher por razão de gênero a morte transfóbica, ou seja, a morte de uma mulher transgênero ou transexual, motivada pelo desprezo e antipatia dos criminosos pela condição de gênero da vítima.

Desse modo, poderia ser aplicada a qualificadora do feminicídio para as hipóteses em que o homicídio for praticado contra transexual mulher, em razão de seu gênero?

A doutrina diverge quanto a esta questão. Para uma ala mais conservadora, a mulher transexual não seria considerada mulher para fins de aplicação da qualificadora do feminicídio, ainda que tenha realizado a cirurgia de transgenitalização e feito a posterior alteração em seu registro civil.

De acordo com Fernando Capez, o sujeito passivo é a mulher e, por força do Princípio da Legalidade Estrita, não se protege a transexual, pois o ordenamento jurídico brasileiro não admite a analogia “in malam partem”, isto é, para prejudicar o réu (CAPEZ, 2017).

Nesse mesmo sentido, o professor Francisco Dirceu Barros defende que não incidirá a qualificadora do feminicídio na hipótese de a vítima ser mulher transexual, visto que, sob os aspectos morfológicos, genéticos e endócrinos, a vítima continuaria pertencendo ao sexo masculino, em que pese ter realizado a cirurgia de transgenitalização (BARROS, 2015).

No entanto, a posição supracitada não deve predominar, nem ser defendida pelos operadores do Direito, já que, data venia, se encontra superada e totalmente contrária aos princípios constitucionais, dentre eles o da igualdade e da dignidade da pessoa humana, bem como ao Pacto de San José da Costa Rica e à Opinião Consultiva nº 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Assim, a corrente doutrinária que deve prevalecer é aquela que defende que a mulher transexual seja considerada vítima de feminicídio. Para o professor André Estefam, em se tratando de uma mulher transexual, ela é considerada juridicamente como uma mulher pelo Direito Civil. Logo, o Direito Penal não lhe pode conferir um tratamento diferente, motivo pelo qual, em respeito ao Princípio da Igualdade, deve ser considerada como sujeito passivo do crime de feminicídio (ESTEFAM, 2016).

De acordo com Cezar Roberto Bittencourt, pode ser vítima do crime de feminicídio qualquer pessoa do sexo feminino, desde que o crime tenha sido cometido por razões de sua condição de gênero, e o substantivo “mulher” abrange transexuais e travestis que se identifiquem como pertencentes ao sexo feminino (BITTENCOURT, 2017).

Conforme as lições de Rogério Sanches Cunha, a mulher tratada na qualificadora do homicídio é aquela assim reconhecida juridicamente, incluindo-se a transexual que formalmente obtém o direito de ser identificada civilmente como mulher.

Como bem lembrado pelo autor, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4275, já analisado no presente estudo, decidiu que transexuais podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem necessidade de se submeterem a cirurgia e sem necessidade de autorização judicial, em respeito ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (CUNHA, 2019, p.67).

Diante da omissão legislativa expressa, em maio de 2019, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal aprovou a proposta que inclui expressamente na Lei nº 11340/06 como vítima de violência doméstica a mulher transexual. Com isso, ela também poderia configurar expressamente como vítima de feminicídio. A proposta seguiu para a Câmara dos Deputados e, até o presente momento, ainda não foi votada. 6

A ideia é que o artigo 2º da Lei nº 11340 passe a vigorar com a previsão de que toda mulher goza dos direitos fundamentais e deve ser resguardada de qualquer espécie de violência, independentemente da sua identidade de gênero. Vejamos a redação aprovada pela CCJ:

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Ressalta-se que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), de forma pioneira, em agosto de 2019, manteve a decisão do juiz presidente do Tribunal do Júri de Taguatinga que admitiu denúncia do Ministério Público contra dois homens por tentativa de feminicídio contra uma mulher transgênero.7

De acordo com os desembargadores, havia indícios suficientes nos autos de que o crime foi motivado “por ódio à condição de transexual” da vítima, o que caracteriza menosprezo e discriminação ao gênero feminino adotado pela vítima, inclusive com alteração do registro civil.

Destaca-se que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), no ano de 2016, aceitou uma denúncia oferecida pelo Ministério Público contra um acusado pelo crime de feminicídio contra uma vítima transexual8. Outrossim, recentemente, a Polícia Civil do Estado de São Paulo registrou pela primeira vez um boletim de ocorrência no qual uma mulher transexual figurava como vítima de um crime de feminicídio ocorrido em Praia Grande9.

Desse modo, se verifica que já há casos pontuais no sistema de justiça criminal reconhecendo a mulher transexual como possível vítima de feminicídio. Contudo, é preciso que haja um maior debate acadêmico e uma conscientização dos operadores do Direito, a fim de que possam de forma ampla reconhecer a qualificadora em suas decisões práticas, de modo a viabilizar, inclusive, segurança jurídica, bem como concretizar os Princípios da Igualdade Material e da Dignidade da Pessoa Humana.

6 CONCLUSÃO

Diante do exposto, o presente trabalho teve como escopo primordial tratar da temática acerca do feminicídio e debater a aplicabilidade desta qualificadora para as hipóteses nas quais figurar como vítima mulher transexual. Ao longo deste trabalho, foi abordada a questão de gênero e transexualidade, a violência à qual se submetem as mulheres, inclusive transexuais.

Por conseguinte, foram ressaltados os direitos e as garantias já conquistadas pelas mulheres transexuais, bem como a temática do feminicídio, seu conceito, sua origem e questões práticas. Deve-se salientar o debate doutrinário acerca da aplicabilidade da qualificadora do feminicídio nos casos em que mulher transexual figurar como vítima; a omissão legislativa e a ausência de segurança jurídica nas decisões judiciais prolatadas em todo o país, o que inviabiliza um maior combate e uma maior punição a tais práticas nefastas, assim como a concretização do direito fundamental à igualdade material.

Evidencia-se que não se pode falar em justiça sem abordar concomitantemente as dimensões culturais, econômicas e políticas. De acordo com Deborah Duprat,

(...) o direito brasileiro da atualidade, em sua dogmática e na prática judiciária, vem procurando dar resposta às reivindicações de justiça nas três vertentes acima assinaladas. No entanto, só foi possível um direito permeável à questão de gênero quando se passou a ter uma Constituição amparada em dois pilares: a igualdade e o pluralismo. Apenas uma relação de igualdade permite a autonomia individual, e esta só é possível se se assegura a cada qual sustentar as suas muitas e diferentes concepções do sentido e da finalidade da vida. (DUPRAT, 2019, p. 202)

Portanto, é necessário promover um debate e uma conscientização acerca da necessidade da aplicação da qualificadora do feminicídio às mulheres transexuais não apenas como uma forma de combater a impunidade, mas também como um mecanismo de concretizar o direito à igualdade material e, assim, viabilizar a autonomia individual e o sentido da vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BITTENCOURT, Cezar Roberto. Qualificadora do feminicídio pode ser aplicada a transexual, 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-nov-15/cezar-bitencourt-feminicidio-aplicado-transexual. Acesso em 01 abr. 2020.

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Sobre a autora
Fernanda Pereira Alexandre Cavadas

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ). Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Servidora Pública efetiva do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJERJ). Assistente de Gabinete de Juízo Estadual.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Adaptação de artigo apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da Especialização em Direito Penal e Criminologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).

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