A execução em face da Fazenda Pública e o crônico problema dos precatórios

25/10/2021 às 13:48
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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo discutir a execução contra a Fazenda Pública e seu quadro atual, diante da patente morosidade no pagamento das dívidas oriundas de condenações impostas aos entes federados, que resultou, inclusive, na recente edição de duas Emendas à Constituição Federal (EC nº 94/2016 e EC nº 99/2017), instituindo o chamado Regime Especial para pagamento de crédito de precatório de Estados, Distrito Federal e de Municípios, de modo a minimizar a notória inadimplência no cumprimento das obrigações de pagar impostas à Fazenda Pública após condenações judiciais transitadas em julgado.

Palavras-chave: Processo Civil. Execução contra Fazenda Pública. Precatório.

Introdução

É certo que a execução realiza-se no interesse do exequente, tendo por finalidade específica expropriar os bens do executado, na forma dos artigos 797 e 825 do Código de Processo Civil.

Contudo, quando a Fazenda Pública é a executada, as regras da execução por quantia certa não têm aplicação, tendo em vista os atributos inerentes aos bens públicos, em especial, a impenhorabilidade e alienabilidade.

Desta forma, não havendo medidas expropriatórias para a satisfação do crédito em face da Fazenda Pública, seus pagamentos são despendidos pelo Erário, merecendo tratamento específico à execução intentada contra as pessoas jurídicas a fim de adaptar as regras pertinentes à sistemática do precatório.

Neste particular, faz-se necessário elaborar um esquadro acerca da sistemática do pagamento de precatórios, prevista no art. 100 da Constituição Federal, tendo em vista o crônico problema envolvendo o pagamento o seu pagamento em todas as esferas da federação, cuja mora em adimplir as respectivas obrigações ensejou a edição das recentes Emendas Constitucionais nº 94/2016 e nº 99/2017, que estabeleceram um Regime Especial para pagamento de crédito de precatório por parte dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Desenvolvimento

Em princípio, convém registrar que soa no mínimo estranho a Constituição dispor sobre a sistemática de execução contra a Fazenda Pública.

O Estado é a personificação do poder político e jurídico de uma sociedade, e o que se espera é que pague as suas dívidas oriundas de decisões judiciais voluntariamente, com honradez e presteza, sem a necessidade de uma fase complementar de execução.

Se partíssemos do pressuposto ideal de que o Poder Público nunca descumpre a lei e os comandos judiciais, poderíamos reputar desnecessária a previsão da execução contra a Fazenda Pública a exemplo da maioria dos Estados desenvolvidos. No entanto, não é assim.

Bem verdade, a previsão constitucional da sistemática do precatório como forma de compatibilizar o cumprimento das decisões judiciais contra a União, Estados e Municípios está muito longe de garantir a plena satisfação das dívidas a serem pagas pelo Poder Público.

Desde que foi instituído oficialmente na Constituição Federal de 1934, constitui verdadeiro descalabro depender-se do pagamento via precatório.

O Poder Público, nas três esferas governamentais, como regra quase absoluta, não paga. Há diversos exercícios acumulados. E não por acaso existe a pecha de ser calote oficial.

Nesse sentido, em movimento em prol da moralização do regime dos precatórios, o professor Humberto Theodoro Júnior anota que:

Há nos meios forenses e no seio da sociedade um descrédito e um desânimo em torno da tutela jurisdicional dispensada aos credores da Fazenda Pública. A sensação geral é de que a Justiça não tem força para compelir a Administração Pública a cumprir suas obrigações pecuniárias com os particulares, e de que os governos, cientes disso, adotam postura de completa imoralidade. Simplesmente ignoram as sentenças condenatórias e não se sentem ameaçados pela expedição dos precatórios, que se vão acumulando ano a ano, para desespero dos credores. Muitas vezes, nem mesmo são incluídos no orçamento público, e, quando o são, as verbas nunca se liberam. (THEODORO JÚNIOR, 2005, p. 10)

Araken de Assis, de igual modo, afirma que:

O sistema é ruim. Frequentemente, observou Manoel Gonçalves Ferreira Filho, se congelam parcialmente as dotações, persistindo a velha alegação de falta de verba, que nada recomenda a Administração Pública. [...] Em realidade, a má vontade de o Estado solver suas dívidas ultrapassou os limites do bem comum. É hora de por cobro a tais normas benevolentes que, ao invés de o protegerem, estimulam o inadimplemento e criam odiosa imunidade da Administração. (ASSIS, 2002, p. 232)

A justificativa do Poder Público para protelar o pagamento de precatório é não dispor de recursos suficientes no orçamento. A Administração Pública quase sempre invoca o princípio da reserva do possível, ao alegar que não tem recursos para cumprir as ordens judiciais, pois precisa atender obrigações constitucionais relevantes, com investimento em setores essenciais, como segurança, saúde, educação.

Nessa esteira, a dívida pública brasileira atinge a impressionante marca de R$ 84 bilhões, distribuídos entre 279.700 precatórios e 5.594 entidades devedores, cuja previsão de quitação é de mais de 15 anos, segundo atualização de 2009 realizada pelo Conselho Nacional de Justiça.

O maior devedor, ainda segundo as informações fornecidas pelo CNJ, é o Estado de São Paulo, incluindo seus 645 municípios, com uma dívida de R$ 20,6 bilhões no Tribunal de Justiça, R$ 1,4 bilhão no Tribunal Regional Federal e R$ 1,8 bilhão no Tribunal Regional do Trabalho. Em seguida vem o Paraná com dívida total de R$ 10,2 bilhões, praticamente o mesmo valor da dívida do Espírito Santo, que ocupa o terceiro lugar no ranking.

Veja-se, portanto, que a demora na satisfação do crédito oriundo de sentença judicial contra o Estado é um problema complexo e de grande magnitude, criando um clima de imoralidade pública que afeta a dignidade da Justiça e vilipendia os direitos dos credores da Fazenda Pública.

Diante desse quadro, é oportuna a contribuição do professor Vincenzo Demetrio Florenzano ao considerar a inadimplência no pagamento do precatório um problema transdisciplinar:

O não-pagamento dos precatórios é, sem dúvida, um problema grave que poderíamos classificar como transdisciplinar complexo, sendo ao mesmo tempo jurídico, econômico e social. É um problema jurídico, porque o não-pagamento dos precatórios configura um descumprimento de decisões judiciais transitadas em julgado. Ora, se o próprio Estado não cumpre as decisões judiciais, não se pode sequer falar em Estado de Direito. É também, no entanto, um problema econômico, porque afeta o desenvolvimento da atividade econômica e diz respeito à alocação de recursos escassos. É, ainda, um problema social, porque envolve a distribuição e aplicação de recursos públicos. (FLORENZANO, 2005, p. 18)

Visando impedir a perpetuação da Fazenda Pública na postura de devedor recalcitrante na inadimplência, duas são as sanções previstas constitucionalmente: a intervenção (da União nos Estados, e do Estado nos Municípios) na pessoa do direito público que não cumpre o precatório no prazo devido e o seqüestro de receitas da entidade devedora, quando há quebra do direito de preferência entre os credores .

Contudo, na enorme maioria dos casos, ambas as medidas são impotentes. O sequestro, por ser de escassa aplicabilidade, uma vez que só é aplicável quando ocorra pagamento fora da ordem cronológica de apresentação dos precatórios. E a intervenção porque, segundo Humberto Theodoro Júnior (2005, p. 67), a Justiça quase nunca consegue executá-la, e chega-se a reconhecer que a falta de recursos orçamentários pode servir de justificativa para o descumprimento dos precatórios e a denegação da intervenção federal no Estado devedor.

Conclusão

Grande parte da doutrina acredita que não haverá solução para o pagamento de precatórios enquanto não se responsabilizar o dirigente público pela não inclusão do dinheiro no orçamento.

Humberto Theodoro Júnior (2005, p. 68), por exemplo, chega a sugerir uma possível saída fora processo civil, com a adoção de postura mais enérgica por parte dos tribunais através da responsabilização penal dos culpados pelo inadimplemento.

Fato é que, atualmente, não há nada que puna os administradores do dinheiro público pelo não pagamento da dívida pública judicial.

Contudo, com a manifesta finalidade de apresentar instrumentos concretos e eficientes para solucionar, ou ao menos minimizar, o crônico problema dos precatórios, viabilizando os pagamentos de créditos inscritos há anos e não adimplidos pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, foi instituído o regime especial de precatórios, alterado por meio das Emendas Constitucionais nº 94/2016 e 97/2017.

A referida EC 94/2016 acresceu ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias os arts. 101 a 105, estabelecendo um regime especial para pagamento de precatórios a Estados, ao Distrito Federal e a Municípios que, em 25 de março de 2015, estivessem em mora com o pagamento de seus precatórios, cujos débitos vencidos deverão ser pagos até 31 de dezembro de 2020 (prazo que fora ampliado em 4 anos pela EC 99/2017, ou seja, permitindo o adimplemento até 31 de dezembro de 2024), depositando, mensalmente, em conta especial do tribunal respectivo, sob única e exclusiva administração deste, um doze avos do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao do pagamento, em percentual suficiente para o pagamento dos seus débitos.

Outrossim, adotado o regime especial, não poderá haver sequestro de valores destinados ao pagamento de precatórios, salvo no caso de falta de liberação tempestiva dos recursos para o tribunal de justiça local.

Ademais, a falta de liberação tempestiva de recursos implica, ainda, a retenção pela União de recursos referentes aos repasses do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios. Assim, os Estados devem reter os repasses previstos no parágrafo único do art. 158 da Constituição Federal, depositando os correspondentes valores na conta especial mantida no tribunal de justiça local para que sejam pagos, com eles, os precatórios em mora, nos termos do art. 101 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

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Por fim, no afã de coibir a recalcitrância do inadimplemento das obrigações imputadas à Fazenda Pública, o regime especial prevê que Enquanto perdurar a omissão na liberação dos recursos, o ente federado não poderá contrair empréstimo externo ou interno, ficando impedido de receber transferências voluntárias, salvo para os fins do § 2º do art. 101 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Resta aguardar os impactos das recentes reformas que modificam o regime especial Regime especial para pagamento de crédito de precatório de Estados, do Distrito Federal e de Municípios, na expectativa de que a introdução dos novos instrumentos no combate à notória morosidade no pagamento dos precatórios judiciais surta o efeito mínimo de diminuir o tempo de espera dos particulares que aguardam pelo recebimento das dívidas oriundas de condenações em face da Fazenda Pública.

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