TEORIA GERAL DOS RECURSOS NO NOVO PROCESSO CIVIL

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26/10/2021 às 19:16
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SUMÁRIO: 1. Conceito de recursos no processo civil. 2. Natureza jurídica do recurso. 2.1. Recurso como prolongamento do direito de ação 2.2. Recurso como ação autônoma. 3. Atos processuais sujeitos a recursos. 4. Legitimidade para recorrer. 4.1 A legitimidade das partes. 4.2 A legitimidade do Ministério Público. 4.3 A legitimidade de terceiros. 4.4 A legitimidade do juízo e de seus assistentes. 4.5 A legitimidade do advogado. 5. Juízo de admissibilidade e de mérito. 6. Efeitos dos recursos. 6.1 Efeito substitutivo. 6.2 Efeito translativo. 6.3 Efeito expansivo. Referências bibliográficas.

1 CONCEITO DE RECURSO NO PROCESSO CIVIL

O Código de Processo Civil de 2015 não enunciou explicitamente o conceito jurídico de recurso, seguindo a mesma linha do que já ocorrera na disciplina normativa dos Códigos pretéritos. Coube, portanto, à doutrina declamar o conceito que veicula a atual compreensão científica acerca do instituto.

Talvez a conceituação mais articulada tenha cabido ao mestre José Carlos Barbosa Moreira, que classificou o recurso como o instrumento idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração da decisão judicial que se impugna[1].

Apesar de ser uma conceituação frequentemente reproduzida pelas obras processuais, a definição merece um pequeno adendo.

Conjugando a definição com a norma insculpida no art. 502 do CPC/15[2], vislumbra-se o aditamento do conceito pela assimilação de novo critério. Isso porque, além de provocar o reexame da matéria, a interposição do recurso impede que se forme a coisa julgada material, pelo menos em relação aos capítulos da decisão que foram impugnados, ou no pertinente às matérias de ordem pública, as quais podem ser conhecidas de ofício em qualquer fase do processo.

A supressão temporária da imutabilidade e da indiscutabilidade da decisão é consequência lógica da impugnação exercida, uma vez que essa tem o poder de sustar, ainda que temporariamente, o curso do processo enquanto pendente de apreciação, já que podem exsurgir modificações substanciais derivadas do rejulgamento da causa pelo órgão revisor. Pode ser que até mesmo não haja efeito suspensivo para o recurso, e o processo continue o seu curso lógico, mas jamais poderá haver preclusão máxima, porque assim restaria inócuo o manejo dos recursos. Ainda que não haja perigo de dano irreversível, a interposição de recursos pode modificar o resultado do processo e, portanto, a coisa julgada deve aguardar a prolação da última decisão judicial no seu curso.

Assim, é de se pensar que, conquanto o recurso seja, de fato, um instrumento apto a demarcar um revolvimento da matéria processual, também adia a formação da preclusão máxima, que fica à mercê do julgamento do último recurso passível de interposição pelas partes. É o que Araken de Assis chama de inibição da eficácia da coisa julgada, fenômeno decorrente da mera interposição de qualquer recurso cabível na espécie[3]. Se esse será inepto ou se não passará pelo crivo da admissibilidade, é matéria que envolve o plano da eficácia. Mas a simples constituição do instrumento recursal é motivo idôneo a interromper a formação da coisa julgada.

Outro ponto que merece adendo à brilhante definição de Barbosa Moreira reside na compreensão de que o recurso é um elemento volitivo dentro do processo. Não é cabível, dentro das garantias do devido processo legal, a existência de recursos vinculados ou obrigatórios, por se tratar de autêntica carga processual passível de aproveitamento por quaisquer das partes, que podem inclusive renunciar ao direito (art. 999, CPC/2015). O recurso é a encarnação do dissabor da parte em relação a uma decisão judicial, e ingressa dentro das regras dispositivas do processo, no sentido de que somente deve recorrer de uma decisão aquele que se vê insatisfeito em sua pretensão, visando provocar o reexame da matéria e, com isso, obter situação jurídica mais favorável[4].

É dizer: a parte não é compelida a exercer o direito de insurgir-se dos pronunciamentos judiciais, nem mesmo quando esses lhe prejudicam. O recurso é ao mesmo tempo poder e ônus das partes, as quais, em nenhum momento, se vêem na obrigatoriedade de praticá-lo. Se não o fizerem, certamente restará precluso o direito de impugnar o decisório, sobejando apenas o conhecimento de ofício pelo órgão revisor de matérias de ordem pública, quando devolvida a matéria por interposição de recurso pela parte contrária. Por isso, deve-se conceber o recurso como ato jurídico voluntário. E isso traz algumas consequências lógicas, como, por exemplo, a exclusão da remessa necessária do rol dos recursos, posto que ausente o critério volitivo.

A doutrina parece ter sedimentado um conceito de recurso que incorpora os fins colimados pelo recorrente, numa relação de causa-consequência. Nesse aspecto, ao passo que a causa é a interposição voluntária do recurso dentro do mesmo processo, a consequência é, imediatamente, o sobrestamento da coisa julgada e, mediatamente, a possível invalidação, reforma, esclarecimento ou integração da decisão.

À vista disso, ao partir-se do pressuposto que o recurso atua dentro do mesmo processo e inibe a formação da coisa julgada, é possível mais facilmente distinguir essa categoria jurídica dos demais elementos que, finalisticamente, possam produzir resultados semelhantes, a exemplo do que ocorre com a ação rescisória ou com o mandado de segurança. Entrementes, pode-se definir o recurso como o ato jurídico processual voluntário, manejado por qualquer das partes, que visa impugnar uma decisão judicial a que se juga maculada por algum vício processual que exija saneamento, por meio de reforma, invalidação, esclarecimento ou integração, e que, por prolongar a marcha processual, obsta a formação da coisa julgada enquanto pendente de apreciação.

Superado o conceito jurídico de recurso, tem-se de ter em mente a existência de outros instrumentos de provocação da jurisdição que podem eventualmente induzir o reexame de uma decisão judicial e, consequentemente, promover a reforma ou invalidação do decisório. São as ações autônomas de impugnação e os sucedâneos recursais.

As ações autônomas, como o próprio nome já induz, são manejadas mediante a instauração de nova relação jurídica processual que visa reexaminar uma decisão judicial proferida em outro processo. Tais ações podem ser manejadas ora após o trânsito em julgado do processo em que se proferiu a decisão impugnada (nas ações rescisórias), ora de modo concorrente com o curso de outro processo em que uma decisão tenha sido proferida (mandado de segurança ou embargo de terceiros). Em qualquer hipótese, distinguem-se dos recursos por exigirem a instauração de um processo apartado do que se proferiu a decisão da qual se insurge.

Outro instrumento capaz de confusão com os recursos são os sucedâneos recursais. Como bem cita Humberto Theodoro Júnior, esses instrumentos medeiam as categorias jurídicas dos recursos e das ações autônomas, por serem subsidiárias às hipóteses de qualquer um desses, uma vez que não se encontram no rol taxativo do art. 994 do CPC/2015, tampouco exigirem a instauração de uma nova relação jurídico processual[5]. São exemplos de sucedâneos recursais o pedido de suspensão de segurança (Lei nº 12.016/09), a remessa necessária (art. 496, CPC/2015) e a correição parcial (conforme regimentos internos dos tribunais).

Nesse sentido, vale rememorar o princípio que vige na sistemática processual brasileira - o da taxatividade recursal. Por força deste, somente se enquadram na natureza de recursos aquelas figuras expressamente previstas em lei, o que pode-se dar dentro do próprio Código de Processo Civil ou nas demais leis extravagantes. Cite-se, por exemplo, a Lei nº 6.830/1990, que instituiu a figura dos embargos infringentes. Contudo, todas esses recursos carregam a mesma característica: são incidentes do mesmo processo em que se proferiu a decisão recorrida[6].

Por fim, cabe alertar acerca de um aspecto dentro da categoria dos recursos que pode levar a equívoco. Quando se trata da prática forense recursal, a concepção lógica induz o intérprete à compreensão de que a peça de irresignação sempre é analisada por um colegiado, por uma turma ou por outro julgador; quando - na verdade - há hipóteses legais em que o recurso é analisado pelo mesmo julgador que proferiu a decisão atacada, ou monocraticamento pelo relator no caso de decisão colegiada. É a situação ocorrida, por exemplo, com os embargos de declaração (art. 1.022, CPC/2015). Não se demonstra adequado, portanto, sob o ponto de vista conceitual, tentar empreender uma noção de recurso com veicule esse aspecto como regra geral.

2 NATUREZA JURÍDICA DO RECURSO

Compreender a natureza jurídica do recurso é uma tarefa de impostergável importância, uma vez que são instrumentos manejados dentro do processo que podem alterar o curso e o resultado da relação processual. Como já afirmado, os recursos adiam a formação da coisa julgada e, naturalmente, deslocam (ou devolvem) o conhecimento da matéria a um outro órgão julgador (na maioria dos casos), o que, portanto, pode suscitar entendimentos diversos quanto à categoria jurídica em que se inserem e quanto aos efeitos jurídicos dentro da dinâmica processual. A concepção ontológica desse elemento é importante porque pode trazer consequências bastante distintas ao ingressarem na órbita das relações sociais.

Dois questionamentos podem ser aduzidos inicialmente: os recursos instaurariam novas ações no mesmo processo? Ou seriam eles apenas desdobramento do direito de ação que já se exerce no processo?

A doutrina se divide entre as duas correntes.

2.1 Recurso como prolongamento do direito de ação

A primeira tese, encampada pela maioria dos doutrinadores, reconhece nos recursos uma extensão do direito de ação já exercitado no processo. Também seguindo a preleção de José Carlos Barbosa Moreira, a teoria compreende o recurso como aspecto, elemento, ou modalidade do próprio direito de ação exercido no processo[7].

Nesse particular, o recurso seria um prologamento do direito de ação, ou seja, um direito de ordem subjetiva exercido no curso lógico da relação jurídico-processual, oportunizado pela repercusão jurídica da instauração da relação original. Quem se alinha a essa teoria, deve reconhecer que o direito de ação é exercido ininterruptamente, enquanto perdurar o curso processual, mediante exercício de todos os ônus, deveres, poderes e meios inerentes a tentar afirmar o seu direito ou infirmar o direito da parte adversária, até as vias da definitividade. Daí a síntese de Humberto Theodoro Junior ao aduzir que o direito de recurso é materializado por um incidente ou desdobramento do processo, como resultante do direito de ação[8].

A tese se ampara por argumentos pertinentes, que merecem colação. O primeiro deles seria a prescindibilidade dos requisitos essenciais para a formação de nova relação processual, já que a interposição do recurso não se submeteria às mesma formalidades do direito de ação, o que não impunha, por exemplo, a necessidade de nova citação do recorrido e nova habilitação dos procuradores. Outro argumento reside na alegação de que o recurso não forma nova relação jurídica-processual, mas apenas prolonga a existência da primeira, uma vez que não é capaz de alterar os elementos da ação originária (atores, causa de pedir e pedido). Talvez esse último seja o argumento peremptório para agasalhar a tese.

Nesse articulado, primeiro parte-se da conclusão para provar a hipótese. Não há no recurso novos elementos que possam instaurar nova pretensão. O recurso visa guarnecer os elementos da ação originária, uma vez que, por sua própria natureza, está adstrito às matérias e aos elementos da ação vindicados na relação processual original.

Supondo uma relação jurídica aperfeiçoada, o vínculo e a matéria controvertida estabelecidos pelos atores na relação trium personarum inaguaral se mantém ileso até o exaurimento da marcha processual, independemente de quantos e quais recursos a parte se esforçou para interpor. Eventuais recursos que possam ser interpostos antes da estabilização definitiva da relação jurídica seguem essa mesma linha, por exemplo, agravo de instrumento para discutir exclusão de litisconsorte. Nesse caso específico, houve apenas um reconhecimento de que originalmente a ação deveria ter sido interposta em relação àqueles atores. O mesmo se segue por eventuais delimitações ou reduções da matéria litigiosa.

O fato é que os recursos, em nenhuma hipótese, são capazes de gerar novas ações, porque não são capazes, isoladamente, de deduzirem novas pretensões autônomas, como ocorre na reconvenção. Em casos mais extremos, o recurso pode eventualmente anular toda a cadeia processual, mas não se admite que eles possam instituir relação jurídica diversa da perquerida pelos litigantes. A pretensão do recurso se baseia solamente em um erro promovido pela autoridade judiciária, e que, por via reflexa, tem o condão de alterar o decisório.

Nesse sentido, não há nova pretensão deduzida como ocorre na reconvenção. A pretensão inicial se mantém incólume, apenas, como já dito, é prolongada. Apesar de se reconhecer que os fatos jurídicos que servem de escoadouro para exercício do direito de recurso possam ser distintos daqueles que subsidiaram o direito de ação, é notório que a causa de pedir e o pedido alegados no recurso devem deter-se sobre atos judiciais específicos da relação original, e apenas indiretamente têm o condão de interceder na causa de pedir deduzida originalmente pelas partes.

A compreensão de que o direito de recurso não é capaz de modificar a causa de pedir e os pedidos originais atraem duas consequências: (i) o resultado do recurso está adstrito aos elementos da ação originária e (ii) o recurso preserva os mesmos elementos. Apenas são formulados com uma causa de pedir imediata, que vê na causa de pedir da relação jurídica inicial um elemento de sujeição. Portanto, o recurso possui um escopo bem defindo, vinculando-se às partes e à matéria controvertida.

Dessa linha de ideias surge uma consequência importante que merece atenção. Não se reconhecendo uma nova ação para cada recurso, limita-se o âmbito de rediscussão da irresiginação recursal. Admitindo-se formação de nova pretensão e ação para cada recurso, inevitavelmente, qualquer processo poderia chegar ao infinito da indecisão. Apenas por força argmentativa, suponha que se formem novas ações dentro do mesmo processo, as partes terão inúmeras garantias processuais para postergar indefinidamente o processo. Por exigência lógica do devido processo legal, não se vislumbra como recursos poderiam ser novas ações. O surgimento de novas ações para cada irresignação formaria uma cadeia processual recursiva. Imagine, por exemplo, uma apelação cujo relator tenha tomado uma decisão monocrática, e a parte, irresignada, interponha agravo interno. Teríamos três ações ou pretensões distintas?

O objetivo do recurso não é outro senão reafirmar ou infirmar o reconhecimento da pretensão deduzida na relação jurídica inicial. A irresignação do recorrente não pode gerar qualquer tipo de novação nas pretensões das partes, que se sujeitam ao que foi alegado na propositura da demanda. Sua finalidade é o reconhecimento e a purgação de eventuais erros cometidos pelos julgadores, seja um erro in judicato ou um erro in procedendo, que merecerão o retoque devido sem que exsurgam novas pretensão das partes. Por mais que se suscite no peça recursal um fato jurídico novo que pudesse justificar o direito de reforma de um ato decisório, em última instância o que a parte pede é que sua pretensão inicial continue sendo reconhecida (por exemplo, no recurso adesivo) ou que passe a ser reconhecida a partir do provimento de seu recurso (por exemplo, com apelação). Em qualquer dos casos, o interesse da parte com o recurso é obter o fim colimado com a sua pretensão inicialmente deduzida em juízo, seja para afirmar ou infirmar o direito controvertido.

Por fim, é certo que, sendo o direito de recorrer autêntico exercício do direito de ação, o exame do mérito do recurso pressupõe a presença de determinadas condições que viabilizem seu exercício, de maneira análoga àquelas necessárias no momento do exercício do direito de ação. Contudo, é melhor que se fale em requisitos de admissibilidade dos recursos, posto que se manifestam de modo ligeiramente diferente do que as condições da ação.

2.2 Recurso como ação autônoma

A segunda corrente, apesar de não receber amparo da maioria, é contemplada por doutrinadores de grande valor, a exemplo de Emílio Betti[9]. Essa corrente concebe o recurso como verdadeira ação autônoma, diferente da exercitada na primeira relação jurídico-processual. A interposição de um recurso seria capaz de instaurar uma ação distinta e autônoma em relação àquela em que se vinha exercitando o processo, à semelhança do que ocorre com o direito de reconvenção (art. 343, CPC/2015).

Essa tese reconhece, como bem afirma Araken de Assis, que o recurso é uma pretensão autônoma no mesmo processo em que se instaurou a relação original. Com isso, a interposição de um recurso, caso acatada no crivo de admissibilidade, seria causa eficiente para produzir nova ação in simultaneo processu.

Esses autores entendem que os recursos têm o condão de ampliar o mérito da demanda, pela articulação de novos fatos constitutivos da pretensão do recorrente, que podem estar esposados em fundamentos jurídicos diversos da pretensão inicial. É possível, portanto, que o fato constitutivo da pretensão recursal seja distinto do fato constitutivo da pretensão original, o que dá ensejo à formação de nova ação, com base na teoria do tria eadem. Da mesma forma o pedido seria distinto, já que ensejaria a reforma da decisão ou sua anulação, por exemplo. Em outras hipóteses, como nos casos de recursos de terceiros interessados, poder-se-ia alegar inclusive que os autores são distintos, o que robustece essa teoria.

Nesse sentido, entende-se que o mérito do recurso não possui nenhuma semelhança com o objeto litigioso, reconhecendo Nelson Nery Jr. que o mérito recursal é a reforma da decisão, para que o recorrente possa produzir a prova pretendida, diferindo do mérito da ação primeva[10].

Assim sendo, como afirma Araken de Assis, o processo é o mesmo, mas tornado complexo pela introdução de nova pretensão. A análise dos elementos da pretensão recursal revela que o recurso constuitui verdadeira pretensão autônoma, porque diferente da primitiva, exercitada em simultaneo processu[11].

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Apesar dos esforços teóricos, tendo como um dos maiores expoentes brasileiros Araken de Assis, em brilhante obra, não há como conceber o recurso como uma ação autônoma. Não é não é cabível, pelos argumentos já articulados na seção 2.1, a afirmação de que o recurso promova o surgimento de nova relação jurídico-processual.

3 ATOS PROCESSUAIS SUJEITOS A RECURSOS

Dentro da dinâmica processual, a atividade forense do julgador se divide essencialmente em dois poderes-deveres: o de dar solução final à lide, preferencialmente com solução de mérito, e o de conduzir a marcha processual segundo o procedimento esposado na lei, resolvendo eventuais incidentes e crises processuais que possam interromper o curso lógico do procedimento. Tudo isso é feito para que o processo culmine, à baliza das determinações e garantias legais, na adequada prestação jurisdicional.

Nesse articulado, reconhece-se que o julgador pode praticar dois tipos de atos processuais: atos decisórios e atos não decisórios. Nos primeiros há conteúdo deliberativo e de ordem imperativa, visando solucionar as questões controvertidas surgidas dentro do processo seja de aspecto material, seja de aspecto processual. Essas decisões podem provocar mudanças jurídicas na situação das partes e sempre produzirão efeitos no âmbito do processo; no segundo, o juiz nada decide. Há apenas ordem de impulsionamento da marcha processual, de função essencialmente administrativa e sem intuir modificações ou danos às esferas jurídicas das partes.

A teoria dos atos processuais reconhece basicamente três espécies de atos processuais praticados pelo juiz; são eles: sentenças, decisões interlocutórias e despachos (art. 203, CPC/2015). Todos eles são atos de autoridade, mas nem todos ensejam a interposição de recurso.

A dogmática processual concebe o manejo de recursos, majoritariamente, para atacar os atos do julgador, excluindo-se dessas possibilidades os atos particados pelas partes interessadas e demais atores processuais, salvo raríssimas exceções que serão vistas adiante. Mas nem todos os atos emanados pelo juiz podem ser atacados, somente aqueles que veiculam teor decisório (sentenças e decisões interlocutórias). Mas, mesmo dentro da classe de atos decisórios, o Código exclui algumas espécies de atos decisórios da impugnação exercitada pelas partes. É o que ocorre, por exemplo, com a decisão que releva pena de deserção (art. 1.007, § 6º, do CPC/2015) e com a decisão do relator do recurso especial que reputa prejudicial o recurso extraordinário (art. 1.031, § 2º). Ambas são irrecorríveis por força legal.

Tirante as regras excepecionadoras, a fórmula geral é a recorribilidade das decisões judiciais. Isso fica claro pela exegesse dos arts. 1.009 e 1.015 do CPC/2015 ao preconizarem que a sentença é atacada pelo recurso de apelação e as decisões interlocutórias por agravo de instrumento. A mesma lógica se estende para as demais classes recursais, como os embargos de declaração, o agravo interno e os recursos dirigidos aos tribunais superiores.

Os demais atos processuais - praticados pelo juiz ou por serventuários, e posteriormente revistos pelo juiz, como despachos, atos meramente ordinatórios e atos de mera administração processual - apenas servem para impulsionar a marcha processual, sem carregar teor decisório e, portanto, não têm o apanágio de prejudicar ou favorecer qualquer das partes. Bem por isso, a regra inserta no art. 1.001 do CPC/2015 é expressa ao vedar a impugnação dos despachos.

4 LEGITIMIDADE PARA RECORRER

A legitimidade é um dos requisitos intrínsecos (inerentes) ao poder de recorrer, por meio dos quais o julgador orienta sua avaliação para verificar se a irresignação atende às condições mínimas de admisibilidade, ou seja, se o recurso poderá ser conhecido.

Na lição de Alexandre Freitas Câmara, a legitimidade para recorrer é a aptidão que deve ostentar o sujeito processual que interpõe o recurso, para, no caso concreto, ter sua impugnação conhecida pelo órgão judicial imbuído dessa atividade[12].

O art. 996, caput, do CPC/2015 preconiza que são legitimados para recorrer a parte vencida, o Ministério Público e o terceiro juridicamente interessado.

Como bem afirma José Carlos Barbosa Moreira, por óbvias razões de conveniência e comodidade ao andamento da relação processual, apenas aquelas pessoas que sofram influência relevante do pronunciamento judicial possuem a aptidão para interpor recursos, afigurando-se como carente de interesse ou legitimidade em fazê-lo aquele que não tenha sido influenciado pela decisão, nem mesmo indiretamente.

4.1 A legitimidade das partes

Como afirma Araken de Assis, parte é quem figura, a qualquer título, nos polos de uma relação processual pendente, tendo direto interesse na solução final dada ao litígio. São, portanto, autor e réu, assim como eventuais litisconsortes, pouco importando a natureza deste. Da mesma maneira, incluem-se no rol de partes as demais formas de intervenção de terceiros, incluindo os denunciados da lide, os chamados ao processo e os assistentes (simples ou litisconsorcial), a par da inteligência contida nos arts. 119 a 130 do CPC/2015.

A parte, para poder recorrer, deve ser vencida ou sucumbente, ainda que em extensão mínima do pedido. Este é o requisito mínimo para poder comprovar seu interesse de recorrer. Contudo, o ordenamento jurídico também abre oportunidade para que a parte vencedora possa contraditar os argumentos eventualmente manejados pela parte sucumbente, à luz do princípio da dialeticidade, permitindo que a parte vencedora interponha recurso adesivo ao recurso independente da parte vencida, conforme norma prevista no art. 997, § 2º, do CPC/2015. O recurso subordinado (ou adesivo) é admissível na apelação, no recurso extraordinário e no recurso especial (art. 997, § 2º, II, CPC/2015).

É importante que se defenda, à luz do que já afirmado anteriormente, no sentido de que as partes não são obrigadas a recorrer. Como bem aduz Araken de Assis, o poder de recorrer é uma opção individual inculcada por motivos de foro íntimo, raramente sindicáveis no plano processual[13]. Portanto, mesmo em hipóteses de litisconsorte, as partes não são obrigadas a recorrer, ressalvando a hipótese legal insculpida no art. 1.005 do CPC/2015, reconhecendo que o recurso interposto por um dos litisconsortes a todos aproveita, salvo se distintos ou opostos os seus interesses.

Se eventualmente alguém que devesse ter sido incluído em litisconsorte ou ter sido incluído como algumas das modalides de intervenção de terceiros, certamente terá legitimidade para recorrer, seja em via de agravo de instrumento ou de apelação, a depender da hipótese. Nesse caso, poderá formar-se um litisconsórcio por força da interposição do recurso. Acaso interponha recurso sem ainda ter sido incluído como litisconsorte, ingressará na via recursal como terceiro interessada, em modalidade vista em tópico adiante.

Outro ponto de crucial importância é distinguir o interesse de agir em relação à causa do interesse de recorrer. Não raras vezes, o julgador poderá extinguir o processo sem resolução do mérito por reconhecer falta de interesse de agir do autor, a teor do disposto no art. 485, II, ou seja, quando verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo. Mas isso não significa que o ao autor será subtraído seu direito de recorrer, podendo agitar os instrumentos recursais possíveis ao caso concreto. É o que fica claro na previsão estatuída no art. 485, § 7º, do CPC/2015.

4.2 A legitimidade do Ministério Público

O Ministério Público é legitimado para recorrer quando atua dentro do processo como parte interessada ou como fiscal do ordenamento jurídico, neste caso somente quando incidindo as hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal (art. 178, CPC/2015).

Na hipótese de atuar como fiscal da ordem jurídica, não importa se a parte interessada interpôs recurso, já que se considera presumível o benefício com a intervenção (art. 996, CPC/2015). O STJ já se posicionou sobre o tema pela súmula de nº 99, discorrendo que o Ministério Público tem legitimidade para recorrer no processo em que oficiou como fiscal da lei, ainda que não haja recurso da parte.

Portanto, o CPC/2015 amplamente reconhece ao Ministério Público a legitimidade recursal na condição de parte principal ou de parte auxiliar, restando superado o antigo entendimento que reconhecia ao Ministério Publico a legitimidade recursal apenas quando figurava como parte interessada.

Não obstante, deve-se reconhecer também sua legitimidade quando a sua intervenção ainda não ocorreu e era exigida por disposição legal ou constitucional, ou ainda quando indeferida, sob pretexto de extrapolação de competências. Nessas hipóteses, ao Ministério Público é dado o direito de intervir para corrigir o processo viciado nas vias recursais, mediante instrumento que possa invalidá-lo por erro do juiz ao não incluir o parquet como fiscal da ordem jurídica.

Em todo caso, cabe ao Ministério Público desincumbir-se do ônus de demonstrar o interesse na impugnação do pronunciamento judicial. Isso só revelar-se-à presumido nos casos em que já oficia regularmente no processo (in re ipsa). Esse é o entendimento de Nelson Nery Jr., apesar de existirem entendimentos contrários, como o de Araken de Assis e o da Segunda Turma do STJ no Resp. 2.613-SP, para quem o Ministério Público deve sempre comprovar seu interesse.

4.3 A legitimidade de terceiros

Interessante hipótese recai sobre a possibilidade outorgada pelo Código de Processo Civil aos terceiros interessados aqueles que não litigaram como parte interporem recurso sobre uma decisão judicial que lhes repercuta na esfera individual ao menos indiretamente.

O terceiro de que aqui se fala é qualquer pessoa que jamais ostentou condição de parte, ainda que na condição de intervenção de terceiro, ou deixou de assumir tal condição em momento anterior à interposição do recurso, e, portanto, deixou de praticar regularmente os atos processuais idôneos a afirmar seu interesse - ainda que reflexo - na solução da lide.

Nesse aspecto, relevante fórmula é a disposta no sistema processual brasileiro, que confere aos terceiros interessados os mesmo instrumentos recursais manejados pelas partes, que estão arrolados no art. 994 do CPC/2015.

É importante que o terceiro, contudo, se desincumba do ônus de provar seu interesser na pretensão recursal, conforme reza o art. 996, parágrafo único, ao exigir demonstração de possibilidade de a decisão sobre a relação jurídica submetida à apreciação judicial atingir direito de que se afirme titular ou que possa discutir em juízo como substituto processual. Esse é o chamado nexo de interdependência entre a decisão sobre a relação jurídica de que terceiro não participou e a consequência sobre sua esfera jurídica, suscetível à influência do provimento recorrido. Nesse arrimo, reconhece-se, como bem definiu a 3a Turma do STJ, que a decisão recorrida afetará, direta ou indiretamente, relação jurídica de que terceiro é titular[14].

Araken de Assis, por seu turno, reconhece dois requisitos essenciais para demonstração da legitimidade do terceiro na interposição de recurso, quais sejam a própria condição de terceiro que não participou ativamente da relação processual e a comprovação do nexo de interpendência[15].

Além disso, o autor reconhece três situações que ensejam a legitimidade de recurso por terceiro: (i) a decisão sobre o objeto litigioso repercutirá, indiretamente, sobre relação jurídica de que o terceiro seja titular com uma das partes, embora estranha ao litígio, reconhecendo a ele o direito de atuar como assistente simples (art. 121, CPC/2015); (ii) a decisão judicial repercutirá diretamente sobre relação de que terceiro é titular, apesar de não participar do processo, seja por não ter sido incluído como litisconsorte necessário (acarreta nulidade da sentença), seja por não ter sido incluído como assistente litisconsorcial (art. 124, CPC/2015); (iii) a decisão recairá sobre relação jurídica da qual o terceiro não é titular, nem repercutirá ao menos indiretamente sobre sua esfera jurídica, mas que conduz o processo como substituto processual

Em relação ao primeiro caso, o terceiro deve apontar, obrigatoriamente, o interesse jurídico em impugnar o decisório, que, segundo José Carlos Barbosa Moreira, o interesse aludido no art. 996, parágrafo único, do CPC/2015 em nada difere do que é exigido para alguém intervir como assistente no processo alheio. Nesse caso, em sendo reconhecida, em via de recurso, o interesse de terceiro, ocorre o que Nelson Nery Jr. enunciou de que o recurso do terceiro prejudicado representa, simplesmente, uma forma de assistência tardia[16].

No que toca aos demais casos, é possível vislumbrar-se consequências jurídicas distintas. Em relação ao terceiro que não foi admitido ao litisconsórcio necessário devendo ter sido -, não restará outra solução que a nulidade da sentença ou, se ainda em vias de agravo de instrumento, a correção da decisão interlocutória que denegou ingresso do terceiro. De qualquer modo, a falta de litisonsorte necessário no polo da ação acarreta a nulidade superveniente da sentença, por expressa previsão contida no art. 114 do CPC/2015, in fine. No que tange aos assistentes litisconsorciais, a interposição de recurso exige demonstração de relação jurídica que será afetada pela decisão judicial, a teor do disposto no art. 124 do CPC/2015. Também nesse caso, será hipótese de assistência tardia, com a consequência de que o assistente litisconsorcial não se torna parte e, portanto, não lhe cabe formular pedidos baseados em seu próprio direito material, e contra ele nenhum pedido também pode ser formulado pela parte adversária[17].

Em relação ao substituto processual, o Código Processual reconhece a possibilidade de o substituído atuar como assistente litisconsorcial (art. 18, parágrafo único, CPC/2015), podendo agitar os recursos cabidos para ser incluído na relação processual como tal. Outras hipóteses estão elencadas no art. 109 do CPC/2015, reconhecendo o diploma que os efeitos da sentença são estendidos ao adquirente ou cessionário da coisa ou do direito litigioso. Portanto, eventual inadmissibilidade de inclusão de assistente litisconsorcial nesses casos representa transgressão aos princípios do contraditório e ampla defesa por se revestir de decisão surpresa, amplamente vedada pelo devido processo legal.

4.4 A legitimidade do Juiz e de seus assistentes

A par das hipóteses previstas no art. 996 do CPC/2015, eventualmente são legitimados para interpor recursos o juiz e seus auxiliares, nas hipóteses que envolvam interesses particulares, como na exceção de suspeição e na fixação de honorários.

Em relação aos auxiliares do juízo, arrolados no art. 149 do CPC/2015, a pretensão de irresignação surge com frequência na fixação de remuneração devida ao lavor realizado no processo, geralmente de cunho técnico, a exemplo dos peritos, os quais recebem honorários decorrentes da atuação judicial.

O STJ já se posiciou de modo contrário à possibilidade de os colaboradores da justiça recorrerem dentro do mesmo processo, sobejando a esses atores processuais apenas a tutela jurisdicional por ação própria. Nesse sentido, assentou o STJ que o perito judicial não possui legitimidade para recorrer, visando ao aumento de sua remuneração[18]. Da mesma forma se reconheceu a vedação ao depositário suscitar majoração de honorários no mesmo processo da demanda originária[19]. Nesse mesmo arrimo, verifica-se o entendimento de grandes processualitas, como Nelson Nery Jr., para quem o auxiliar deve exercitar sua pretensão em ação própria[20].

Lado outro, verifica-se que dentro do STJ há entendimentos contrários, a exemplo da 2a Turma que reconheceu a legitimidade e o interesse de agir do assistente técnico em majorar os honorários fixados em grau de recurso, sob fundamento de que o ato judicial atingiu seu direito e sua patrimonialidade, cabendo, portanto, recorrer da decisão que fixou os honorários[21]. Em sentido análogo, a 4a Turma se pronunciou no sentido de que o depositário de dinheiro penhorado tem capacidade recursal para, dentro do mesmo processo, insurgir-se de decisão lhe tenha afetado diretamente[22].

Apesar da divergência vacilante da jurisprudência, entendo que não é preciso muito esforço para se concluir que os auxiliares da justiça, apesar do dever de imparcialidade, são partes processuais, e, por isso, as decisões judiciais prolatadas no curso processual têm o potencial de incidir em suas esferas jurídicas. Assim sendo, da decisão que lhes afetarem, deve ser reconhecida a capacidade de opor o recurso cabível na espécie.

Acerca dos juízes, a dicção do art. 996, caput, é clara ao afirmar que aos julgadores não é dado, em nenhuma hipótese, o manejo de recursos, tendo em vista a imparcialidade que deve nortear a atividade jursidicional. Todavia, a norma deve ser temperada quando se afigura algum incidente processual que visa proclamar a parcialidade do magistrado ou de qualquer um de seus auxiliares, a exemplo das exceções de suspeição e de impedimento, veiculadas nos arts. 144 e 145 do CPC/2015.

Deve-se ter em mente que tais impedimentos são estendidos aos auxiliares da justiça, e, portanto, é dado a eles o direito de interpor recurso quando confrontados com tais alegativas por qualquer das partes interessadas. Inclusive porque, sendo patente o conflito de interesses, tais atores processuais incidirão em condenação ao pagamento de multa e despesas processuais, a teor do expresso no art. 146, §5o do CPC/2015. Logo, é de se reconhecer, com espeque na ampla defesa e contraditório, que esses atores processuais podem se defender da alegativa de suspeição ou impedimento, dado que o acolhimento de um ou de outro resultará em gravame concreto, inclusive de caráter patrimonial.

Nesse aspecto já que, ao tentar demonstrar a legitimidade do motivo, ele estará atuando, no incidente, com parcialidade. E se a decisão que vier a resolver o incidente lhe for adversa, tem ele o direito de recorrer. Em todo caso, não poderá o juiz impor condenação sem que, antes, seja assegurado ao assistente o exercício, na plenitude, do direito fundamental ao contraditório. O mesmo deve ser obtemperado quando há alegativa de imparcialidade do julgador. Nesse caso, o Tribunal a quem é dado resolver o incidente, deve receber as razões do magistrado de primeiro grau e eventuais documentos e rol de testemunhas, a par das disposições constantes no art. 146, §1o,, do CPC/2015, para que também seja exercitado o contraditório.

Tendo sido condenado, o magistrado pode recorrer por expresa determinação legal constante no art. 146, §5o, do CPC/2015, que preconiza o direito de o juiz recorrer da decisão quando acolhida, pelo Tribunal, a alegação de impedimento ou manifesta suspeição, que poderá ser acompanhada de condenação magistrado a quo em custas e demais despesas processuais que possa ter causado quando agindo em manifesta parcialidade e de má-fé.

4.5 A legitimidade do advogado

Sem dúvidas, no curso da relação processual, o advogado pode sofrer alguns revéses de decisões judiciais que podem afetar seus direitos, dentre os quais os de receber as verbas honorárias advocatícias.

Os direitos aos honorários estão dispostos expressamentes no art. 85, §14, do CPC/2015, que reconhece a titularidade do advogado da parte vencedora o direito aos honorários decorrentes da condenação imposta à parte adversária, constituindo autêntico direito do advogado e ostentando natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial.

Com isso, o advogado da parte vencedora se legitima, em relação ao capítulo acessória da sucumbência, a executar o valor correspondente aos honorários calculados sobre o valor da condenação, cabendo ainda o direito de recorrer para defender tal direito, podendo pleitar, eventualmente, majoração da verba devida.

Quando assim o faz, a doutrina majoritária entende que está atuando como terceiro interessado, à luz do que já foi expendido na seção 4.3, posto que não figura como parte na relação jurídica controvertida. Reconhece Araken de Assis que o interesse do advogado é somente reclamar o crédito, não incidindo sobre a parte da causa que toca ao mérito da demanda, em que atua somente como representante da parte. Por isso, é importante destacar que, do capítulo principal da sentença, isto é, a que resolve o mérito, somente os atores enumerados no art. 996, caput, são legitimados a atacá-la pela via recursal.

Reconhece-se a legitimidade de recorrer do advogado a matéria decida acerca da execução do capítulo da sucumbência, seja da parte vencedora, seja da parte vencida, uma vez que o provimento do recurso que impugna os honorários produz benefícios de um lado e desvantagens para outro. O assunto já foi pacificado pelo STJ[23].

De igual modo, o advogado também tem o direito de recorrer quando incide em condenação por má conduta processual, a exemplo de quando falta de restituir os autos dentro do prazo legal, o que lhe impõe a sanção de não poder ter o direito de vista fora do cartório, à guisa do art. 234, § 2o, do CPC/2015.

5 JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE E DE MÉRITO

Como bem afirma Araken de Assis, todo recurso prolonga indefinidamente a solução do processo[24]. Por isso, é natural que o ordenamento jurídico imponha alguns requisitos essenciais para legitimar a atividade de interposição do recurso pelas partes, uma vez que a desinibida faculdade de impugnação das decisões faria com que os processos se prolongassem injustificadamente, ante o despendimento de tempo das autoridades judiciais na apreciação de recursos inúteis e com o intuito meramente protelatório. Asim, tais requisitos, na verdade, se revestem de um conjunto de condições que a parte deve atender e que deverá ser obrigatoriamente analisado pelo órgão judiciário antes do pedido principal. Sobre esse aspecto, sintetiza José Carlos Barbosa Moreira: instituem-se condições bem específicas e superlativamente rígidas para justificar a atividade suplementar do órgão judiciário[25].

Nesse articulado, o efeito devolutivo dos recursos faz com que as pretensões recursais sejam sempre levadas ao conhecimento da autoridade judicial encarregada, a quem o ordenamento jurídico atribui o mister de realizar dois exames sobre instrumento recursal manejado: o juízo de admissibilidade e o de mérito.

Preliminarmente, apura-se se, em tese, é cabível processualmente a postulação realizada pelo recorrente, isto é, se o que a parte postula em grau de recurso é passível de conhecimento pelo órgão encarregado de processar e julgar o recurso. Para que a matéria possa ser conhecida, deve passar por um juízo preliminar que avalia variados aspectos do ponto de vista processual, formal, subjetivo etc., a fim de que o recurso possa ser apreciado no aspecto meritório; exige-se, portanto, que o processo se desenvolva perante a autoridade judicial revisora de forma regular, o que impõe a observâncias de requisitos mínimos que comprovem a legalidade e a utilidade do instrumento recursal. São pressupostos recursais que devem ser observados para que a postulação possa emanar um resultado prático minimamente útil sob o ponto de vista processual.

Pertinente ao juízo de admissibilidade, utilizando o critério esposado por Nelson Nery Jr.[26], os requisitos geralmente são divididos em duas ordens: (i) intrínsecos, que se relacionam à própria existência do poder de recorrer; e (ii) extrínsecos, que se relacionam ao modo de exercê-lo. Do ponto de vista intrínseco, as condições são o cabimento (recorribilidade do ato e adequação do recurso), a legitimação e o interesse de agir do impugnante e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo (renúncia, aceitação da sentença ou desistência). Sob o aspecto extrínseco, as condições são a tempestividade, a regularidade formal e o preparo.

É importante que se diga que nem sempre todos os requisitos serão exigidos; por exemplo, os embargos de declaração não dependem de preparo, por liberalidade do art. 1.023, caput, do CPC/2015. Ademais, nas leis de regência das espécies recursais poderão ser exigidos requisitos mais específicos, como a necessidade de prequestionamento nos recursos especial e extraordinário, conforme entendimento esposado nas súmulas 282/STF e 211/STJ.

Prosseguindo, uma vez admitido o recurso, passa-se ao juízo de mérito. A análise meritória se debruça na conjunção do pedido com a causa pedir, consistindo em confrontar o conteúdo da postulação com as normas jurídicas e com o contexto fático-jurídico do ato judicial atacado, a fim de se decidir pela procedência ou não das postulações, podendo resultar na reforma, invalidação, integração ou esclarecimento do provimento atacado.

Portanto, para que se possa realizar o juízo de mérito, deve-se realizar, ex ante, um juízo de admissibilidade, cuja falibilidade resultará, inexoravelmente, na não apreciação do pedido vindicado, em razão de objetivo prático e lógico do sistema processual, uma vez que, por não atender aos requisitos mínimos de existência (ex: tempestividade) ou de validade (ex: preparo), não há que se conhecer da matéria versada. Por isso que Humberto Theodoro Júnior obtempera no sentido de que o juízo de admissibilidade é sempre preliminar ao juízo de mérito: a solução do primeiro determinará se o mérito será ou não examinado[27].

Portanto, interposto o recurso, este passará inicialmente pelo crivo da admissibilidade, que poderá ser positivo ou negativo. Sendo positivo, diz-se que o órgão julgador conhece do recurso, viabilizando o exame de seu mérito; caso contrário, o órgão julgador não conhece do recurso, por ausência de pressupostos de constituição, ocasionando seu tracamento e, portanto, inviabilizando, desde logo, a apreciação do pedido do recorrente.

É importante deixar assentado que, caso o recorrente não se desincumba do ônus de comprovar o atendimento de todos os requisitos essenciais para o juízo positivo de admissibilidade, o recorrido não pode aproveitar dessa inadmissibilidade em proveito do julgamento de mérito, posto que este foi obstaculizado. Por outro lado, ocorre a preclusão do recorrente em insurgir-se com fundamento na mesma peça recursal, aproveitando nessa parte ao recorrido. Tal preclusão só é mitigada quando explicitamente reconhecido pelo ordenamento, a exemplo do preparo insuficiente na apelação (art. 1.007, § 2o, CPC/2015). Quando o ordenamento não autoriza o suprimento do vício, o recurso sofre de vício insuperável, resultando na preclusão do direito de recorrer.

O Código de Processo Civil de 2015 aboliu o juízo de admissibilidade provisório, anteriormente conferido ao juíz a quo, uma vez que, via de regra, o juízo de admissibilidade ou exame de cabimento foi atribuído ao Tribunal ad quem (com exceção dos embargos de declaração e dos recursos extraordinário e especial). Essa é a regra estampada no art. 1.010, § 3o, do CPC/2015, dispondo que após as contrarrazões à apelação os autos serão remetidos ao tribunal pelo juiz independentemente de juízo de admissibilidade. Da mesma maneira, as regras contidas nos art. 1.016, caput, c/c o art. 932, III, ambos do CPC/2015, estabelecem que o agravo de instrumento será interposto diretamente no tribunal, cabendo ao relator, em juízo monocrático, não conhecer do recurso inadmissível.

No que pertine aos recursos interpostos perante tribunais superiores, a regra vigente à época da promulgação do CPC de 2015 seguia a mesma lógica dos recursos premencionados. Essa era a redação original do art. 1.030 do CPC/2015, que determinava que os autos seriam remetidos ao STJ ou STF independemente de juízo de admissibilidade. Contudo, a realidade imposta pela exaustiva quantidade de recursos interpostos sem juízo preliminar de admissibilidade fez com que fosse editada a Lei no 13.256/2016, que restabeleu o dupo juízo de admissibilidade para os recursos especial e extraordinário, tendo como interesse de cunho prático a redução da carga de trabalho dos tribunais superiores. A regra quebrou o regime unitário de admissão recursal, para as duas classes de recursos, fazendo que esses tenham dupla análise de admissibilidade, uma na instância inferior e outra preliminarmente ao julgamento mérito, já na instância superior.

Sobre o tema, apenas por força retórica, é importante colacionar importante julgado do STJ sobre a temática, que assentou tese no sentido de reconhecer que o tribunal superior não se vincula ao juízo de admissibilidade realizado na instância inferior, podendo adotar um entendimento contrário. Nesse sentido, afirmou a Corte Superior que é pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça segundo a qual o juízo prévio de admissibilidade do Recurso Especial realizado na instância de origem não vincula esta Corte[28].

No que tange ao juízo de mérito, após superada a barreira da admissibilidade o órgão julgador deverá apreciar a matéria do recurso, que envolve fundamentação jurídica e um ou mais pedidos. Seguindo a lição de Araken de Assis, a análise do mérito pode assumir força declarativa ou constitutiva.

No caso de desprovimento do recurso, por ausência do direito à revisão da decisão atacada, o pronunciamento do órgão revisor certamente assumirá força declarativa, por veicular apenas a proclamação da higidez da decisão primitiva, que merece ser mantida pelos seus próprios fundamentos.

Quando a decisão do órgão revisor modifica a decisão atacada, seja pela decretação de nulidade, seja pela modificação do decisum, ocorre uma efeito constitutivo, de caráter positivo ou negativo, dependendo da hipótese. Quando o órgão revisor anula a sentença, por alguma nulidade insanável provocada por erro do julgador originário, ocorre claramente um efeito constitutivo negativo, já que é eliminado um estado jurídico criado anteriormente pela sentença atacada. É o que ocorre, por exemplo, quando o julgador deixa de citar o réu, e a sentença proferida à revelia é anulada pelo tribunal ad quem. Nesse caso, os efeitos jurídicos daquela são extintos.

Lado outro, quando, por exemplo, o tribunal opera a substituição do fundamento do provimento impugnado, por exemplo, a teor do art. 1.013, § 2o, no caso da apelação, ou quando substitui uma sentença terminativa por acórdão de mérito, nessas hipóteses está exercendo um efeito constitutivo positivo, em razão de promover o surgimento de um novo estado jurídico em substituição ao anterior, por ter havido reforma do provimento recorrido ou substituição do originário por outro de sentido diferente ou oposto[29]. Em qualquer hipótese assumirá força constitutiva positiva.

Como visto anteriormente, via de regra o juízo de mérito é realizado pelo órgão ad quem (com exceção dos embargos declaratórios), em razão das competências materiais estatuídas na Constituição Federal e, por remissão, nas Constituições Estaduais. De toda forma, é de se reconhecer a competência material para a atribuição do órgão imbuído de analisar os recursos.

Araken de Assis traça importante lição por que o ordenamento jurídico imbuiu o órgão ad quem a análise do recurso. Para o doutrinador, a justificativa recai principalmente em questão de economia, posto que, salvos raras exceções, o breve espaço de tempo decorrido entre a prolação do ato e a interposição do recurso não enseja, salvo em situações excepcionais, clima propício à mudança de entendimento externado[30]. Ademais, é de se reconhecer a garantia dos litigantes de terem as decisões que lhes afetem revistas por órgão judicial distinto do que prolatou a decisão original, tendo como fundamento o princípio do duplo grau de jurisdição, teoria já assentada no nosso sistema processual. A inevitável produção de erros na atividade judicante reclama a reavaliação das decisões judiciais, sufragada pela exigência de que as decisões passem pelo escrutínio de órgão hierarquicamente superior, presumivelmente formada por pessoas mais experientes e de caráter colegiado.

É de se pensar, sob o pálio da dissonância cognitiva do julgador, que dificilmente haveria mudança de entendimento do juiz singular, uma vez que este já teria firmado seu convencimento sobre a matéria e, portanto, duvidosamente agiria com a imparcialidade reclamada para a justa e racional revisão do seu pronunciamento. Isso explica a exigência, na maioria das espécies recursais, de análise meritória por outro órgão, a fim de se oportunizar o reexame da decisão por autoridade judicial que ainda não teve contato com a matéria.

6 EFEITOS DO RECURSO

Os recursos, via de regra, carregam dois efeitos principais: o devolutivo e o suspensivo. O efeito suspensivo se refere à repercussão impeditiva da interposição do recurso na produção dos naturais efeitos da decisão atacada, enquanto não solucionado o mérito do recurso. Já o efeito devolutivo consiste na remessa cujo termo técnico utilizado é devolução da matéria impugnada a novo julgamento, geralmente por órgão jurisdicional diverso, reabrindo-se oportunidade de reapreciação da matéria.

A finalidade primeira dos recursos é evitar o que se chama de preclusão pro iudicato, por se tratar de instrumento que impede o prosseguimento da marcha processual, enquanto não decidida a matéria suscitada na impugnação. É um dos mecanismos que impedem que o processo caminhe rumo à preclusão máxima, postergando o seu andamento pela irresignação de uma das partes (ou de ambas) quanto a uma decisão tomada no curso do processo.

Por isso, Humberto Theodoro Júnior afirma que o mecanismo dos recursos sempre tem a força de impedir a imediata ocorrência da preclusão, por sempre ostentarem o efeito devolutivo, geralmente dando-se o poder de apreciar a mesma questão por autoridade judicial diversa da que prolatou a decisão atacada. Nesse aspecto, não há como conceber um recurso que não estabeleça, ainda que minimamente, uma possibilidade de rejulgamento da matéria, consistindo nisso o efeito devolutivo dos recursos[31].

O efeito suspensivo, por outro lado, nem sempre será produzido, posto que passou a ser exceção na ordem processual após vigência do CPC/2015, que passou a disciplinar a matéria de modo contrário ao Código de 1973. Atualmente, o efeito suspensivo somente é regra para a apelação, conforme previsão estatuída no art. 1.012, caput, excluindo-se tal efeito suspensivo da apelação nas hipóteses do § 1º do mesmo artigo.

Por isso, a regra geral é que os recursos não possuem efeito suspensivo, mercê da previsão contida no art. 995 de que os recursos não impedem a eficácia da decisão, salvo disposição legal ou decisão judicial em sentido diverso. Somente em casos excpecionais, quando autorizados pelo ordenamento jurídico, é que a interposição do recurso poderá suspender os naturais efeitos da decisão impugnada, o que pode se dar por decisão monocrática do relator, quando verificar risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação, ante a probabilidade de provimento do recurso, conforme teor do Parágrafo único do mesmo art. 995.

Assim é que a regra geral é pela não existência de efeito suspensivo nos recursos, enquanto o efeito devolutivo será sempre manifesto, ante a característica inerente da via recursal em devolver a matéria para novo julgamento.

Além desses dois efeitos, a doutrina reconhece alguns outros efeitos que merecem atenção.

6.1 Efeito substitutivo

O efeito substitutivo é atribuído pelo art. 1.008 do CPC/2015 e atinge os recursos em geral. Consiste na força de julgamento de qualquer recurso, cuja decisão substitui, para todos os efeitos, a decisão recorrida no limite da impugnação exercitada. Em geral, isso ocorrerá pelo julgamento proferido pelo tribunal, que substituirá no que for cabível o objeto do recurso em relação à decisão orginal. Mas também é possível que ocorra pelo próprio julgador, nos embargos de declaração, ao reconhecer a necessidade de suprimento de omissão ou contradição na decisão impugnada.

Em larga medida, o efeito substitutivo decorre do efeito devolutivo. Se ao órgão ad quem é dado conhecer da matéria e proferir um julgamento sobre ela, torna-se, por dedução lógica, que apenas uma decisão deve prevalecer, sob pena de incongruência do sistema, uma vez que duas decisões conflitantes não podem coexistir. Na hipótese, a última decisão recairá sobre o órgão judicial hierarquicamente superior, regra calcada no princípio do duplo grau de jurisdição.

É importante destacar, todavia, para que a substituição ocorra, o recurso deve ter sido conhecido e julgado pelo mérito, uma vez que o não conhecimento do recurso ou o seu improvimento resultará inevitavelmente na intagibilidade da decisão original. Não se observará o mesmo efeito caso a decisão atacada seja anulada, posto que aí também não se terá substituído a decisão.

Portanto, para que haja substiutição, o órgão que aprecia o recurso deverá, ainda que parcialmente, acolher a pretensão recursal e operar a modificação da decisão judicial, que transitará em julgado com o teor da decisão revista. Essa será a matéria que prevalecerá e que, portanto, fará coisa julgada.

6.2 Efeito translativo

Também por consequência do efeito devolutivo, via de regra, o recurso transfere o conhecimento da matéria para a instância recursal, nos limites da impugnação exercida. O Código de Processo Civil, em seu art. 1.002, reconhece que a decisão pode ser impugnada no todo ou em parte, indicando que a matéria transferida ao órgão julgador será limitada pelos capítulos impugnados, a exceção das matérias de ordem pública, que sempre poderão ser enfretadas pelos órgãos judiciais.

Sobre o autor
Erick Teixeira Barreto

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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