5. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE E DE MÉRITO
Como bem afirma Araken de Assis, todo recurso prolonga indefinidamente a solução do processo24. Por isso, é natural que o ordenamento jurídico imponha alguns requisitos essenciais para legitimar a atividade de interposição do recurso pelas partes, uma vez que a desinibida faculdade de impugnação das decisões faria com que os processos se prolongassem injustificadamente, ante o despendimento de tempo das autoridades judiciais na apreciação de recursos inúteis e com o intuito meramente protelatório. Asim, tais requisitos, na verdade, se revestem de um conjunto de condições que a parte deve atender e que deverá ser obrigatoriamente analisado pelo órgão judiciário antes do pedido principal. Sobre esse aspecto, sintetiza José Carlos Barbosa Moreira: instituem-se condições bem específicas e superlativamente rígidas para justificar a atividade suplementar do órgão judiciário25.
Nesse articulado, o efeito devolutivo dos recursos faz com que as pretensões recursais sejam sempre levadas ao conhecimento da autoridade judicial encarregada, a quem o ordenamento jurídico atribui o mister de realizar dois exames sobre instrumento recursal manejado: o juízo de admissibilidade e o de mérito.
Preliminarmente, apura-se se, em tese, é cabível processualmente a postulação realizada pelo recorrente, isto é, se o que a parte postula em grau de recurso é passível de conhecimento pelo órgão encarregado de processar e julgar o recurso. Para que a matéria possa ser conhecida, deve passar por um juízo preliminar que avalia variados aspectos do ponto de vista processual, formal, subjetivo etc., a fim de que o recurso possa ser apreciado no aspecto meritório; exige-se, portanto, que o processo se desenvolva perante a autoridade judicial revisora de forma regular, o que impõe a observâncias de requisitos mínimos que comprovem a legalidade e a utilidade do instrumento recursal. São pressupostos recursais que devem ser observados para que a postulação possa emanar um resultado prático minimamente útil sob o ponto de vista processual.
Pertinente ao juízo de admissibilidade, utilizando o critério esposado por Nelson Nery Jr.26, os requisitos geralmente são divididos em duas ordens: (i) intrínsecos, que se relacionam à própria existência do poder de recorrer; e (ii) extrínsecos, que se relacionam ao modo de exercê-lo. Do ponto de vista intrínseco, as condições são o cabimento (recorribilidade do ato e adequação do recurso), a legitimação e o interesse de agir do impugnante e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo (renúncia, aceitação da sentença ou desistência). Sob o aspecto extrínseco, as condições são a tempestividade, a regularidade formal e o preparo.
É importante que se diga que nem sempre todos os requisitos serão exigidos; por exemplo, os embargos de declaração não dependem de preparo, por liberalidade do art. 1.023, caput, do CPC/2015. Ademais, nas leis de regência das espécies recursais poderão ser exigidos requisitos mais específicos, como a necessidade de prequestionamento nos recursos especial e extraordinário, conforme entendimento esposado nas súmulas 282/STF e 211/STJ.
Prosseguindo, uma vez admitido o recurso, passa-se ao juízo de mérito. A análise meritória se debruça na conjunção do pedido com a causa pedir, consistindo em confrontar o conteúdo da postulação com as normas jurídicas e com o contexto fático-jurídico do ato judicial atacado, a fim de se decidir pela procedência ou não das postulações, podendo resultar na reforma, invalidação, integração ou esclarecimento do provimento atacado.
Portanto, para que se possa realizar o juízo de mérito, deve-se realizar, ex ante, um juízo de admissibilidade, cuja falibilidade resultará, inexoravelmente, na não apreciação do pedido vindicado, em razão de objetivo prático e lógico do sistema processual, uma vez que, por não atender aos requisitos mínimos de existência (ex: tempestividade) ou de validade (ex: preparo), não há que se conhecer da matéria versada. Por isso que Humberto Theodoro Júnior obtempera no sentido de que o juízo de admissibilidade é sempre preliminar ao juízo de mérito: a solução do primeiro determinará se o mérito será ou não examinado27.
Portanto, interposto o recurso, este passará inicialmente pelo crivo da admissibilidade, que poderá ser positivo ou negativo. Sendo positivo, diz-se que o órgão julgador conhece do recurso, viabilizando o exame de seu mérito; caso contrário, o órgão julgador não conhece do recurso, por ausência de pressupostos de constituição, ocasionando seu tracamento e, portanto, inviabilizando, desde logo, a apreciação do pedido do recorrente.
É importante deixar assentado que, caso o recorrente não se desincumba do ônus de comprovar o atendimento de todos os requisitos essenciais para o juízo positivo de admissibilidade, o recorrido não pode aproveitar dessa inadmissibilidade em proveito do julgamento de mérito, posto que este foi obstaculizado. Por outro lado, ocorre a preclusão do recorrente em insurgir-se com fundamento na mesma peça recursal, aproveitando nessa parte ao recorrido. Tal preclusão só é mitigada quando explicitamente reconhecido pelo ordenamento, a exemplo do preparo insuficiente na apelação (art. 1.007, § 2º, CPC/2015). Quando o ordenamento não autoriza o suprimento do vício, o recurso sofre de vício insuperável, resultando na preclusão do direito de recorrer.
O Código de Processo Civil de 2015 aboliu o juízo de admissibilidade provisório, anteriormente conferido ao juíz a quo, uma vez que, via de regra, o juízo de admissibilidade ou exame de cabimento foi atribuído ao Tribunal ad quem (com exceção dos embargos de declaração e dos recursos extraordinário e especial). Essa é a regra estampada no art. 1.010, § 3º, do CPC/2015, dispondo que após as contrarrazões à apelação os autos serão remetidos ao tribunal pelo juiz independentemente de juízo de admissibilidade. Da mesma maneira, as regras contidas nos art. 1.016, caput, c/c o art. 932, III, ambos do CPC/2015, estabelecem que o agravo de instrumento será interposto diretamente no tribunal, cabendo ao relator, em juízo monocrático, não conhecer do recurso inadmissível.
No que pertine aos recursos interpostos perante tribunais superiores, a regra vigente à época da promulgação do CPC de 2015 seguia a mesma lógica dos recursos premencionados. Essa era a redação original do art. 1.030. do CPC/2015, que determinava que os autos seriam remetidos ao STJ ou STF independemente de juízo de admissibilidade. Contudo, a realidade imposta pela exaustiva quantidade de recursos interpostos sem juízo preliminar de admissibilidade fez com que fosse editada a Lei no 13.256/2016, que restabeleu o dupo juízo de admissibilidade para os recursos especial e extraordinário, tendo como interesse de cunho prático a redução da carga de trabalho dos tribunais superiores. A regra quebrou o regime unitário de admissão recursal, para as duas classes de recursos, fazendo que esses tenham dupla análise de admissibilidade, uma na instância inferior e outra preliminarmente ao julgamento mérito, já na instância superior.
Sobre o tema, apenas por força retórica, é importante colacionar importante julgado do STJ sobre a temática, que assentou tese no sentido de reconhecer que o tribunal superior não se vincula ao juízo de admissibilidade realizado na instância inferior, podendo adotar um entendimento contrário. Nesse sentido, afirmou a Corte Superior que é pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça segundo a qual o juízo prévio de admissibilidade do Recurso Especial realizado na instância de origem não vincula esta Corte28.
No que tange ao juízo de mérito, após superada a barreira da admissibilidade o órgão julgador deverá apreciar a matéria do recurso, que envolve fundamentação jurídica e um ou mais pedidos. Seguindo a lição de Araken de Assis, a análise do mérito pode assumir força declarativa ou constitutiva.
No caso de desprovimento do recurso, por ausência do direito à revisão da decisão atacada, o pronunciamento do órgão revisor certamente assumirá força declarativa, por veicular apenas a proclamação da higidez da decisão primitiva, que merece ser mantida pelos seus próprios fundamentos.
Quando a decisão do órgão revisor modifica a decisão atacada, seja pela decretação de nulidade, seja pela modificação do decisum, ocorre uma efeito constitutivo, de caráter positivo ou negativo, dependendo da hipótese. Quando o órgão revisor anula a sentença, por alguma nulidade insanável provocada por erro do julgador originário, ocorre claramente um efeito constitutivo negativo, já que é eliminado um estado jurídico criado anteriormente pela sentença atacada. É o que ocorre, por exemplo, quando o julgador deixa de citar o réu, e a sentença proferida à revelia é anulada pelo tribunal ad quem. Nesse caso, os efeitos jurídicos daquela são extintos.
Lado outro, quando, por exemplo, o tribunal opera a substituição do fundamento do provimento impugnado, por exemplo, a teor do art. 1.013, § 2º, no caso da apelação, ou quando substitui uma sentença terminativa por acórdão de mérito, nessas hipóteses está exercendo um efeito constitutivo positivo, em razão de promover o surgimento de um novo estado jurídico em substituição ao anterior, por ter havido reforma do provimento recorrido ou substituição do originário por outro de sentido diferente ou oposto29. Em qualquer hipótese assumirá força constitutiva positiva.
Como visto anteriormente, via de regra o juízo de mérito é realizado pelo órgão ad quem (com exceção dos embargos declaratórios), em razão das competências materiais estatuídas na Constituição Federal e, por remissão, nas Constituições Estaduais. De toda forma, é de se reconhecer a competência material para a atribuição do órgão imbuído de analisar os recursos.
Araken de Assis traça importante lição por que o ordenamento jurídico imbuiu o órgão ad quem a análise do recurso. Para o doutrinador, a justificativa recai principalmente em questão de economia, posto que, salvos raras exceções, o breve espaço de tempo decorrido entre a prolação do ato e a interposição do recurso não enseja, salvo em situações excepcionais, clima propício à mudança de entendimento externado30. Ademais, é de se reconhecer a garantia dos litigantes de terem as decisões que lhes afetem revistas por órgão judicial distinto do que prolatou a decisão original, tendo como fundamento o princípio do duplo grau de jurisdição, teoria já assentada no nosso sistema processual. A inevitável produção de erros na atividade judicante reclama a reavaliação das decisões judiciais, sufragada pela exigência de que as decisões passem pelo escrutínio de órgão hierarquicamente superior, presumivelmente formada por pessoas mais experientes e de caráter colegiado.
É de se pensar, sob o pálio da dissonância cognitiva do julgador, que dificilmente haveria mudança de entendimento do juiz singular, uma vez que este já teria firmado seu convencimento sobre a matéria e, portanto, duvidosamente agiria com a imparcialidade reclamada para a justa e racional revisão do seu pronunciamento. Isso explica a exigência, na maioria das espécies recursais, de análise meritória por outro órgão, a fim de se oportunizar o reexame da decisão por autoridade judicial que ainda não teve contato com a matéria.
6. EFEITOS DO RECURSO
Os recursos, via de regra, carregam dois efeitos principais: o devolutivo e o suspensivo. O efeito suspensivo se refere à repercussão impeditiva da interposição do recurso na produção dos naturais efeitos da decisão atacada, enquanto não solucionado o mérito do recurso. Já o efeito devolutivo consiste na remessa cujo termo técnico utilizado é devolução da matéria impugnada a novo julgamento, geralmente por órgão jurisdicional diverso, reabrindo-se oportunidade de reapreciação da matéria.
A finalidade primeira dos recursos é evitar o que se chama de preclusão pro iudicato, por se tratar de instrumento que impede o prosseguimento da marcha processual, enquanto não decidida a matéria suscitada na impugnação. É um dos mecanismos que impedem que o processo caminhe rumo à preclusão máxima, postergando o seu andamento pela irresignação de uma das partes (ou de ambas) quanto a uma decisão tomada no curso do processo.
Por isso, Humberto Theodoro Júnior afirma que o mecanismo dos recursos sempre tem a força de impedir a imediata ocorrência da preclusão, por sempre ostentarem o efeito devolutivo, geralmente dando-se o poder de apreciar a mesma questão por autoridade judicial diversa da que prolatou a decisão atacada. Nesse aspecto, não há como conceber um recurso que não estabeleça, ainda que minimamente, uma possibilidade de rejulgamento da matéria, consistindo nisso o efeito devolutivo dos recursos31.
O efeito suspensivo, por outro lado, nem sempre será produzido, posto que passou a ser exceção na ordem processual após vigência do CPC/2015, que passou a disciplinar a matéria de modo contrário ao Código de 1973. Atualmente, o efeito suspensivo somente é regra para a apelação, conforme previsão estatuída no art. 1.012, caput, excluindo-se tal efeito suspensivo da apelação nas hipóteses do § 1º do mesmo artigo.
Por isso, a regra geral é que os recursos não possuem efeito suspensivo, mercê da previsão contida no art. 995. de que os recursos não impedem a eficácia da decisão, salvo disposição legal ou decisão judicial em sentido diverso. Somente em casos excpecionais, quando autorizados pelo ordenamento jurídico, é que a interposição do recurso poderá suspender os naturais efeitos da decisão impugnada, o que pode se dar por decisão monocrática do relator, quando verificar risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação, ante a probabilidade de provimento do recurso, conforme teor do Parágrafo único do mesmo art. 995.
Assim é que a regra geral é pela não existência de efeito suspensivo nos recursos, enquanto o efeito devolutivo será sempre manifesto, ante a característica inerente da via recursal em devolver a matéria para novo julgamento.
Além desses dois efeitos, a doutrina reconhece alguns outros efeitos que merecem atenção.
6.1. Efeito substitutivo
O efeito substitutivo é atribuído pelo art. 1.008. do CPC/2015 e atinge os recursos em geral. Consiste na força de julgamento de qualquer recurso, cuja decisão substitui, para todos os efeitos, a decisão recorrida no limite da impugnação exercitada. Em geral, isso ocorrerá pelo julgamento proferido pelo tribunal, que substituirá no que for cabível o objeto do recurso em relação à decisão orginal. Mas também é possível que ocorra pelo próprio julgador, nos embargos de declaração, ao reconhecer a necessidade de suprimento de omissão ou contradição na decisão impugnada.
Em larga medida, o efeito substitutivo decorre do efeito devolutivo. Se ao órgão ad quem é dado conhecer da matéria e proferir um julgamento sobre ela, torna-se, por dedução lógica, que apenas uma decisão deve prevalecer, sob pena de incongruência do sistema, uma vez que duas decisões conflitantes não podem coexistir. Na hipótese, a última decisão recairá sobre o órgão judicial hierarquicamente superior, regra calcada no princípio do duplo grau de jurisdição.
É importante destacar, todavia, para que a substituição ocorra, o recurso deve ter sido conhecido e julgado pelo mérito, uma vez que o não conhecimento do recurso ou o seu improvimento resultará inevitavelmente na intagibilidade da decisão original. Não se observará o mesmo efeito caso a decisão atacada seja anulada, posto que aí também não se terá substituído a decisão.
Portanto, para que haja substiutição, o órgão que aprecia o recurso deverá, ainda que parcialmente, acolher a pretensão recursal e operar a modificação da decisão judicial, que transitará em julgado com o teor da decisão revista. Essa será a matéria que prevalecerá e que, portanto, fará coisa julgada.
6.2. Efeito translativo
Também por consequência do efeito devolutivo, via de regra, o recurso transfere o conhecimento da matéria para a instância recursal, nos limites da impugnação exercida. O Código de Processo Civil, em seu art. 1.002, reconhece que a decisão pode ser impugnada no todo ou em parte, indicando que a matéria transferida ao órgão julgador será limitada pelos capítulos impugnados, a exceção das matérias de ordem pública, que sempre poderão ser enfretadas pelos órgãos judiciais.