O caso busca analisar o episódio White Bear (segunda temporada, segundo episódio) da famosa série de ficção científica britânica Black Mirror à luz do Direito Penal, dando ênfase aos aspectos do poder punitivo, à seletividade no sistema penal e discutir o espetáculo que o direito penal se tornou na sociedade moderna. No episódio, temos a personagem principal, Victoria, acordando em um quarto estranho, sem lembrar de muita coisa, em frente a uma TV emitindo um estranho sinal. Em busca de ajuda, ela se vê perseguida por caçadores e desamparada por várias pessoas que só a filmam e sorriem de toda a situação, sem prestar auxílio algum. Ao encontrar outra pessoa "normal", Victoria descobre que o sinal de TV transformou as pessoas em voyeurs que só filmam as ações dos caçadores e a mesma se vê lutando pela própria vida. Ao fim do episódio, temos Victoria e a outra mulher chegando perto de destruir a torre que transmitia o sinal para a TV que estava deixando as pessoas daquela forma, mas o público é surpreendido com toda uma encenação projetada por um parque de Justiça, o White Bear Justice Park, onde Victoria está presa e condenada a todos os dias sofrer a justiça pelo crime de sequestro e assassinato cometido contra uma criança. A personagem está condenada, todos os dias, a sofrer a mesma punição e ter seu sofrimento filmado e consumido pelos visitantes do parque.
No caso exposto temos uma clara espetacularização da punição e do direito penal. Há uma versão moderna da caça às bruxas, sendo a protagonista exposta a uma ideia de justiça aceita e aclamada por aquela sociedade, onde o certo é expor, violentar, torturar e humilhar quem porventura venha a cometer um crime.
Friedrich Nietzsche afirma em sua obra Genealogia da Moral que:
Através da "punição" ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como "inferior" ou então, no caso em que o poder de execução da pena já passou à "autoridade", poder ao menos vê-la desprezado e maltratado. A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade. (1998)
Assim, observamos que quem está em posição superior no que diz respeito ao direito penal e aplicação de penas está sempre procurando o desprezo e crueldade para com aquele que cometeu algum crime. Mesmo que a pessoa já tenha cumprido a pena relativa àquele ato, a sociedade ainda busca o desprezo e o maltrato daquele indivíduo, não basta só a pena, deve haver mais.
Para Foucault, esta audiência às punições também se vale para punir os espectadores e também dar ciência de que estão punindo, porque só punir não basta:
Mas nessa cena de terror o papel do povo é ambíguo. Ele é chamado como espectador: é convocado para assistir às exposições, às confissões públicas; os pelourinhos, as forcas e os cadafalsos são erguidos nas praças públicas ou à beira dos caminhos; os cadáveres dos supliciados muitas vezes são colocados bem em evidência perto do local de seus crimes. As pessoas não têm que saber, mas também ver com seus próprios olhos. Porque é necessário que tenham medo; mas também porque devem ser testemunhas e garantia de punição, e porque até certo ponto devem tomar parte dela (FOUCAULT, 1987)
Como falou Foucault há tempos, para o direito penal é necessário que haja a exposição da punição para que tanto o criminoso não tente comete-lo novamente, quanto para o público se sentir amedrontado com tal punição para que não venham a cometer também. Assim, conclui-se que a punição é aplicada duas vezes: a pena em si decretada pelo sistema penal e toda a exposição, humilhação e consequências na sociedade para aquele indivíduo, que na maioria das vezes será sempre considerado um criminoso.
Uma alternativa ao que é apresentado hoje e no episódio seria a justiça restaurativa, que, segundo Braga (2014) é a abordagem dos conflitos através de encontros entre vítima e ofensor e busca a consciência e responsabilidade pelo ilícito, com a participação direta da vítima, que tem o direito lesado reparado e atua no processo como agente transformador.. No caso de Victoria, o encontro com a vítima não seria possível, uma vez que a criança estava morta, mas seria possível ainda um encontro entre a família da criança e a reparação seria maior tanto para Victoria, que além de cumprir a pena de forma adequada e justa, teria a chance de se redimir com os principais afetados com aquela atitude, quanto para a família da criança que, além de justiça busca por aceitação do ocorrido e entendimento.
Referências
BRAGA, Maria do Socorro Pelaes. Justiça restaurativa: benefícios para a sociedade e para a justiça formal. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <http://www.esg.br/images/Monografias/2014/BRAGA.pdf>. Acesso em: 24 maio 2017.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987.
NIETZSCHE, Friedrich Wilheim. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.