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A mulher enquanto metáfora do Direito Penal

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01/01/2000 às 01:00
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CONCLUSÃO

O sistema penal no seu tratamento às mulheres é um reflexo da posição social designada a elas. O discurso da igualdade, aqui, assume uma faceta cruel, as conquistas formais abstraem a materialidade das relações, o modelo do estado democrático de direito, cujo principal alicerce é a dogmática jurídica, insere valores na construção da norma e na estrutura das agências de criminalização e operacionalização, porém neutraliza a incidência das normas aos fatos.

A tipificação penal é influenciada pelos valores sócio-culturais predominantes e refletidos em todas as agências do sistema penal (legislativo, polícia, judiciário etc.). Isso faz com que uma conduta considerada crime em um dado momento não o seja em outro. Porém, no momento de aplicação e execução da norma há, em busca de uma neutralidade, a desconsideração das diferenças. O modelo atual da dogmática jurídica não é capaz de propiciar condições mais eqüidistantes entre os cidadãos. O sistema tem uma gênese masculina e aqueles que não possuem esse perfil têm suas necessidades adaptadas a esse modelo.

No caso das mulheres presas percebe-se um protecionismo discriminatório quando se trata da sexualidade feminina, refletindo a expectativa social do devido comportamento da mulher. A mulher presa é desestimulada em sua vida sexual face a burocratização para o acesso à visita conjugal. A importância e atenção dirigida à reprodução, e por conseqüência à sexualidade e à moral feminina, são resultado de todo um processo histórico que tem na família, não apenas a raiz social, mas o meio naturalmente legal de transmissão da propriedade e dos bens.

A cerca da violência doméstica é importante perceber que ela só recebe relevância com a criação da primeira delegacia da mulher. Antes simplesmente não existia. E mesmo assim é notório que o sistema penal não persecute com a mesma vivacidade o agressor da esposa ou companheira em comparação a outros delitos. A violência contra a mulher é, ainda, compreendida muito mais como um fator cultural, do que como uma conduta criminosa.

A não previsibilidade das especificidades femininas ou do entendimento de que a violência contra a mulher cometida por companheiro ou marido é de indiscutível gravidade evidenciam a representação de interesses no exercício do sistema penal. A omissão no discurso, bem como em todas as instâncias do sistema, oculta uma das facetas de sua crueldade ou como refere-se o criminólogo argentino Raúl Zaffaroni: certamente é muito suspeita a omissão que abarca a metade da humanidade (29)".

Ressalta-se que esse tema e seus estudos não se esgotam. É necessário atentar-se aos paradoxos decorrente dos processos de previsão das diferenças, é importante perceber que o direito, no caso o penal, não resolve os conflitos sociais, apenas os transforma em conflitos jurídicos. Essa consciência é necessária para que no estudo e operacionalização do direito não se criem diagnósticos falaciosos e ações que venham a acentuar a exclusão, a discriminação e a dificuldade de acesso à justiça.


NOTAS
  1. O direito trabalha com um modelo fortemente marcado por tipos voltados para signos masculinos. O direito penal brasileiro, principal objeto de nosso estudo, tem sua construção calcada nos princípios do início do século, bem como na escola positivista. Sendo concebido por determinada parcela da população o direito penal passa a tutelar os bens tidos como importantes para essa parcela. Segundo a professora Alda Facio (Sexismo no direito dos direitos humanos, CLADEM) o direito, em geral, tem como paradigma um masculino, culto, heterossexual, proprietário, saudável, ou seja, a sociedade pública, dotada do poder de legislar e aplicar as leis, do início do século era identificada por esse perfil de humano, logo, espelha seus interesses, fazendo com que outras esferas da sociedade sejam por ele representadas, bem como suas necessidades e importâncias. Para a professora Elisabeth Cancelli (Criminosos e não criminosos na história) a conseqüência da escola positiva influenciar o código penal do início do século, é que com ele todas as concepções trazidas pela época apresentam quase que invariavelmente o crime como um lugar marginal do social, dando vazão para a criação de tipos sociais delinqüentes estigmatizados. O mundo de análise dos crimes e dos criminosos, segundo a professora Cancelli, esta assentada fundamentalmente no aspecto da dinamização econômica e social e da proletarização advindas do fim da escravidão, da industrialização e da imigração em massa, sendo essas questões ponto de partida para uma normatização calcada na ideologia do trabalho.
  2. Utiliza-se o termo irritação para compreender os conflitos não previstos no sistema penal, bem como ações da sociedade civil cobrando determinadas previsões e/ou resultados.
  3. Acerca da neutralidade do direito, bem como na ciência, estudos demonstram que a pratica da ciência como descrição da realidade "tal como é" é mais um ideal de neutralidade e imparcialidade do que fato. Isso porque o conhecimento científico é determinado pelo agente e pelo método, ou seja, a ciência enquanto processo de conhecimento é condicionada pela ideologia, pela cultura do pesquisador. Tomas Kuhn apresenta a visão de uma ciência que reflete mais a ideologia do que a história real. O social, a política, a cultura afetam os usos e os enfoques da investigação científica, o que afetará determinantemente o resultado - a descrição da realidade. O que ocorre é que a verdade corresponde a teorias criadas pelos seres humanos (em regra homens) dessa forma falar em neutralidade é perigoso uma vez que os conceitos de verdade científica, como também a epistemologia correspondem a esse processo de criação, processo condicionado pelo agente.
  4. Alda Facio, em artigo publicado pelo CLADEM, referente ao Sexismo no Direito dos Direitos Humanos, ressalta ser esse paradigma um andocentrismo no direito, ou seja, é uma visão do mundo a partir da perspectiva masculina, e em virtude desse andocentrismo, todas as instituições criadas socialmente respondem as necessidades sentidas por esse modelo.
  5. O termo gênero não tem uma definição léxica satisfatória. Foi produzido basicamente pelos cientistas sociais a partir dos anos 60-70 com o objetivo de evidenciar as determinações ou estereotipações do masculino e do feminino. Para Heilborn significa "a idéia de discriminar, de separar aquilo que era o fato de alguém ser macho ou fêmea, e o trabalho de elaboração, de simbolização que a cultura realiza sobre essa diferença sexual. (Corpo Sexualidade e gênero. in: Feminino e Masculino - Igualdade e Diferença na Justiça. Porto Alegre: Editora Sulina, 1997.p 51) ). O termo gênero ressalta que os papéis sociais se devem prioritariamente por questões de cunho social e, assim, ideológico, do que por razões biológicas. A significação do ser homem e mulher é determinada pela cultura de dada sociedade. Em outras palavras, apoiando-se em Warat, expressões de gênero representam os sentidos socialmente atribuídos aos fato de ser homem ou mulher numa determinada formação social, ou seja, a feminilidade e a masculinidade como um elaborado social. (A questão do gênero no Direito, in: Feminino e Masculino - Igualdade e Diferença na Justiça. Porto Alegre: Editora Sulina, 1997. p.61).
  6. Em francês arcaico: "Nada sei; nunca li letras."
  7. O projeto burguês busca a autonomia do homem no sentido de construir o ponto de partida de todo o pensamento racional, "A nova verdade absoluta permite que se entenda que o individualismo não configura apenas uma conseqüência externa de um processo histórico dentro do qual estamos, ainda hoje, situados. Antes disso, o individualismo funcionava, como pressuposto maior que oxigenaria todo o projeto burguês." O advento da burguesia representa uma profunda revolução. A burguesia põe abaixo a doutrina do superior (deuses) e inferior (homem) quando do denodado (corajoso) estabelecimento do homem neste mundo - o homem esta destituído de qualquer forma de dependência em relação a um suposto mundo superior. Há uma valorização do trabalho, bem com da propriedade privada. (Gerd Bornheim. Ética - O sujeito e a norma, Cia das Letras pag. 247 a 260, 1992).
  8. Sobe Dogmática Jurídica ver: ANDRADE, Vera Regina de. A dogmática jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996 e JEHRING. Ruduf Von. La dogmática jurídica. Buenos Aires. Editorial Losada, S. A, 1946.
  9. A pólis representa uma forma mais consistente e mais acabada da vida social. A pólis grega pode ser traduzida tanto por Estado como por cidade. Do conceito de pólis derivam as palavras política e político (politikós) . (BOBBIo, Norberto; MATTEUCCI, Gianfranco Pasquino. Dicionário de Política. Braslília: Ed Universidade de Brasília, 1996). Todos os ramos da atividade espiritual da cultura grega brotava da unidade da vida comunitária, assim descrever pólis, a partir do conceito de cidade grega, é descrever a totalidade da vida dos gregos. Foi com a pólis grega que apareceu pela primeira vez o que hoje se denomina Estado. (TEIXEIRA, Evilázio Francisco Borges. A educação do homem segundo Platão. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas PUCRS. Porto Alegre, 1997).
  10. Ver nota nº 8.
  11. A Constituição Federal de 1988, a exemplo de outras do mundo, prevê no seu art. 5º inciso I que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações e vai mais além, no artigo 226 x 5º salienta que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente por homens e mulheres. Fazendo referência aos tratados, acordos ou convenções dos quais o Brasil é signatário, ou as declarações por ele reconhecidas, mesmo anteriores à atual lei magna, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no seu artigo I salienta que Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos (...). A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, também de 1948, no artigo II ao fazer alusão à igualdade afirma que Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm os direitos e deveres consagrados nesta declaração, sem distinção de raça, língua, crença, ou qualquer outra (...); assim, se pode perceber o reconhecimento formal da igualdade.
  12. Aníbal Bruno (1967), ao citar VON LISZT, define bem jurídico como sendo tudo o que satisfaz uma necessidade humana. Todavia, deve-se salientar que o entendimento de "necessidade humana" se estruturou a partir de uma parcela da sociedade, ou seja, o conceito de humano não representa o todo social, reiterando a afirmativa da exclusão e por conseqüência a previsão parcial das necessidades dos humanos.
  13. O Garantismo representa um parâmetro de racionalidade, justiça e legitimidade da intervenção punitiva. O garantismo envolve vários estudos acerca da sua acepções, uma das grandes referências é Ferrajoli (Derecho y Razón, Madrid: Trotta, 1992). A maior ou menor proximidade dos sistemas repressivos em relação ao Garantismo determinará o grau de tutela-violação aos Direitos Fundamentais.
  14. O direito penal abarca questões fundamentais como humanidade, Princípio da humanidade, que consiste no reconhecimento do condenado como pessoa humana; o princípio de Individualização , que nada mais representa do "que retribuir o mal concreto do crime, com o mal concreto da pena, na concreta personalidade do criminoso" como se refere Nelson Hungria (LUISI, 1991: 37), o que esta previsto no inciso XLVI do artigo 5º da Constituição Federal de 1988: A lei regulará a individualização da pena. Além do Princípio da Pessoalidade, o que significa dizer, aos olhos das nações civilizadas, que a pena pode atingir apenas a pessoa do sentenciado.
  15. Sobre esta questão ver Hans Kelsen: Lineamenti di dottrina pura del diritto, Tradução Renato Treves, Einaudi:1952; Teoria Pura do Direito, Tradução João Baptista Machado, Coimbra: Armênio Amado-editor, 1976; Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução Luís Carlos Borges, 3ª. edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998
  16. A Escola Positivista traz consigo o paradigma etiológico que define a criminologia como uma ciência causal-explicativa da criminalidade, ou seja, tem por objeto a criminalidade concebida como um fenômeno natural, casualmente determinado, assume a tarefa de explicar as suas causas segundo o método científico ou experimental e o auxílio das estatísticas criminais oficiais e de prever os remédios para combatê-la. Indaga o que o humano (criminoso) faz e porque o faz. As matrizes fundamentais na conformação do chamado paradigma etiológico de criminologia estão na antropologia criminal de C. Lombroso e na sociologia criminal de E. Ferri. Dão sustentação ao fenômeno de cientificização do controle social (Europa séc. XIX) consequentemente a Escola Positiva. O pressuposto que parte a criminologia positiva é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Assim, a criminalidade é uma realidade ontológica, preconstituída ao Direito Penal - crimes naturais - faz com que este direito não faça mais do que reconhecê-la e positivá-la, assim, descobrindo suas causas seria possível colocar a ciência ao serviço de seu combate em defesa da sociedade. (VERA REGINA ANDRADE, Do paradigma etiológico (descrição analítica da causalidade) ao paradigma da reação social: mudanças e permanência de paradigma criminológicos na ciência e no senso comum,

Seqüência nº 30, Estudos Jurídicos e Políticos, 1995.).
  • Dados oficiais ver Censo Penitenciário de 1995 do Ministério da Justiça.
  • Para entender estereótipo será usado a definição do Dr. José Leon Crochik (1997: 18) que afirma o seguinte: O estereótipo é predominantemente um produto cultural. Esses são produzidos e fomentados por uma cultura, que pede por definições precisas através de suas diversas agências: família, escola, meios de comunicação etc., nas quais a dúvida, com inimiga da ação, deve ser eliminada do pensamento e a certeza, perante a eficácia da ação, deve tomar olugar da verdade que aquela ação aponta: o controle, quer o da natureza, quer o dos homens, para poder administrar. Ou seja, a criação ou determinação de estereótipos é necessária para o andamento das ações humanas. O estereótipo não se confunde com preconceito, mas lhe da sustentação.
  • É o caso do artigo 134 do CP, que prevê a mulher que abandona o filho na tentativa de preservar sua honra e este vem a morrer, configura um tipo penal mais brando que o de homicídio.
  • As prostitutas dos séculos XVI a XVII, regiam a aristocracia brasileira no que se refere à etiqueta, tornando-se referência para essas questões, uma vez que as chefes das casas de prostituição eram européias e via de regra francesas. (RAGO, 1992).
  • As prisões funcionam como casas de Convertidas para o imaginário social, uma vez que a existência dos cárceres abarrotados proporcionam a idéia, mesmo que falsa, de segurança. Ou seja, a prisão exerce uma função terapêutica para a responsabilidade social acerca da existência da criminalidade.
  • Teoria do criminoso nato, teorias com enfoque biologicista para a prática do crime, da qual a criminalidade era resultante principalmente da genética. Teve seus maiores defensores em Cesare Lombroso, Herbet Spencer e Augusto Comte.
  • Brasão secular do Estado, ou seja, os mandados de prisão.
  • Por exemplo, a filha que é expulsa da casa dos pais ao engravidar, sua conduta não é típica, não é crime, no entanto, aos olhos da família foi errada e por conseqüência objeto de sanção (LARRAURI, 1994).
  • Através de uma interpretação finalistica do artigo 3º da Lei nº 7210 de 11/07/84 que determina: Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença penal ou pela lei, pode-se afirmar que o contato íntimo é um direito ao invés de benefício, uma vez que é apenas o que é atingido pela senteça objeto de restrição.
  • Resultados obtidos através da pesquisa de iniciação científica: O sistema prisional e a mulher, realizada pelas acadêmicas de Direito da PUCRS Samantha Buglione e Lívia Pithan, com a orientação do Dr. Cesar Bitencourt e Luiza Moll; realizada no primeiro trimestre de 1997 na Penitenciária Feminina Madre Pelletier em Porto Alegre/RS. Os dados gerais são os oficiais da Penitenciária. As entrevistas com as presas foram resultados de uma amostragem, aleatória, de 30% das 137 detentas da época.
  • Os dados de 1995 são do Censo Penitenciário do mesmo ano Ministério da Justiça .
  • Há uma portaria que regula a visita íntima das mulheres na Penitenciária Madre Pelletier. A comprovação do vínculo deve ser feita através de documento (Certidão de Casamento).
  • ZAFFARONI, Eungenio Raúl. A mulher e o poder punitivo. Ob. Cit.
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    Sobre a autora
    Samantha Buglione

    assessora da Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, mestranda em Direito

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    BUGLIONE, Samantha. A mulher enquanto metáfora do Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/946. Acesso em: 19 abr. 2024.

    Mais informações

    Texto elaborado através de pesquisa de iniciação científica - CNPq/Pibic, a ser publicado na Revista Discursos, no primeiro semestre de 2000

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