A administração pública e a pandemia: dispensa e relativização das licitações em tempos de Covid-19

Exibindo página 1 de 2
09/11/2021 às 19:53
Leia nesta página:

A Covid-19 se transformou em um cataclismo mundial que impôs desafios aos chefes de Estado de todo o planeta. No Brasil, apesar da catástrofe com o esgotamento de leitos nas UTIs e com o alto número de mortes, foram tomadas inúmeras medidas na tentativa de combater esse fenômeno devastador. No tocante à administração pública e ao direito administrativo, uma das medidas tomadas pelos órgãos do Estado foi em relação às licitações. Desse modo, o intuito do seguinte ensaio é demonstrar os efeitos provocados pela pandemia da Covid-19 nesse procedimento administrativo.

Começando pela licitação, faz-se mister elucidar que licitação é: O procedimento prévio de seleção por meio do qual a administração, mediante critérios previamente estabelecidos, isonômicos, abertos ao público e fomentadores da competitividade, busca escolher a melhor alternativa para a celebração de um contrato. (CHARLES, 2020: 277). Nesse sentido, infere-se que o poder público tem o dever de licitar. Contudo, há alguns casos específicos em que a própria legislação eximiu a administração pública de tal obrigação. Cronologicamente, remetendo inicialmente ao ano de 2020, no qual ainda não havia sido aprovada a nova Lei de Licitações; o artigo 24 da lei 8.666/93 trouxe um rol de possibilidades para a dispensa de licitação. Através de uma hermenêutica literal e sistemática, infere-se que o inciso IV desse artigo se amolda na situação vivida em 2020/2021. Ele possui a seguinte redação:

IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos; (BRASIL, 1993).

Nesse sentido, a fim de enfatizar o caso descrito pelo inciso IV do artigo 24 da Lei 8.666/93 e oferecer maior segurança jurídica ao administrador público, foi publicada a Lei Federal nº 13.979/2020, posteriormente modificada pela Medida Provisória nº 926/2020 e pela Lei Federal n° 14.035/2020, e com validade concomitantemente com a vigência do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020; estabelecendo as providências para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional causada pela Covid-19. O artigo 4° dessa lei dispôs que É dispensável a licitação para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei. (BRASIL, 2020).

Além disso, tal lei apresentou em seu artigo 4°-B um rol taxativo de requisitos que devem ser observados para que os procedimentos licitatórios sejam dispensados. São eles: I - ocorrência de situação de emergência; II - necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; III - existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e IV - limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.

Percebe-se que essa dispensa de licitação se refere apenas às atividades e aos serviços voltados ao enfrentamento da pandemia. Nesse diapasão, é correto afirmar que, como nem toda contratação com o Poder Público realizada durante este período tem como objetivo o combate à Covid-19, as medidas trazidas pela lei 13.979/2020 não se aplicam a todos os casos, devendo ser observadas as normas gerais de licitações e contratos contidas na lei 8.666/93 (ou na lei 14.133, conforme justificativa que será apresentada posteriormente), bem com nas demais legislações aplicáveis à matéria, sob pena de incidirem, tanto o gestor público, quanto o particular contratado, nas responsabilidades e penalidades previstas em lei, nos casos que não possuírem relação direta com o combate da pandemia. Ademais, esses requisitos são fundamentais e devem ser observados, de modo a impedir o mau uso do dinheiro público, evitar fraudes e garantir à administração pública a melhor oferta com a livre concorrência. Segundo Bruno Teles,

Tais exigências visam a atribuir o máximo de segurança ao procedimento, impossibilitando ou, pelo menos, dificultando que ocorram interpretações equivocadas que coloquem em risco o erário ou possível favorecimento de determinados fornecedores em decorrência da diminuição da concorrência (TELES, 2020).

Além disso, a lei 13.979/20 ainda dispõe sobre outras medidas que facilitam ou dão celeridade ao processo licitatório, em virtude da urgência da situação. São elas: a contratação de uma única fornecedora do bem ou prestadora do serviço independentemente da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o poder público; a não exigência da elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e de serviços comuns; a simplificação do termo de referência ou projeto básico; a relativização e a dispensa da estimativa de preços; a redução dos prazos nos procedimentos de pregão, etc.

Posteriormente, no ano de 2021, foi publicada a Nova Lei de Licitações. Com a nova legislação, Lei n° 14.133 de abril de 2021, a matéria em estudo passou a ser tratada pelo artigo 75 e a correspondência direta ao inciso IV do artigo 24 da antiga lei se encontra no inciso VIII (BRASIL, 2021). O novo dispositivo legal adiciona como fundamentação dos motivos de dispensa, o comprometimento da continuidade dos serviços, além de alterar o prazo de 180 (cento e oitenta) dias da antiga lei para 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto desse inciso. Além disso, a Nova Lei de Licitações expõe novidades sobre a dispensa de licitação como, por exemplo, a ampliação do valor das contratações que podem ser efetuadas com dispensa de licitação.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Destarte, é de extrema relevância abordar o disposto em ambas as leis, pois haverá aplicação concomitante das duas durante dois anos. Tanto a Lei 8.666/93, quanto a Lei 14.133/21 poderão ser aplicadas, de acordo com os critérios de escolha e conveniência da administração pública, pelo prazo de dois anos, quando então, finalmente, apenas a nova lei vigerá. De acordo com Gustavo Silva Xavier,

O art. 194 da lei 14.133/21 prevê que a nova lei entrará em vigor na data da sua publicação. Não haverá, pois, o denominado período de vacatio legis. Contudo, haverá uma espécie de "período de transição", caso em que a nova lei de Licitações conviverá por dois anos com as leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11, exceto quanto às disposições penais da lei 8.666/93, que foram revogadas de imediato. Nesse interim, a Administração Pública terá a prerrogativa tanto de aplicar o novo Marco Regulatório quanto de continuar aplicando a legislação pretérita, devendo ser indicada no edital de licitação a opção escolhida e vedada a aplicação combinada das citadas leis (art. 191). (XAVIER, 2021).

Nesse sentido, nos casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação, e enquanto ainda vigente a Lei de 1993, o gestor público deverá estabelecer expressamente a lei aplicável à contratação entre a nova lei ou a antiga.

Por fim, vale ressaltar, que em abril de 2021 o Plenário do Senado aprovou o projeto que prorroga a dispensa de licitação para serviços e compras relacionados à pandemia. De autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o PL 1.315/2021 também convalida os atos praticados pelos governos federal, estaduais, do DF e municipais desde janeiro, quando a Lei 13.979/20, que tratava dessa flexibilização, perdeu a validade (CHRISTIAN, 2021).  Entretanto, em decorrência de uma cautelar do STF, alguns dispositivos da referida norma foram mantidos. Atualmente, o projeto foi remetido à Câmara dos Deputados e está aguardando análise de parecer na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF).

Portanto, neste ensaio foi debatida a dispensa e a relativização dos procedimentos licitatórios diante da decretação de calamidade pública. A crise sanitária vivenciada atualmente abalou estruturas e alarmou as autoridades de todo o planeta. A necessidade de mudanças pragmáticas, a fim de evitar grandes perdas e manter o funcionamento da máquina estatal, tornou-se vital para a manutenção dos Estados e para a sobrevivência das pessoas. Com isso, vê-se a importância de estudar a matéria, uma vez que diante de uma situação fática de crise, como a atual provocada pelo coronavírus, há inúmeros efeitos e mudanças nas licitações e nos contratos administrativos.

 

Referências Bibliográficas:

 

BRASIL. Lei n° 8.666 de 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm Acesso em: 19 de agosto de 2021.

 

BRASIL. Lei n° 13.979 de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm Acesso em: 19 de agosto de 2021

 

BRASIL. Lei n° 14.133 de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm Acesso em: 19 de agosto de 2021

 

CHRISTIAN, Hérica. Plenário aprova prorrogação da dispensa de licitação na pandemia. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2021/04/plenario-aprova-prorrogacao-da-dispensa-de-licitacao-na-pandemia Acesso em: 19 de agosto de 2021

 

NETO, Fernando Ferreira Baltar; DE TORRES, Ronny Charles Lopes. Direito Administrativo. 10. Ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

 

TELES, Bruno. A dispensa de licitação durante a Covid-19. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-06/bruno-teles-dispensa-licitacao-durante-covid-19 Acesso em: 19 de agosto de 2021.

 

XAVIER, Gustavo Silva. Reflexões sobre o regime de transição da nova lei de licitações. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/343336/reflexoes-sobre-o-regime-de-transicao-da-nova-lei-de-licitacoes Acesso em: 19 de agosto de 2021

Sobre o autor
Patrick Henriques Gonçalves

Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense. Graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal Fluminense.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos