Resumo: O presente trabalho explica o significado e a importância dos Princípios Constitucionais, em especial o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, abordando desde aspectos históricos e filosóficos, chegando ao uso prático no ordenamento jurídico brasileiro vigente. A pesquisa baseia-se na consulta de obras de autores consagrados na área do direito e da filosofia, bem como na pesquisa de jurisprudência de tribunais estaduais e superiores além de matérias veiculadas em sites da internet e podcasts.
Palavras-chave: Princípios Constitucionais. Dignidade da Pessoa Humana. Immanuel Kant. Iluminismo.
1. INTRODUÇÃO
Os princípios constitucionais são institutos importantíssimos para o direito contemporâneo, estes trazem valores hermenêuticos imprescindíveis que norteiam a aplicação do direito no caso concreto, e que até mesmo direcionam os objetivos da própria existência do Estado. Desses princípios, a Dignidade da pessoa Humana se destaca, sob a ótica kantiana, como um sobreprincípio ou mesmo um princípio fundante desenvolvido ao longo da história e reconhecido internacionalmente. Analisaremos então estes dois quesitos, primeiro de forma geral, abordando o conceito de Princípios Constitucionais, seu significado e seu reconhecimento na carta magna de 88, num segundo momento nos aprofundando no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
"Dentre os vários significados do termo princípio, não se pode deixar de considerá-lo a causa primária de algo ou o elemento predominante na composição de um corpo. Juridicamente, o princípio é, sem dúvida, uma norma, porém de conteúdo abrangente, servindo de instrumento para a integração, interpretação, conhecimento e aplicação do direito positivo."(NUCCI, G. - 2015 p.27)
As constituições contemporâneas são notadamente marcadas por um texto aberto, e trazem em seu escopo determinados princípios que norteiam a interpretação da norma, fazendo com que o texto legal consiga se adaptar a rápida mudança da realidade humana (FERREIRA FILHO, M. - 2020 p339). Esses princípios enunciados pela norma fundamental, são em geral conceitos abertos, pressupostos filosóficos que carregam consigo valores importantes que trazem sentido na aplicação da norma ao caso concreto. Na lição de Ingo Sarlet:
"Sob o rótulo princípios da interpretação constitucional cuida-se de elencar um catálogo do que se poderia designar de técnicas e diretrizes para assegurar uma metódica racional e controlável ao processo de interpretação (e aplicação) da constituição e de suas normas (princípios e regras), portanto, auxiliar na construção de respostas constitucionalmente adequadas para os problemas jurídico-constitucionais. "(SARLET, I. - 2021 p96)
Portanto é possível afirmar que a existência dos princípios constitucionais ajuda na aplicação do direito como um todo, garantem a coesão do sistema jurídico existente. São normas com elevado grau de generalidade, passível de envolver várias situações e resolver diversos problemas, no tocante à aplicação de normas de alcance limitado ou estreito (NUCCI, G - 2015 p.27).
Não obstante, há vários princípios que norteiam o ordenamento jurídico vigente, mas devemos destacar os princípios constitucionais, pois estes são os que regem o Estado Democrático de Direito, e nesse sentido os princípios constitucionais subordinam todos os demais, e não só norteiam, mas dão as diretrizes da existência do próprio Estado, como os expressos nos artigos 1º a 4º da Constituição Federal de 1988.
A doutrina classifica-os ainda em princípios explícitos ou prescritivos e implícitos ou inferidos. Os primeiros são aqueles que a própria carta constitucional descreve, como por exemplo o artigo 37º da Constituição vigente que diz que "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência", sobre isso Manoel Gonçalves ensina que tais princípios são editados para prescrever linhas de conduta, ou de orientação, que indicam o rumo de efetivação da Constituição, enquanto os inferidos ou implícitos, são aqueles que não estão descritos diretamente na carta, mas estavam presentes no momento em que o legislador constituinte exercia sua função fundamental. Como exemplo de tais princípios citamos: princípio do Estado de Direito, princípio democrático, princípio federativo, princípio da separação dos poderes, princípio liberal, ou da limitação do poder, princípio social, ou da proteção aos economicamente fracos (FERREIRA FILHO, M. - 2020 p339).
Sendo inferido ou prescritivo, fato é que, os princípios constitucionais gozam de primazia dentre todo e qualquer princípio incutido no ordenamento jurídico, através desses princípios mantemos a interpretação constitucional atual, num mundo de pleno movimento, globalizado.
São essas normas de conteúdo aberto, que mantem todo ordenamento jurídico em pé, fornecendo a coesão necessária para evitar o conflito entre normas. É através dos princípios da carta fundante de 88 que se faz possível concretizar os desejos da própria constituição, buscando sempre tornar realidade as ordens e anseios da carta magna.
3. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A ideia de Dignidade humana é resultado de um lento processo de desenvolvimento ao longo da história, podendo ser vista a sua passagem pela filosofia e teologia ao longo dos anos, culminando no renascentismo e iluminismo. Fruto de um processo histórico - evolutivo, não se pode ter exatidão quanto data de sua criação, mas entendemos que com o passar do tempo o ser humano foi sentindo a necessidade desse princípio.
Buscando mais a fundo nos relatos históricos, observando o contexto sociopolítico através dos tempos podemos ver na antiga Roma um esboço deste conceito de dignidade humana, porém ainda era um conceito restrito e vinculado ao poder das pessoas. Os direitos e igualdades eram de poucos, podiam usufruir deles basicamente os cidadãos romanos, o que reduz a abrangência de sua aplicação, visto que o ser humano considerado cidadão em Roma deveria cumprir uma série de requisitos. Por exemplo, estrangeiros, mulheres, escravos não tinham direitos, não tinham liberdade política.
Posteriormente adentrando a idade média, Tomás de Aquino, na defesa de sua Suma Teológica, liga a dignidade humana a um pressuposto de racionalidade, mas uma racionalidade em virtude do Divino, mas de mesmo modo como na Roma antiga não era um valor comum inerente a qualquer ser humano, na visão do doutrinador cristão, havia níveis dessa dignidade, posto que a mulher, por exemplo, estaria a um nível de dignidade inferior ao homem.
Nessa lógica, o homem é criado a imagem de Deus, cuidando e tendo poder sobre todas as outras criaturas, mas um dia o homem toma decisões erradas e peca, como consequência a isso, para devolver a sua dignidade divina, Deus manda seu filho para salvá-lo. Conforme nos lembra Weyne, a lição de Cleber Francisco Alves sobre a doutrina da igreja:
(...) a união entre a natureza divina e a natureza humana na pessoa do Cristo manifesta o novo sentido da dignidade excelsa a que o homem está́ vocacionado: por intermédio de Cristo, que, com sua morte e ressurreição, venceu o pecado e a morte, o homem pode resgatar e restaurar a imagem e semelhança com o Criador perdida ou apagada em virtude do peca- do. Ocorre, aí, uma espécie de nova criação. A Criação e a Redenção constituem as duas circunstâncias em que repousa o valor do homem na doutrina cristã (Weyne, B. C. - 2012, p.44)
Além do esboço histórico, se buscarmos a etimologia da palavra dignidade, sem estar acompanhada da palavra humana, tem sua origem ligada ao do verbo decet ser conveniente, de onde provêm o adjetivo dignus que convém a, merecedor, digno de e o substantivo dignitas dignidade, mérito, nobreza, excelência. A palavra dignidade remete a noção de respeito, seja em virtude pessoal ou de alguma posição de poder, algum cargo, autoridade.
Observamos que durante o período da antiguidade e da idade média ocorreram evoluções no que consiste ao conceito de dignidade humana, posteriormente com a renascença e o iluminismo, passou a figurar no imaginário dos filósofos uma ideia de igualdade mais abrangente, a partir de filósofos como Rousseau e Montesquieu, revoluções foram acontecendo e novas formas de Estado foram surgindo, visando colocar todos os seres humanos em pé de igualdade, e afastando o poder do Estado da influência da igreja.
Este momento da história reflete parte importante do ideal moderno e contemporâneo de dignidade humana, dos iluministas, o filosofo que está mais ligado a construção deste princípio é o alemão Immanuel Kant, sua obra, A Fundamentação da Metafisica dos Costumes de 1785 é constantemente referenciada pela doutrina, por isso iremos aprofundar esta perspectiva mais à frente.
No que tange ao pressuposto histórico, é patente que mesmo com toda a evolução dos princípios ao longo dos tempos, atrocidades foram cometidas, seja em nome do divino, seja baseado na própria lei. Eventos como as cruzadas, as inquisições, a escravização, eram frequentemente justificadas pela vontade divina e embasada em lei, e mesmo nos períodos pós-revoluções, com as declarações de direitos, como por exemplo a declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão, veio a ascensão do sistema capitalista e por conseguinte a industrialização, que por sua vez trouxe a precarização das condições de trabalho com a justificativa de não interferência estatal nas leis do Mercado. No entanto somente depois das atrocidades cometidas nos períodos da primeira e principalmente da segunda guerra mundial, é que as nações se uniram em volta de um conceito verdadeiramente abrangente afim de evitar o cometimento de novas barbáries.
Nesta toada, nos períodos pós-guerras, é que foram criados os organismos de cooperação internacional, e que as constituições contemporâneas, como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxeram como princípio fundante do próprio Estado a Dignidade da Pessoa Humana.
O Princípio da Dignidade Humana traz consigo o fato de que o Estado deve existir para a pessoa, para a sua valorização e para sua guarda de direitos, como lembrado no discurso de Ulisses Guimarães na promulgação da Constituição Cidadã:
O Homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o país. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Gratificantemente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a Constituição Cidadã. - Ulisses Guimarães (MARMELSTEIN, G. - 2019 p.64)
3.1 A FILOSOFIA COMO BASE DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
"A dignidade humana e os direitos humanos são duas faces de uma mesma moeda: uma voltada para a filosofia moral e a outra para o Direito." (BARROSO, L. R. - 2019 p.492)
A origem do princípio da dignidade da pessoa humana, como já sabemos, é impossível de ser traçado, o que se sabe é que, antes de ser um princípio norteador do Direito Positivo, era uma ideia posta pela filosofia e teologia, passando por diversas fases ao longo da história humana, havendo contribuições para sua construção, desde a antiguidade greco-romana, passando pela teologia cristã medieval, até chegar ao pensamento renascentista e consolidando-se com o advento do iluminismo.
Embora possa se traçar toda uma linha de influência ao pensamento filosófico que construiu o significado de tal princípio, mais comumente a doutrina embasa o pensamento moderno e contemporâneo na perspectiva kantiana da moral humana.
Como apontam diversos autores, Kant em sua obra "Fundamentação da metafisica dos Costumes", nos apresenta a máxima de "tratar as pessoas como fins e nunca como meios" (MARTINS, F. 2021 - p.812), que é considerado pelo filosofo como uma regra universal para guiar a moral humana. Isso se torna possível a partir da racionalidade inerente ao ser humano, a condição diferenciada que a pessoa humana tem em relação a outras espécies.
A dignidade humana é um valor atribuído a pessoa pela simples condição de ser humano, é inerente a sua existência, não é valor que possa ser conquistado, ele simplesmente existe, e ele é quem justifica os demais direitos fundamentais. É um "valor transcendental e verdadeiro sobreprincípio"(ESTEFAM, A. - 2016, p.68).
Para traçar um paralelo de entendimento utilizemos o princípio de Pascal, no qual o enunciado diz que a pressão exercida em um ponto qualquer de um líquido estático é a mesma em todas as direções e exerce forças iguais em áreas iguais.
Ora, Pascal não inventou o princípio, ele apenas o descobriu, é uma lei da física imutável e aplicável a todo e qualquer fluido, bastando, para que esta lei funcione, a condição de que o objeto aplicável seja um fluido estático.
Da mesma forma podemos observar a perspectiva do imperativo categórico de Kant, estas formulações do filósofo, as máximas, são leis universais que existem e são aplicáveis aos seres humanos pela condição de serem pessoas humanas dotadas de razão, conforme leciona Klaus Düsing:
"Significa aquela generalidade e necessidade de máximas para a postura e ação que pode ser aprovada por todos os seres que dispõem de razão. Atrás disso está o ideal ético de uma coletividade moral, um estado ético sem coação ou obrigatoriedade, no qual todos agem de maneira racional e moral". (KREIMENDAHL, L - 2016 - p.254)
Posto este pressuposto filosófico da razão humana, o eminente ministro Luís Roberto Barroso em sua obra, nos traz três características as quais a Dignidade da Pessoa Humana identifica, a saber:
"o valor intrínseco de toda pessoa, significando que ninguém na vida é um meio para a realização de metas coletivas ou projetos pessoais dos outros;
a autonomia individual cada pessoa deve a autonomia individual ter autodeterminação para fazer suas escolhas existenciais e viver o seu ideal de vida boa, assegurado um mínimo existencial que a poupe da privação de bens vitais;
a limitação legítima da autonomia por valores, costumes e direitos das outras pessoas e por imposição normativa válida (valor comunitário)". (BARROSO, L. R. - 2019 p.492)
Nota-se, desde a primeira característica mencionada pelo ministro a forte influência do pensamento da moral kantiana, e mais a frente mencionando o fato de uma das faces de uma mesma moeda estar virada para o Direito Positivo, sendo esta os Direitos Humanos.
A adoção do princípio como valor constitucional nas cartas politicas contemporâneas, como mencionado anteriormente, começou a se apresentar mais fortemente a partir dos períodos pós-guerras, muito em virtude das atrocidades cometidas na esteira dos regimes totalitários do século XX, mas não só, como aponta Canotilho. Antes mesmo dos regimes do século XX, muito se reduziu a condição humana a situação degradante em vários períodos da história, como a escravatura ou a inquisição, o que aumenta o arcabouço de justificativas para a elevação de tal princípio a fundamento do domínio político do Estado.
Dessa forma, voltando a concepção kantiana, o Estado deve servir ao homem, que é o fim, e não o homem servir o Estado como meio. Nesse ponto a Carta Política de 88, quando traz em seu artigo 1º, inciso III que um dos fundamentos da República é a Dignidade da Pessoa Humana, reconhece que o Estado existe em função da pessoa humana. Assim toda norma jurídica deve ser inspirada pelo princípio como ensina Bruno Cunha Weyne , relembrando o magistério de José Afonso da Silva:
"Nessa perspectiva, José Afonso da Silva entende que a eminência da dignidade humana é tal que lhe confere, ao mesmo tempo, a natureza de valor supremo e de princípio constitucional fundamental e geral que deve inspirar toda a ordem jurídica. Para ele, tal princípio constitui o valor supremo e fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito: Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional (Weyne, B. C. - 2012, p.91)
Cabe afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana não é um direito fundamental, pois direitos fundamentais podem ser postos em conflitos uns com os outros a depender da situação, isso não cabe ao princípio, na condição de princípio fundante, ou mesmo um sobreprincípio, podemos afirmar que da dignidade da pessoa humana é que surgem os direitos fundamentais, sendo este o princípio fundamental para interpretação da norma jurídica positivada. Rizzatto Nunes defende que a dignidade é "o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais(...) É a dignidade que dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete". (Nunes, R. - 2018, p.68).
Conclui-se então que a Dignidade da Pessoa Humana é, de modo geral, uma espécie de lei moral superior que norteia, ou deve nortear, todo comportamento humano racional, a fim de dar garantias de condições mínimas de convivência e civilidade, um pressuposto universal que impede, ou que visa impedir a barbárie, tal qual as que a humanidade já demonstrou e demonstra ser capaz de conduzir. É um princípio ligado a própria existência da humanidade, da condição de ser humano, que não pode ser negado a quem quer que seja.
3.2 JURISPRUDÊNCIA
A jurisprudência é farta no que tange ao uso do princípio da dignidade da pessoa humana nas decisões judiciais, nas mais variadas matérias, este princípio tem se apresentado como embasamento na elaboração de acórdãos, desde decisões que dissertam a respeito de alienação fiduciária, danos morais, discriminação racial, até mesmo sobre a produção, transporte e uso de amianto, nesta parte do trabalho procuramos apresentar decisões judiciais em que o princípio foi usado na tomada de decisão, ilustrando assim o modo como os tribunais vem aplicando o princípio nas situações práticas
3.2.1 CASO 1: AÇÃO DIRETA DE INCOSNTITUCIONALIDADE 6.600 TOCANTIS
Trata-se de caso em que lei estadual aparentemente fazia diferença entre uma mãe adotante e uma mãe biológica no sentido de conceder a licença maternidade. A referida lei, além de trazer essa diferenciação, trazia também em seu escopo uma escala de idade, na qual a depender da idade da criança, mudaria o período de concessão de da licença.
Neste caso o princípio da dignidade da pessoa humana foi usado para convencer o juízo da tese de inconstitucionalidade da lei apontada pelo requerente, que diz:
Entre os bens jurídicos tutelados pela licença-maternidade está a dignidade humana daquele que, pelo parto ou pela adoção, passa a integrara família na condição de pessoa em desenvolvimento, titular e destinatária da construção da relação afetiva (ADI 6.600 TO Rel. Min. Alexandre de Morais)
A tese foi acolhida pelo tribunal, no sentido de que não se pode diferenciar a maternidade adotante da biológica, direito garantido pela Constituição no artigo 227 §6º, e a intervenção do estado para garantir os direitos da mãe e da criança justificasse pelo §5º do mesmo artigo, onde diz que a adoção será assistida pelo poder público.
É possível daí tirarmos a interpretação de que a dignidade da pessoa humana nesse caso concreto foi usada afim de garantir os direitos de igualdade entre a mãe biológica e a adotante, afim de conseguir a licença-maternidade para de igual modo utilizar-se do tempo para criar laços afetivos com a criança recém chegada a família, posto que somente com tempo, dedicação e convívio é que se pode criar tais laços.
O laço familiar é fundamental para o desenvolvimento da criança, e como estabelecido no artigo 19º do Estatuto da Criança e do Adolescente, esse direito a um desenvolvimento integral deve ser garantido, e se observarmos o artigo 3º da mesma lei veremos que esse desenvolvimento não é somente físico, mas mental, moral, espiritual e social.
ECA -Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
ECA - Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Posto isso, importa dizer que necessariamente esse primeiro contato entre a família e a criança, e aqui entende-se família como qualquer unidade afetiva hetero ou homoafetiva, é primordial para o desenvolvimento da relação familiar, sendo biológico ou adotivo, é a partir desse primeiro e mais importante contato é que se estabelece as ligações afetivas que responderam pelo futuro desenvolvimento da criança ou do adolescente, sendo, portanto, um valor intimamente ligado a dignidade humana.
3.2.2 CASO 2: HABEAS CORPUS nº 2136944-77.2020.8.26.000 TJ-SP
Neste caso a situação que se apresenta é em relação a permissão para execução de um aborto, tendo em vista as complicações da gravidez da mãe e a inviabilidade do feto que, ainda que resistisse a gestação, apresentava 100% de possibilidade de óbito ainda no primeiro ano de vida devido a sua condição, em que desenvolveu Trissomia do Cromossomo, também conhecida como Síndrome de Edwards.
A trissomia do cromossomo 18 (Síndrome de Edwards) é caracterizada por malformações múltiplas, retardo mental grave, e redução acentuada da expectativa de vida. As anomalias mais frequentes incluem: retardo mental e do desenvolvimento, crescimento fetal retardado, retardo neuro-psicomotor (100%); hipotelorismo, orelhas de implantação baixa, malformações cardíacas (sendo as mais frequentes os defeitos septais e a persistência do canal arterial, malformações genito-urinárias (80%); microcefalia, microftalmia, lábio leporino, palato fendido, polidactilia, micrognatia, hemangioma, deformidades em flexão dos dedos, malformações cerebrais, hipoplasia cerebelar, anomalias gastro-intestinais; colomba íris, hérnia inguinal ou umbilical, artéria umbilical única, onfalocele (HC nº 2136944-77.2020.8.26.000 TJ-SP)
Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, o tribunal decidiu pela concessão do aborto, cita-se no acórdão ainda trecho da argumentação do eminente Ministro Joaquim Barbosa por ocasião do julgamento da ADPF nº54, que trata de fetos anencefálicos, em parte do acórdão o Ministro argumente que:
(...)não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extrauterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal. (...) (HC nº 2136944-77.2020.8.26.000 TJ-SP)
Corretamente, os desembargadores na decisão traçam um paralelo com as duas situações, que por serem casos muito semelhantes, não haveria outra decisão a ser tomada se não a ordem de concessão para o aborto, afastando a sua ilicitude. Portanto sob a luz do princípio da Dignidade Humana da Mãe, no que tange o aspecto da Liberdade, Intimidade e Autonomia Privada da Mulher, o tribunal concede a ordem.
Este é um caso difícil, porém não há como negar sua ligação com o princípio da Dignidade Humana, como mencionado no próprio HC, continuar com a gravidez importaria em infligir dano psicológico a gestante, e entendo que também a sua família, além de colocar em risco desnecessariamente sua vida, vez que devido as circunstâncias o feto não prosperaria.
3.2.3 CASO 3: RECURSO EXTRAORDINÁRIO 592.581 RIO GRANDE DO SUL
O caso em tela discorre sobre o conflito entre os poderes executivo e judiciário. Em resumo, o ministério público ingressou com uma ação para que o judiciário expedisse ordem de fazer contra a administração pública do estado do Rio grande do Sul, para que executasse reformas em estabelecimento prisional afim de garantir um mínimo de qualidade de vida para os recolhidos.
O primeiro grau decidiu por conceder a ordem, ao passo que o tribunal decidiu posteriormente contra a decisão do juízo inicial, aduzindo que não competia ao judiciário intervir no executivo. Outro ponto argumentado é que, ainda que seja garantido o direito do preso na carta constitucional, a reforma solicitada dependia da possibilidade material, ou seja, orçamentaria, econômica e financeira, o que implicaria em discricionariedade do Administrador.
Restou então ao Supremo decidir se o judiciário poderia intervir na administração pública afim de garantir direitos, posto que sob a luz do Princípio da Dignidade Humana, o Supremo decidiu cassar a decisão do tribunal, assim mantendo o juízo de primeiro grau, fixando a tese de que o Judiciário poderá impor a administração pública a obrigação de fazer, no caso de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais, afim de garantir a efetividade da dignidade humana no que diz respeito a integridade física e moral no cumprimento da pena.
No RE592.581RS Rel. Ricardo Lewandowski, a Dignidade Humana é usada como fundamento a garantir a integridade física e moral do preso no cumprimento da pena, mas não só, essa decisão é uma amostra também do sistema Checks and Balances. Através dela podemos observar como o judiciário, na função de garantir os direitos fundamentais, podem intervir em outra esfera de poder, interferindo diretamente no executivo para tal.