O Direito Internacional Humanitário e as operações de paz da ONU.

Considerações práticas e jurídicas na aplicação

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27/12/2021 às 14:37
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O Direito Internacional Humanitário e as Operações de Paz do Século XXI

O Direito Internacional Humanitário JUS IN BELLO

A guerra como forma legítima de resolver assuntos e disputas entre Estados está juridicamente banida do Sistema Internacional desde a adoção da Carta das Nações Unidas, em 1948, atingindo alcance virtualmente universal, com a expansão do Sistema e aumento do número de Estados-Membros após a 2ª Guerra Mundial e neste século (Carta da Nações Unidas, art. 2º, parágrafo 3º). Ressalvada a exceção prevista no artigo 51 da Carta, que assegura aos Membros o direito à legítima defesa em caso de agressão por outro Estado, não se encontra no direito internacional público contemporâneo justificativa para o uso da força, ou Jus ad bellum (ou o direito à guerra/uso da força), por qualquer país.

A iniciativa de banir a guerra na contemporaneidade remonta ao final do século XIX e início do século XX, com a criação da Corte Internacional de Justiça (na época de criação chamada de Corte Permanente de Justiça Internacional), passando pela Liga das Nações, o Pacto Briand-Kellog (1928) e, finalmente, com a criação da ONU. Entretanto, apesar de tais tentativas, o espectro do conflito armado, seja de natureza internacional ou não-internacional persistiu, mesmo após a 2ª Guerra e no primeiro quarto do nosso século.

Tal constatação, faz com que as considerações sobre a relevância e aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário, que deriva do Jus in bello, se tornem ainda mais pertinentes. Mormente, porque o recurso ao uso da força, sob a égide do Conselho de Segurança da ONU possui previsão no direito internacional, sob forma de intervenções para garantir a paz , ou impô-la, conforme preconiza o Capítulo VII, da Carta de 1948, e com a adoção da princípio da Responsabilidade de Proteger, pela Assembleia Geral, em 2005. Assim, quer seja em situações legítimas, quer em situações em que haja o rompimento da ordem jurídica internacional, a observância de regras mínimas de conduta das hostilidades e proteção aos civis ou combatentes em situações específicas (feridos, doentes, náufragos, prisioneiros) representa o último estágio de garantia da dignidade humana em situações extremas, antes do declínio ao caos e à selvageria da guerra sem limites. Essa é a natureza e o objetivo do Direito Internacional Humanitário (DIH).

O direito dos conflitos armados, também conhecido como DIH, atualmente em vigor na ordem internacional, encontra sua fonte principalmente nas quatro Convenções de Genebra de 1949 e nos dois Protocolos Adicionais de 1977. Adotadas pelas Altas Partes Contratantes Estados após o final da 2ª Guerra Mundial, e como forma de resposta às atrocidades e vitimização de civis ocorridas no conflito, as Convenções cristalizam tanto normas consuetudinárias quanto normas já antes positivadas (nas Convenções de Genebra de 1864, 1906, 1929), visando à proteção de vítimas de conflitos armados.

Assim a primeira Convenção (I Convenção) cria o sistema de proteção aos combatentes feridos e doentes nos conflitos em terra; a II Convenção cria o sistema de proteção aos combatentes feridos, doentes e náufragos em conflitos no mar; a III Convenção trata da proteção aos prisioneiros de guerra e a IV Convenção, inovadora, estabelece as normas de proteção aos civis, onde quer que haja conflito armado. Mais tarde, transformações ocorridas no contexto internacional, principalmente relacionadas à descolonização, motivaram adaptações no DIH, as quais se concretizaram nos dois Protocolos Adicionais (I e II), de 1977. A natureza das lutas por independência, legítimas à luz do direito internacional, e o aumento dos conflitos não internacionais desafiaram a aplicação das quatro Convenções (EMANUELLI, 1992, p.729; SWINARSKI, 1988, p.20). Assim, o Protocolo Adicional I complementa e desenvolve o sistema de proteção em conflitos internacionais, além de reconhecer as lutas de independência e aquelas contra regimes racistas como espécie desse gênero de conflito. No Protocolo Adicional II, especificou-se o sistema de proteção nos conflitos não internacionais.

Definição dos Conflitos Armados no DIH

A investigação científica sobre conflitos, principalmente os violentos, tem se desenvolvido no campo das ciências sociais. Vários centros de pesquisa adotam critérios para classificar situações de violência com o fim de sistematizar o estudo e conhecer as dinâmicas que envolvem tais fenômenos. O Departamento de Pesquisa em Paz e Conflitos, da Univerisdade de Uppsalla, na Suécia, que mantém o Programa de Dados em Conflito de Uppsalla (UCDP - da sigla em inglês), uma das referências no estudo sobre conflitos da atualidade, divide os conflitos internos em duas categorias. Os conflitos que envolvem o Estado (state-based) e os conflitos que não envolvem o Estado (non estate-based). No primeira categoria pelo menos uma das partes são forças estatais. Na segunda categoria, não há forças estatais envolvidas. Para o UCDP, a violência organizada deve gerar pelo menos 25 mortes relacionadas aos combates por ano, para ser classificada como conflito aramado.

É importante ressaltar que em tais abordagens, o foco não é avaliar se a situação em estudo é sujeita ou não à aplicação das regras do direito internacional humanitário. O objetivo, como mencionado acima, é entender o fenômeno e sistematizar o conhecimento que se desenvolve sobre ele. Para fins de aplicação do DIH, por exemplo, pouco importam o tempo ou o número de vítimas que a situação de violência produziu. A análise deve ser concentrada no caso concreto e de acordo com critérios que emergem das próprias fontes do DIH, como por exemplo as Convenções, o Protocolos Adicionais, a Doutrina e a Jursiprudência. Tais critérios serão explicitados em seguida.

O conceito de conflito armado que emerge das Convenções de Genebra e dos Protocolos Adicionais permite distinguir duas grandes classes de conflito: os Conflitos Armados Internacionais (CAI) e os Conflitos Armados Não Internacionais (CANI). Em termos gerais, existe um CAI, para o DIH, em qualquer situação na qual haja o recurso ao uso da força armada entre dois ou mais Estados (Partes das Convenções e dos Protocolos Adicionais, que são, virtualmente, universais na atualidade). Tal definição se depreende do artigo 2, comum às quatro Convenções de Genebra, de 1949. Note-se que para que uma situação seja definida como CAI, não se levam em conta o número de vítimas, ou mesmo se há vítimas, as razões ou a legitimidade para o uso da força, a intensidade ou duração do confronto, ou o número de combatentes envolvidos. Simples escaramuças, por exemplo, são consideradas CAI e portanto, passíveis de aplicação do DIH. Tampouco se leva em consideração se há ou não declaração de guerra ou reconhecimento, pelas partes, da existência do conflito. Assim, os fatos e as condições do caso concreto é que são relevantes e devem ser analisados à luz dos princípios do DIH. A condição imprescindível é que haja a vontade belicosa, ou beligerante (FERRARO, 2013) o que permite distinguir um CAI de erros ou acidentes. Tal intenção beligerante pode ser objetivamente verificada através de aspectos como operações militares que visem à neutralização de pessoal ou de recursos militares e a conter ou mudar o curso de ação de um inimigo. Importa salientar que, de acordo com o artigo 1, do Protocolo Adicional I, de 1977, na categoria CAI estão também as lutas por independência, contra regimes rascistas e contra ocupações.

A definição dos CANI apresenta maior dificuldade. O motivo é que não há conceito claro e preciso que englobe as diversas situações de violência possíveis no interior de um Estado, como tensões ou distúrbios internos, nos quais, muitas vezes, há o recurso a forças militares pelo Governo. O Artigo 3º, comum às quatro Convenções de Genebra, esclarece que as regras do DIH serão aplicadas em situações de conflito armado que não apresentem caráter internacional e surgidas no território de uma das Altas Partes Contratantes. Note-se que, nesta definição, não há menção às tropas envolvidas, ao tempo ou à intensidade do conflito. O Protocolo Adcicional II, por outro lado, traz elementos que conduzem a uma definição mais restrita de CANI, esclarecendo, no parágrafo 1, do artigo 1, que se trata de um instrumento cujas regras serão aplicadas em conflitos que ocorrem no território de uma das Altas Partes Contratantes entre suas forças armadas e forças armadas dissidentes ou grupos armados organizados que, sob a condução de uma comandamento responsável, exerce sobre uma parte do território um controle tal que os permite realizar ooperações militares contínuas e coordenadas, além de aplicar o presente Protocolo. Assim, percebe-se que o Protocolo Adicional II, restirnge a definição ao estabelecer que para se tratar de conflito armado cuja natureza exija a aplicação de suas regras, o envolvimento das forças do Estado é condição sine qua non. O Artigo 3, comum, não estabelece tal critério. Por isso, tanto a doutrina, dentre elas a que predomina no Comitê Internacional da Cruz Vermalha (CICR), quanto a jurispridência e outras normas internacionais (eg. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, art.8, §2º) cristalizam o conceito que integra as duas definições, incluindo a situação em que as forças estatais tenham perdido qualquer capacidade operacional e o enfrentamento se dê somente entre grupos não estatais, no território de um Estado.

Portanto, para fins deste estudo, aceitaremos a proposta do CICR, na qual um conflito armado não internacional é um enfrentamento armado prolongado que opões as forças armadas governamentais às forças de um ou vários grupos armados, ou as de tais grupos entre si, e que se produz no território de um Estado. Esse enfrentamento armado deve atingir um nível mínimo de intensidade e as partes implicadas no conflito devem demonstrar um mínimo de organização (CICR, 2008).

Aplicação do DIH em Operações de Paz da ONU

Na primeira parte deste estudo foram discutidas as transformações que afetaram a doutrina e a execução das operações de paz da ONU. Dentre elas, a que mais se mostra relevante para o objetivo desta análise é a que atinge o princípio do Uso da Força, observada pela concessão de Mandatos cada vez mais robustos, pelo Conselho de Segurança às forças integrantes de operações de paz. Lançaremos agora o olhar sobre as questões jurídicas e os desafios práticos que emergem ao se considerar a postura mais robusta da ONU em situações de conflito, e pós conflito.

Vale citar, para início de debate, que a própria ONU já se manifestou a respeito do assunto em alguns documentos. A Convenção de 1994, sobre segurança de pessoal da ONU e pessoal associado, que define como crime os ataques realizados contra membros e instalações da organização, exclui de tal proteção, no parágrafo 2, do artigo 2, as operações autorizadas e conduzidas sob o capítulo VII da Carta de 1945, o que implicitamente equivale a dizer que as tropas seriam reconhecidas como alvos legítimos, em igualdade com as outras partes do conflito, princípio corolário do DIH. Um outro documento, o Boletim do Secretário Geral, de 1999, sobre a Observância do DIH pelas forças das Nações Unidas, nos itens 1.1 e 1.2, indica que regras e princípios de direito humanitário expostas no Boletim são aplicáveis às forças de paz sob comando da ONU em situações em que são, efetivamente parte em um conflito e em operação de imposição ou manutenção da paz em que o uso da força em própria defesa esteja autorizado. Entretanto, o Boletim também traz que não irá contrariar, em aspecto algum, o contido na Convenção de 1994, mencionada acima. Por fim, a própria Doutrina Capstone também expressa, entretanto de maneira bastante superficial, que o DIH deverá ser observado nas situações em que couber.

Ainda assim, várias questões têm se levantado com relação ao tema. Uma delas, que será avaliada em um promeiro momento, é SE as forças multinacionais de paz da ONU se tornam, ou não, parte de um conflito ao receberem e implementarem um mandato que autoriza o uso da força (em legítima de defesa ou para proteger e executar o Mandato). Apesar de haver indicações em documentos da própria organização de uma resposta positiva à questão, a prática dos Estados fornecedores de contingente caminhou em sentido contrário. A segunda questão se refere a QUANDO as forças passam a ser partes do conflito.

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Com relação à primeira questão, ou seja, se as forças multinacionais da ONU podem ou não se tornar parte de um CANI, já se promoveu o argumento de que, por agir com um mandato da comunidade internacional, elas não poderiam ser classificadas como uma das partes, logo não sujeitas às regras de DIH. Tal perspectiva se sustenta na ideia de que as forças de paz desempenham um papel de polícia global, portanto com um estatus diferenciado, e até superior. Essa condição não as permite serem consideradas, em qualquer situação, um alvo legítimo em combate, o que é uma afronta direta ao princípio de igualdade entre as partes, existente no direito internacional humanitário. Em decorrência, qualquer ataque poderia ser considerando uma violação do direito internacional (ver Convenção de 1994 e Estatuto de Roma). Um outro pressuposto subjacente a essa posição sustenta que, por representar a comunidade internacional, e ser imparcial, o uso da força não é realizado para apoiar uma ou outra parte de um conflito, nem avançar a agenda de quaisquer dos envolvidos, mas para executar o mandato e impedir quem quer que venha a interpôr obstáculos a isso, seja ameaçando a segurança dos integrantes das forças multinacionais, seja agindo contra a vida de civis (cuja proteção, como já visto acima, é parte integrante dos Mandatos das forças de paz). Observa-se nessa abordagem, a preocupação dos países fornecedores de contingentes tanto com a segurança dos militares cedidos à ONU, mas também com a condição do país em relação ao conflito. Por fim, um outro argumento contra a aplicação do DIH em situações que envolvem tropas da ONU dá conta de que a Organização, por não se tratar de um Estado, portanto não ser uma das Altas Partes Contratantes das Convenções de Genebra e dos Protocolos Adcionais, estaria desobrigada com relação a tais normas e até impedida de se tornar parte dos tratados. Portanto, para facilitar a discussão, trataremos as posições acima como sendo a) natureza/origem do Mandato, b) condições do Uso da Força e c) personalidade jurídica da ONU (relacionada à questão de não ser uma Alta Parte Contratante Estado).

Encontraremos posições contrárias a tais argumentos, tanto de ordem jurídica quanto de prática. Na dimensão jurídica, observamos que não há, no DIH quaisquer justificativas para excluir as forças de paz, no terreno, da esfera de abrangência de suas normas em razão da natureza/origem do Mandato.

O primeiro motivo repousa no fato de que, para o DIH, a aplicação da proteção prevista pela norma se dá em quaisquer situações de conflito, declarado, ou não, reconhecido pelas partes, ou não, legítimo ou não e obriga a todas as partes, estejam elas em legitimidade do uso da força, ou não. Para a aplicação do DIH, o que vale é a análise das condições concretas, dos fatos relacionados ao enfrentamento. Se há o recurso à força por qualquer dos portadores de armas envolvidos, nas condições previstas - a exemplo da definição de CANI, acima há campo para aplicação do DIH. Esta discussão está intimamente ligada, segundo Ferraro (2013), à distinção dos conceitos de Jus ad bellum e Jus in bello. Para o autor, o argumento da legitimidade e estatus deferenciado das forças multinacionais decorre do direito ao uso da força, já que tais forças atuam em nome da comunidade internacional, através da ONU, portanto legalmente amparadas. Entretanto, o DIH decorre do Jus in bello. Ora, de acordo com os artigos 2 e 3 , comuns, das Convenções de Genebra e do artigo, do Protocolo Adcional II, de 1977, deixam claro que a aplicação de suas regras se dá independentemente da natureza, legítima, ou não do conflito. Aceitar uma exceção com base na percepção de que a causa de uma das partes é superior e a de outra ilegítima, fere a razão de ser do DIH, qual seja, a proteção do ser humano em sitações in extremis. Seria o mesmo que negar tal proteção às pessoas que não participam, ou deixaram de participar do conflito, com base em uma condição a priori (ilegalidade do conflito), sem mesmo avaliar as condições de fato.

Outra discussão ralcionada à mesma questão está acentada no princípio corolário do DIH da igualdade entre as partes. Posicionar as forças multinacionais em uma condição de superioridade, portanto categorizando como crime qualquer ataque a tais forças, em quaisquer condições, teria o efeito, indesejado, de desencorajar as outras partes a aderirem às normas de DIH, já que, em todo o caso, estariam em situação de ilegalidade. Trocando em míudos, quais incentivos teria alguém para tratar com dignidade um prisioneiro, ou não fazê-lo de refém, sendo o prisioneiro membro de forças da ONU, se já se está em condição de ilegalidade por tê-lo atacado. Como foi dito acima, o DIH é corpo jurídico criado para situações in extremis, em que a tentativa para evitar o uso da força não prosperou, e o que resta é zelar para que se mantenha um nível aceitável de decência e humanidade na condução das hostilidades. Isso se faz ainda mais premente no contexto atual. Como a atuação das forças multinacionais, principalmente da ONU, se dá em situações de CANI, onde o nível de organização, treinamento, comando e controle das partes nem sempre se assemelha ao de forças estatais, é preciso considerar incentivos para o respeito ao DIH. De forma alguma se advoga aqui legalizar o ataque às forças onusianas, mas sim, que se analise criteriosamente os casos concretos, à luz dos princípios do DIH, para que a observância das regras seja encorajada e a proteção por elas conferidas sejam aplicadas.

Com relação às condições do Uso da Força, Ferraro (2013, p.91) chama a atenção para a diferenciação, subjacente às posições contrárias à aplicação do DIH, entre operações com Mandatos baseados no capítulo VI da Carta da ONU, e aquelas autorizadas e conduzidas com fulcro no capítulo VII. Tais posições sustentam, a priori, que o uso da força em operações sustentadas no capítulo VI é menos provável do que em operações de capítulo VII. Entretanto, isso não pode ser dado como certo, principalmente se são levadas em consideração as condições cada vez mais complexas e fluidas dos contextos em que as operações de paz atuam. Operações com um tipo de Mandato podem derivar, rapidamente, para outro, tendo em vista as transformações das dinâmicas do local. Novamente, o princípio que se deve ter como orientador é o da análise do caso concreto. Pouco importa, para o DIH, o rótulo dado a uma operação. Uma vez que o uso da força atinge os níveis e critérios emergentes das normas de DIH, a proteção por ele conferida deve ser aplicada. Assim, é possível observar que, se as tranformações que atingiram as operações de paz da ONU após o final da Guerra Fria impactaram nas questões de uso da força, a aplicação do DIH em decorrência de tal impacto afetam a percepção de imparcialidade das forças internacionais.

Com relação à personalidade jurídica da ONU, e o fato de não ser um Estado, portanto, não ser uma das Altas Partes Contratantes é preciso levar em consideração que a ONU já tem sua personalidade jurídica internacional reconhecida em decisões emanadas de tribunais intenacionais (GRENFELL, 2013). Assim, ainda que se discuta sua obrigação com relação ao DIH positivado, não é desobrigada do direito costumeiro. Esta mesma discussão deve levar em contar QUEM se torna parte de um conflito, quando isso envolve as forças de paz, a ONU ou os países fornecedores de tropas. Isso deverá ser objeto de debate em outra oportunidade.

Se aceitarmos, com base na discussão acima, que as forças atuando sob a égide das Nações Unidas devam ser submetidas à aplicação do DIH, segundo a análise de cada situação concreta, em separado, a questão que se apresenta é a de quando isso passa a ocorrer. Em outras palavras, em quais situações de uso da força as tropas de paz serão consideradas partes de um conflito. Não se pode, como já vimos, aceitar decisões a priori sobre a questão, como faz, por exemplo, o Boletim do Secretário Geral, de 1999, mencionado anteriormente. Apesar de ser um ponto aparentemente já resolvido, há alguns elementos que merecem atenção.

É o próprio Tristan Ferraro (2013, p. 86) quem, novamente, alerta para o fato de que o mero desdobramento de um contingente sob comando da ONU em uma zona de conflito não significa, necessariamente, que os militares internacionais sejam partes do conflito. É preciso que o engajamento de tais forças preencha os critérios da definição mencionada anteriormente, neste mesmo estudo. O debate, neste ponto, se dá com relação à possibilidade que se elevar os critérios que definem uma situação como CANI sempre que haja o envolvimento de forças multinacionais. Assim, alguns autores defendem que com o envolvimento de forças da ONU, atuando com legitimidade e em nome da comunidade internacional, não se deve considerar a aplicação do DIH a menos que exista um CANI no território de atuação das forças durante sua presença naquele local e que as forças se engagem na situação como combatentes (SHRAGA, 2009 apud, FERRARO, 2013). Ora, a crítica a essa posição é que ela cria um novo elemento para definição de CANI, o qual não está em nenhum documento de DIH, jurisprudência ou doutrina, tampouco é majoritariamente aceita entre especialista e operadores. Além disso, e mais importante, esperar que o DIH seja aplicado somente onde já exista um conflito prévio à chegada das forças internacionais, fere novamente a razão de ser do DIH, porque nega a proteção existente em seus estatutos aos não participantes das hostilidades ao não permitir a análise do caso concreto.


Conclusão

Vimos que as Operações de Paz conduzidas pela ONU passaram por transformações significativas , principalmente após o final da Guerra Fria, que impactaram em como os princípios de imparcialidade e mormente, uso da força, vieram a ser interpretados e operacionalizados. Isso se traduziu em Mandatos cada vez mais robustos, com elementos de proteção aos civis e defesa dos objetivos das operações, além da presença de recursos e efetivos militares aparatados para implementar os Mandatos.

Tais desenvolvimentos trouxeram consigo a possibilidade de as forças onusianas se tornarem partes ativas em conflitos armados, principalmente não internacionais, o que, necessariamente remete à questão da aplicação das regras de DIH por ocasião de sua atuação.

Apesar dos desafios que isso representa, demonstrou-se que não há como sustentar juridicamente qualquer argumento que vise a excluir as forças militares sob comando da ONU do âmbito de alcance do DIH, tampouco alterar os critérios de sua aplicabilidade para diferenciar o estatus das forças internacionais em relação às demais partes do conflito. Em termos práticos, isso tampouco é desejável, pois pode ter o efeito de esvaziar um corpo jurídico tão relevante em situações extremas.

A comunidade internacional continua a recorrer à ONU, e às Operações de Paz, como instrumentos de gestão de conflitos e proteção das populações civis nas mais graves crises do planeta e não há indícios de que isso irá mudar em um futuro próximo. A aplicação do direito internacional humanitário nestas situações é fator imprescindível para garantir o mínimo de dignidade à pessoa humana, onde a prevenção não foi possível e a proteção conferida pelas forças de paz ganhe contornos mais robustos.


Referências Bibliográficas

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Sobre o autor
Nelson Cesar Rosa Vieira

Mestre em Estudos Internacionais de Paz e Conflitos pela Universidade de Queensland, Austrália. Especialista em Direitos Humanos pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Capitão da Polí­cia Militar do Estado de São Paulo, Professor de Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário nas escolas de formação e especialização da Polícia Militar de São Paulo. Trabalhou como Policial das Nações Unidas no Timor-Leste e no Haiti. Trabalhou também em Haia, junto ao Instituto de Paz e Segurança Internacional e no Centro Ásia-Pacífico para a Responsa­bilidade de Proteger, na Austrália.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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