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Por que falar em processos penais multijurisdicionais?

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28/12/2021 às 16:10
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PARTE II - OS PROCESSOS PENAIS MULTIJURISDICIONAIS

Mas por que falar em processos penais multijurisdicionais?

Quando o professor espanhol Jesús-María Silva Sánchez publicou o livro La Expansión del Derecho Penal: Aspectos de La Política Criminal en las Sociedades Postindustriales no ano de 1999,[xii] havia ali, naquele período, o prenúncio do alargamento de "novas formas de delinquência", afinal, "a sociedade atual aparece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelo em toda a história da humanidade".[xiii]

Com isso, os riscos se incrementaram de forma expansiva, razão pela qual fala-se numa "sociedade internacional de risco", parafraseando Ulrich Beck,[xiv] eixo para a "institucionalização da insegurança",[xv] levada a efeito em decorrência do alastramento da criminalidade transfronteiriça. Um Estado isoladamente deixou de ser o "exclusivo sujeito passivo" de determinadas condutas delitivas, passando-se a atingir a ordem pública de distintos Estados soberanos.

A expansão do Direito Penal de que falou Jesús-María Silva Sánchez, há mais de vinte anos, possibilita, hoje, falar-se em uma verdadeira expansão do Processo Penal ou em Processo Penal da globalização. Na atualidade não prevalece mais uma concepção estática de ordenamentos jurídicos, mundos isolados e incomunicáveis entre si.

O grau de interligação e interconexão entre diversos Estados, que atingiu a criminalidade contemporânea, complexamente estruturada e com ramificações espalhadas por vários países, implica hoje na própria interligação e interconexão dos processos penais que pretendam a persecução judicial de condutas criminosas transfronteiriças.

De acordo com o United Nations Office on Drugs and Crime (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), sobre o crime organizado transnacional, atesta que este não está estagnado, mas está em constante mudança, adaptando-se aos mercados e criando novas formas de crime. Em suma, é um negócio ilícito que transcende fronteiras culturais, sociais, linguísticas e geográficas e que não conhece fronteiras ou regras.[xvi]

No plano da delinquência dolosa tradicional (a cometida com dolo direto ou de primeiro grau), o progresso deu lugar à adoção de novas técnicas como instrumento que lhe permite produzir resultados especialmente lesivos, o que faz surgir modalidades delitivas dolosas de novo cunho, que se projetam sobre os espaços abertos pela tecnologia. O paradigma clássico é o crime individual. O paradigma do Direito Penal da globalização é o delito econômico organizado, tanto em sua modalidade empresarial convencional, como nas modalidades da chamada macrocriminalidade: terrorismo, narcotráfico ou criminalidade organizada (tráfico de armas, mulheres ou crianças).

Conforme explica Silva Sánchez:

A criminalidade, associada aos meios informativos e à internet (a chamada ciberdelinquência), é, seguramente, o maior exemplo de tal evolução. Nessa medida, acresce-se inegavelmente a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada, que operam internacionalmente e constituem claramente um dos novos riscos para os indivíduos (e os Estados).[xvii]

É conclusivo, neste sentido, que os fenômenos econômicos da globalização e da integração econômica conformaram a constituição de modalidades novas de delitos, de forma que a referida integração produz uma delinquência contra os interesses financeiros da comunidade, produto da integração, ao mesmo tempo em que contempla corrupção de funcionários das instituições de integração.

Para Silva Sánchez, os traços gerais da delinquência da globalização podem ser resumidos na criminalidade organizada, na criminalidade internacional e na criminalidade dos poderosos. Aponta o professor espanhol que, do ponto de vista estrutural, são duas as características mais significativas da criminalidade da globalização. Por um lado, trata-se de uma criminalidade, em sentido amplo, ou seja, organizada. Nela intervêm coletivos de pessoas estruturadas hierarquicamente, seja nas empresas, seja na forma estrita da organização criminal.

A dissociação que isso produz entre execução material direta e responsabilidade determina, ainda, que o resultado lesivo possa aparecer significativamente separado, tanto no espaço como no tempo. Do ponto de vista material, a criminalidade da globalização é criminalidade de sujeitos poderosos, caracterizada pela magnitude de seus efeitos, normalmente econômicos, mas também políticos e sociais. Sua capacidade de desestabilização geral dos mercados, assim como de corrupção de funcionários e governantes, são traços da mesma forma notáveis.[xviii]

Esta conjuntura revela que, não havendo possibilidade de conferir-se uma resposta uniforme por não haver uma instituição judicial supranacional que atue no campo da criminalidade comum transnacional, o exercício do jus puniendi contra a delinquência da globalização deve ficar a cargo da jurisdição de cada Estado, cuja ordem pública fora violada pelo mesmo delito, permitindo-se a cooperação jurídica internacional, por conta dos efeitos irradiantes da conduta criminosa transnacional.

A delinquência transnacional conforma em consequências lesivas evidentes, o que impõe a atuação de diferentes instâncias (jurisdições) em relação ao delito transnacional praticado, fenômeno típico das sociedades pós-industriais, caracterizada pela globalização econômica e a integração supranacional (expressões de Silva Sánchez).

Nesta linha de compreensão, a negação ao exercício do jus puniendi a um dos Estados que também figura como sujeito passivo da prática delitiva transnacional pode levar à neutralização do Direito e do Processo Penal do dito Estado, que pretende, paralelamente, fazer valer a jurisdição sobre o delito em questão, fazendo das fronteiras um obstáculo para a justiça ou refúgio para a impunidade.

Deve-se, de acordo com Damásio de Jesus,[xix] deixar de manter a exclusividade da resposta penal em mãos de um único Estado, pelo que há uma verdadeira tendência (principalmente nos países de Direito escrito) em relativizar o princípio da territorialidade em favor do chamado princípio de justiça universal, de modo que haja a introdução de consideráveis mudanças em temas como a dupla jurisdição penal.

Em vista disso, se hoje é recorrente falar-se em investigações multijurisdicionais, dentro de tal contexto, figurando as Equipes Conjuntas de Investigação (ECIs) como principal diretriz,[xx] em vista do exponencial crescimento da cooperação bi e multilateral e o aumento de investigações criminais multijurisdicionais, não menos comum há de ser a constituição bi ou multilateral de processos penais multijurisdicionais.

Assume relevo, sobre a instituição de Equipes Conjuntas de Investigação, que há considerável base normativa no Brasil para tanto. Isso porque fez-se necessário o implemento de um ponto de conexão investigatório entre diferentes jurisdições estatais. Basta trazer ao contexto a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Decreto n° 154, de 26 de junho de 1991)[xxi], a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto n° 5.015, de 12 de março de 2004)[xxii], a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto nº 6.587, de 31 de janeiro de 2006)[xxiii], a Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016[xxiv], que dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas e o Acordo-Quadro de Cooperação entre os Estados Partes do Mercosul e Estados Associados Para a Criação de Equipes Conjuntas de Investigação (Decreto nº 10.452, de 10 de agosto de 2020)[xxv], todos trazem previsões específicas relativas à formação de Equipes Conjuntas de Investigação, ou seja, há notável fundamento legal para as investigações multijurisdicionais.

Não se negue, portanto, que haja a formação de processos penais multijurisdicionais. Aqui, lida-se com a atuação de duas ou mais jurisdições penais que atuam de forma concorrente para processar e julgar um mesmo fato delituoso, em razão da produção de efeitos em cada território soberano, cabendo a cada Estado a faculdade de aplicar a justiça ao caso concreto, possibilitando-se a cooperação jurídica internacional entre os Estados, contudo, sem que haja interferência entre as respectivas jurisdições.

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Neste sentido, é necessária harmonização e interação entre as jurisdições para o implemento de um processo penal multijurisdicional, evitando-se a xenofobia jurisdicional e conformando-se por um modelo de articulação entre diferentes ordens jurídicas, para que se constitua o exercício da dupla jurisdição penal. Logo, o forum internum e o forum externum para a apreciação do fato devem confluir-se.

Bem analisadas as circunstâncias, a Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal, internalizada no Brasil por meio do Decreto n° 6.340, de 03 de janeiro de 2008, tem neste contexto fundamento de aplicação. O art. 2º da referida Convenção explicita que "os Estados Partes prestar-se-ão assistência mútua nas investigações, processos e procedimentos em matéria penal referentes a delitos cujo conhecimento seja da competência do Estado requerente no momento em que se solicitar a assistência", sendo certo que "esta Convenção não faculta um Estado Parte a empreender, no território de outro Estado Parte, o exercício da jurisdição nem o desempenho de funções reservadas exclusivamente às autoridades da outra Parte por sua legislação interna".

Não é incomum que os Estados sul-americanos, incluindo o Brasil, prestem assistência mútua em casos envolvendo crimes transnacionais, o que incrementa a cooperação bilateral e o aumento de investigações criminais multijurisdicionais. E os processos penais caminham para a multijurisdicionalidade.

 As investigações internas em ambientes multijurisdicionais têm se tornado uma realidade nos últimos anos, havendo uma gama de condutas que privilegiam o uso intercambiado entre Estados para fins de produção probatória, figurando o tráfico transnacional de entorpecentes, lavagem de dinheiro e corrupção em diversos Estados sul-americanos, paraísos fiscais offshore e fraudes fiscais por multinacionais, crimes cibernéticos cometidos pela rede mundial de computadores, envolvendo a produção, venda e distribuição de pornografia infantil, fraudes em serviços e títulos financeiros internacionais, delitos econômicos entre empresas multinacionais, etc.

É inegável a faceta transnacional ou globalizada que atingiu a Política Criminal moderna. O problema da criminalidade transnacional, incluindo-se aquela de matiz organizada, atinge âmbitos mais amplos e genéricos, "quase obrigando seu estudo sob uma ótica de integração supranacional (ou visão externa da questão)"[xxvi], havendo premente fundamento para a expansão do Processo Penal.

Perigos podem haver com a estruturação de processos penais multijurisdicionais, de ambos os lados. De um, a negação a um dos Estados envolvidos no que se refere ao exercício do jus puniendi sob a justificativa da suposta violação à proibição da dupla punição pelo mesmo fato pode implicar em negação à própria soberania do Estado em questão; de outro, máxima atenção dever ser conferida à mantença e ao respeito dos direitos e garantias fundamentais do sujeito que se pretende processar criminalmente, sob risco de ferir-lhe, especialmente, a dignidade humana e o devido processo legal.

Não obstante, é certo que a criminalidade transfronteiriça continua a se proliferar, o que implica na conjugação de esforços entre os pares estrangeiros para que não se neutralize a resposta penal em casos de tal natureza. Esforços hão de ser feitos para a formação de processos penais multijurisdicionais, tal qual já ocorre no âmbito das investigações transfronteiriças. Havendo interesse de dois ou mais Estados na persecução penal de um delito que transgride de modo simultâneo as suas soberanias, cada qual torna-se apto tanto a investigar como a processar os agentes envolvidos na conduta transnacional.

Mantendo-se um modelo equilibrado de reciprocidade entre as autoridades judicias e do Ministério Público dos Estados, o compartilhamento de informações substanciais e a assistência jurídica mútua acerca do crime transnacional praticado, ter-se-á um modelo próprio de processo penal, isto é, multijurisdicional, na hipótese de dois ou mais países terem autoridade processual sobre a conduta criminosa.

Se se vive hoje na época das investigações criminais transnacionais, não há razão para não se fortalecer os esforços para o incremento de processos penais multijurisdicionais, considerando-se que investigar e processar crimes transnacionais exige cooperação transnacional, ou multijurisdicional, na mesma medida há de ser a aplicação da lei por intermédio de um processo.

A despeito da questão envolvendo o bis in idem, não soa ideal que tão somente um Estado seja o responsável pela persecução penal do agente (quando em verdade vários podem investigar o mesmo fato criminoso, a exemplo do que já se tem feito com as Equipes Conjuntas de Investigação). O modelo ideal há de ser aquele pertinente ao interesse de cada Estado dito sujeito passivo da conduta em ver processado o delito transnacional, por isso é necessário falar em processos penais multijurisdicionais. Ou, ao contrário, conviver-se-á com uma espécie de "refúgio transnacional de impunidade"...

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Sobre o autor
Júnior da Silva Garcez

Máster Universitario em Derecho Penal Internacional y Transnacional pela Universidad Internacional de La Rioja (Espanha) (em andamento). Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos pelo Centro Universitário e Faculdades Uniftec (UNIFTEC). Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Faculdade Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Pesquisador com concentração em Direito e Processo Penal Internacional, Cooperação Jurídica Internacional e Direitos Humanos. Autor de artigos jurídicos. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Graduado em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Porto Velho/RO (ILES/ULBRA). Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado de Rondônia. E-mail: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCEZ, Júnior Silva. Por que falar em processos penais multijurisdicionais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6754, 28 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95654. Acesso em: 4 mai. 2024.

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