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Por que falar em processos penais multijurisdicionais?

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28/12/2021 às 16:10
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Reflexões sobre o regime jurídico de processos penais multijurisdicionais, perspectiva que tem por finalidade o exercício simultâneo da jurisdição processual penal por distintos Estados soberanos.

PARTE I - PARA ALÉM DE UMA CONCEPÇÃO ESTÁTICA DE ORDENAMENTOS JURÍDICOS

A expressão "processos penais multijurisdicionais" não encontra eco na doutrina e jurisprudência nacionais. Isso é um fato. Diante de uma primeira observação, a expressão apresenta, em verdade, um grau de estranheza e complexidade que pode findar num total desconhecimento do que pode representar o termo referido.

Afinal, as normas do processo penal restringem-se aos fatos ilícitos praticados nos limites do território brasileiro, o que consta expresso do art. 1º do Código de Processo Penal, pelo qual "o processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código". Há ressalva quanto à incidência de normas não nacionais, aplicando-se os tratados, as convenções e regras de direito internacional (art. 1º, I).

Há obediência, por conta disso, ao princípio da territorialidade, previsto no art. 5º do Código Penal, no qual consta que aplica-se a lei brasileira ao crime cometido no território nacional, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional.

Essa é a regra geral em se tratando de territorialidade. E aqui já se faz presente a concorrência entre jurisdições penais. Não se impede que se aplique a lei brasileira no caso de um crime ocorrer em embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como em aeronaves e embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar.

O Código Penal determina, no mesmo sentido, que a lei brasileira é aplicável aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em voo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil (art. 5º, §2º).

Afora isso, há o amplo rol dos casos referentes à extraterritorialidade incondicionada e condicionada previstos no art. 7º do Código Penal, casos os quais também ficam submetidos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, ou seja: os crimes cometidos (inciso I) a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço; d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil, bem como os crimes (inciso II) a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir; b) praticados por brasileiro; c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados.

Em se tratando de extraterritorialidade da jurisdição, no processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado ou, se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República (art. 88, Código de Processo Penal).

Nestes casos de extraterritorialidade, o Código Penal não veda que o fato criminoso seja julgado em país estrangeiro (jurisdição diversa da brasileira) no qual também tenha ocorrido a prática delitiva, tanto que deixa expresso:

Art. 7º [...]

§ 1º Nos casos do inciso I, o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro.

§ 2º Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições:

a) entrar o agente no território nacional;

b) ser o fato punível também no país em que foi praticado;

c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição;

d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena;

e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Há, diante disso, um maior interesse nas hipóteses do inciso II do art. 7º do Código Penal (embora devam obediência às condições previstas nas aludidas alíneas a, b, c, d e e, o que se convencionou chamar de extraterritorialidade condicionada), haja vista que são mais amplas do que aquelas específicas constantes do inciso I, ou seja, de mais fácil ocorrência em se tratando de criminalidade transnacional.

Observa-se que o Código Penal permite que o crime praticado também em país estrangeiro possa ser julgado igualmente em jurisdição estrangeira. Por exemplo, nos casos do inciso I do art. 7º, o agente pode ser processado de acordo com a lei brasileira (julgado em jurisdição brasileira), mesmo que tenha sido absolvido ou condenado no estrangeiro (julgado em jurisdição estrangeira).

Já no que diz respeito à previsão do inciso II, há restrições (ou condições).

Primeiro, o fato punível no Brasil também o deve ser no país em que foi praticado. Segundo, o crime praticado no país estrangeiro deve estar incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição. Terceiro, o agente não pode ter sido absolvido no estrangeiro, bem como não poderá lá ter cumprido pena pelo fato praticado, isto é, a condenação havida em jurisdição estrangeira não impede, no que tange ao inciso II, que haja condenação também no Brasil pelo fato ocorrido no estrangeiro.

Por fim, o agente que houver cometido o crime no estrangeiro não pode ter sido perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não deve estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Este regime jurídico disposto no art. 7º do Código Penal conforma que as leis penais incidem sobre os fatos delituosos cometidos fora do território brasileiro, o que Tourinho Filho chama de ultraterritorialidade.[i] Já as leis processuais penais não ultrapassam os limites do território nacional, à exceção dos casos previstos em lei. Ou seja: as leis penais podem ser extraterritoriais; as leis processuais penais são territoriais.

Diga-se, assim, que não é possível que o Juiz brasileiro exerça o poder de jurisdição de solucionar lides fora do território nacional, pois é exclusiva a territorialidade da norma processual penal.[ii] É possível, isto sim, que incida a lei penal ao fato cometido por brasileiro em território estrangeiro, mas não a lei processual penal.[iii]

Lado outro, a leitura dos mencionados dispositivos do Código Penal de imediato pode suscitar a seguinte questão: não seria caso de violação ao princípio do ne bis in idem? Há respeitadas vozes na doutrina que respondem a essa indagação positivamente.[iv] Entretanto, a norma contida no art. 7º do Código Penal (com redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984) não fora objeto, até hoje, de ação de inconstitucionalidade ou de interpretação conforme por violação à vedação da dupla punição pelo mesmo fato.

Em verdade, há expressa previsão no Código Penal que excepciona o bis in idem, no sentido de que "a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas" (art. 8º), ou seja, em razão da extraterritorialidade da lei penal brasileira, não há impedimento a que o agente seja processado, julgado e condenado (se for o caso) no Brasil e no país estrangeiro.[v]

Em tal hipótese, quando a pena aplicada no exterior for diversa, pelo mesmo crime, será atenuada a pena aplicável no Brasil e quando se tratar de pena idêntica, haverá a dedução da pena a ser cumprida. Quando nos dois julgamentos forem aplicadas a mesma pena, elas deverão ser compensadas e, quando diferentes, a pena local a ser cumprida deve ser atenuada, descontando-se o que já fora cumprido no exterior.[vi]

Isso significa que a pena não cumprida ou apenas parcialmente cumprida (isto é, originária de processo e condenação imposta em jurisdição estrangeira) não impede novo processo no Brasil. Há aqui, conforme doutrina de Pierangeli, uma compensação no Brasil referente às diversidades quantitativa ou qualitativa da pena imposta no país estrangeiro, impedindo-se a ocorrência do bis in idem.[vii]

Existe impedimento em relação ao cumprimento de duas penas idênticas impostas pelo mesmo fato praticado no Brasil e no estrangeiro, mas não se impede que ocorra o processo e o julgamento em duas jurisdições distintas, pelo mesmo fato violador de ambas ordens públicas. E é justamente este o ponto-chave do estudo.

Se houver processo e condenação do Estado estrangeiro, permissível a aplicação da regra prevista no art. 8º do Código Penal. Havendo absolvição, cumprimento de pena no exterior ou ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou estar extinta a punibilidade, não deve haver processo no Brasil pelo mesmo fato.

Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini[viii] sustentam que a regra da impossibilidade de dois processos ou duas condenações, ou duas execuções pelo mesmo crime por conta do princípio do ne bis in idem, não é absoluta. Segundo os autores, a exceção está precisamente na hipótese de extraterritorialidade (incondicionada e condicionada) da lei penal brasileira. Logo, pode o país estrangeiro que foi palco do crime condenar o agente e o Brasil também, em estando presente as previsões do art. 7º do Código Penal, havendo, assim, dois processos e, caso procedência das ações penais, duas condenações pelo mesmo fato.

Os impedimentos contidos no Código Penal, repise-se, dizem respeito à existência de absolvição, ao cumprimento de pena e ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou estar extinta a punibilidade em decorrência de processo penal corrido no país estrangeiro. Não há vedação quanto à existência do processo judicial em si.

Um detalhe. Em 12/11/2019, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal julgou o HC 171.118/SP, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes.[ix] Este caso tem relevância porque suscita a seguinte indagação: "o direito de não ser processado duplamente por fatos já julgados se aplica também em âmbito internacional?".

Ao julgar o referido habeas corpus, o Ministro Gilmar Mendes entendeu que sim. Para ele, "é relevante questionar se existe possibilidade de se instaurar nova persecutio criminis tendo por objeto fatos já julgados". Em síntese, pela premência do espaço, o Ministro Gilmar Mendes entendeu haver identidade fática entre os processos suíço e brasileiro, tratando-se de hipótese de extraterritorialidade condicionada, de modo que o paciente estaria sendo processado pelos mesmos fatos que ensejaram condenação criminal em processo já transitado em julgado no âmbito da jurisdição do Estado da Suíça, devendo-se respeitar a proibição de dupla persecução penal de modo integral.

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É um ponto (por demais controverso, diga-se) para análise, afinal, como sustentou o próprio Ministro Gilmar Mendes, "Em um cenário de globalização e crescente confluência entre ordenamentos jurídicos e até mesmo integrações comunitárias, a temática aqui em debate mostra-se extremamente relevante".

Isso porque o crime de larga escala não mais respeita as fronteiras entre os Estados. Transcende os perímetros jurisdicionais. E isso é um fato.

Como ressaltado, o Ministro Gilmar Mendes decidiu no julgamento do HC 171.118/SP (que não é um precedente qualificado pela repercussão geral) no sentido de que "deve-se respeitar a proibição da dupla persecução penal quando os fatos sob apreciação no Brasil já forem objeto de julgamento em outro Estado estrangeiro".

No entanto, a decisão não analisa a hipótese de um Estado estrangeiro almejar processar um brasileiro por crime cometido em território estrangeiro, mesmo que o brasileiro em questão já tenha sido julgado e condenado no Brasil pelo fato em questão, cuja prática gerou simultaneamente efeitos no território estrangeiro e no Brasil (o que, aqui, chama-se de crime transnacional de efeitos irradiantes[x]).

Processando-se e condenando-se o brasileiro em território nacional por crime aqui cometido, mas que devido à transnacionalidade da conduta houve a geração de efeitos também em país estrangeiro, negar-se-ia ao Estado estrangeiro a possibilidade de lá serem julgados fatos que violaram a sua ordem pública? Poderia o Brasil sustentar a possível violação ao princípio do ne bis in idem em face de Estado soberano estrangeiro? O fato criminoso viola a ordem pública de dois Estados distintos e não pode um deles exercer sua jurisdição sobre o delito em seu território praticado em razão de suposta violação à proibição da dupla punição pelo mesmo fato?

Há decisão do Superior Tribunal de Justiça, emanada da Corte Especial no AgRg na Carta Rogatória 571 EX 2005/0020548-2, sob a relatoria do Min. Barros Monteiro, julgado em 06/06/2007, mais ou menos consentânea com a concorrência de jurisdições distintas para processar o mesmo crime cujos efeitos se irradiaram por mais de um território, decidindo-se que: "Nos termos do art. 7º, inc. II, b, e §2º, do CP, é possível a persecução penal no Brasil contra cidadão brasileiro acusado de prática de crime no estrangeiro, a despeito de já haver processo em curso no país onde ocorreu o delito".

Esse entendimento do Superior Tribunal de Justiça foi ratificado no dia 17/09/2019, julgando-se à unanimidade o RHC 104.123-SP, sob a relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, decidindo-se que "a pendência de julgamento de litígio no exterior não impede, por si só, o processamento da ação penal no Brasil, não configurando bis in idem".

Consoante se extrai do inteiro teor do acórdão:

As mudanças ocorridas no Direito, principalmente a partir da universalização dos direitos humanos e da criação consensual de instâncias supranacionais para protegê-los e punir os responsáveis por suas violações, implicou a progressiva e lenta reestruturação do processo penal moderno, para um modelo incriminatório universal em que as fronteiras não sejam obstáculo para a justiça ou refúgio para a impunidade. Uma dessas mudanças diz respeito aos limites de aplicação do ne bis in idem, a um primeiro olhar mais restritos quando aplicados no âmbito da jurisdição transnacional do que em sua corrente incidência dentro de cada ordenamento jurídico.

E mais, a Corte Superior assentou que

[...] seria temerário, pois, também sob esse aspecto, aniquilar o cumprimento da pena no território brasileiro. Além disso, poderá incidir o art. 8º do Código Penal, que, embora não cuide propriamente da proibição de dupla punição e persecução penais, dispõe sobre o modo como deve ser resolvida a situação de quem é punido por distintos Estados soberanos pela prática do mesmo delito, nos seguintes termos: A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas.

Assim, considera-se que o presente texto coaduna-se com os entendimentos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (em que pese a posição do Supremo Tribunal Federal), mas os questionamentos antes levantados demonstram o nível do problema que envolve o assunto sob análise, pois deve-se pôr na mesa (ponderar) a dimensão do princípio do ne bis in idem e do princípio da soberania dos Estados. Qual deve prevalecer?

Por ora, não convém entrar no mérito da questão.

Dito isso, há algum amparo na legislação interna para a constituição de processos penais multijurisdicionais? Em tese, sim. Como visto, o art. 7º, incisos I e II, §§1º e 2º, e alíneas, e art. 8º, do Código Penal, permitem a concorrência entre jurisdições penais distintas. E aqui por que e para que? Devido à amplificação da criminalidade transnacional.

Indo neste direcionamento, o Código de Processo Penal permite a interação entre instâncias judiciais penais, haja vista que prevê no Livro V sobre as relações das autoridades nacionais com autoridade estrangeira (Das Relações Jurisdicionais com Autoridade Estrangeira). Esta parte da vigente norma processual penal conforma a utilização da homologação de sentenças penais estrangeiras e a expedição de cartas rogatórias para citações, inquirições e outras diligências necessárias à instrução do processo penal, tudo devendo atenção e respeito à ordem pública e aos bons costumes.

A Constituição Federal de 1988, quando prescreve que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (art. 4º, IX), abre espaço não somente para o intercâmbio político entre Estados, mas como também para a articulação entre diferentes ordens jurídicas, ou seja, para cooperação jurídica entre jurisdições estatais.

Contudo, tais premissas são limitadas, já que as mencionadas exceções previstas no art. 7º do Código Penal, referentes à extraterritorialidade, não são suficientes quando se trata de condutas criminosas transnacionais, haja vista que "não é mais viável conceber uma concepção estática de ordenamentos jurídicos, nem tampouco manter a exclusividade da resposta penal em mãos de um único Estado".[xi]


PARTE II - OS PROCESSOS PENAIS MULTIJURISDICIONAIS

Mas por que falar em processos penais multijurisdicionais?

Quando o professor espanhol Jesús-María Silva Sánchez publicou o livro La Expansión del Derecho Penal: Aspectos de La Política Criminal en las Sociedades Postindustriales no ano de 1999,[xii] havia ali, naquele período, o prenúncio do alargamento de "novas formas de delinquência", afinal, "a sociedade atual aparece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelo em toda a história da humanidade".[xiii]

Com isso, os riscos se incrementaram de forma expansiva, razão pela qual fala-se numa "sociedade internacional de risco", parafraseando Ulrich Beck,[xiv] eixo para a "institucionalização da insegurança",[xv] levada a efeito em decorrência do alastramento da criminalidade transfronteiriça. Um Estado isoladamente deixou de ser o "exclusivo sujeito passivo" de determinadas condutas delitivas, passando-se a atingir a ordem pública de distintos Estados soberanos.

A expansão do Direito Penal de que falou Jesús-María Silva Sánchez, há mais de vinte anos, possibilita, hoje, falar-se em uma verdadeira expansão do Processo Penal ou em Processo Penal da globalização. Na atualidade não prevalece mais uma concepção estática de ordenamentos jurídicos, mundos isolados e incomunicáveis entre si.

O grau de interligação e interconexão entre diversos Estados, que atingiu a criminalidade contemporânea, complexamente estruturada e com ramificações espalhadas por vários países, implica hoje na própria interligação e interconexão dos processos penais que pretendam a persecução judicial de condutas criminosas transfronteiriças.

De acordo com o United Nations Office on Drugs and Crime (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), sobre o crime organizado transnacional, atesta que este não está estagnado, mas está em constante mudança, adaptando-se aos mercados e criando novas formas de crime. Em suma, é um negócio ilícito que transcende fronteiras culturais, sociais, linguísticas e geográficas e que não conhece fronteiras ou regras.[xvi]

No plano da delinquência dolosa tradicional (a cometida com dolo direto ou de primeiro grau), o progresso deu lugar à adoção de novas técnicas como instrumento que lhe permite produzir resultados especialmente lesivos, o que faz surgir modalidades delitivas dolosas de novo cunho, que se projetam sobre os espaços abertos pela tecnologia. O paradigma clássico é o crime individual. O paradigma do Direito Penal da globalização é o delito econômico organizado, tanto em sua modalidade empresarial convencional, como nas modalidades da chamada macrocriminalidade: terrorismo, narcotráfico ou criminalidade organizada (tráfico de armas, mulheres ou crianças).

Conforme explica Silva Sánchez:

A criminalidade, associada aos meios informativos e à internet (a chamada ciberdelinquência), é, seguramente, o maior exemplo de tal evolução. Nessa medida, acresce-se inegavelmente a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada, que operam internacionalmente e constituem claramente um dos novos riscos para os indivíduos (e os Estados).[xvii]

É conclusivo, neste sentido, que os fenômenos econômicos da globalização e da integração econômica conformaram a constituição de modalidades novas de delitos, de forma que a referida integração produz uma delinquência contra os interesses financeiros da comunidade, produto da integração, ao mesmo tempo em que contempla corrupção de funcionários das instituições de integração.

Para Silva Sánchez, os traços gerais da delinquência da globalização podem ser resumidos na criminalidade organizada, na criminalidade internacional e na criminalidade dos poderosos. Aponta o professor espanhol que, do ponto de vista estrutural, são duas as características mais significativas da criminalidade da globalização. Por um lado, trata-se de uma criminalidade, em sentido amplo, ou seja, organizada. Nela intervêm coletivos de pessoas estruturadas hierarquicamente, seja nas empresas, seja na forma estrita da organização criminal.

A dissociação que isso produz entre execução material direta e responsabilidade determina, ainda, que o resultado lesivo possa aparecer significativamente separado, tanto no espaço como no tempo. Do ponto de vista material, a criminalidade da globalização é criminalidade de sujeitos poderosos, caracterizada pela magnitude de seus efeitos, normalmente econômicos, mas também políticos e sociais. Sua capacidade de desestabilização geral dos mercados, assim como de corrupção de funcionários e governantes, são traços da mesma forma notáveis.[xviii]

Esta conjuntura revela que, não havendo possibilidade de conferir-se uma resposta uniforme por não haver uma instituição judicial supranacional que atue no campo da criminalidade comum transnacional, o exercício do jus puniendi contra a delinquência da globalização deve ficar a cargo da jurisdição de cada Estado, cuja ordem pública fora violada pelo mesmo delito, permitindo-se a cooperação jurídica internacional, por conta dos efeitos irradiantes da conduta criminosa transnacional.

A delinquência transnacional conforma em consequências lesivas evidentes, o que impõe a atuação de diferentes instâncias (jurisdições) em relação ao delito transnacional praticado, fenômeno típico das sociedades pós-industriais, caracterizada pela globalização econômica e a integração supranacional (expressões de Silva Sánchez).

Nesta linha de compreensão, a negação ao exercício do jus puniendi a um dos Estados que também figura como sujeito passivo da prática delitiva transnacional pode levar à neutralização do Direito e do Processo Penal do dito Estado, que pretende, paralelamente, fazer valer a jurisdição sobre o delito em questão, fazendo das fronteiras um obstáculo para a justiça ou refúgio para a impunidade.

Deve-se, de acordo com Damásio de Jesus,[xix] deixar de manter a exclusividade da resposta penal em mãos de um único Estado, pelo que há uma verdadeira tendência (principalmente nos países de Direito escrito) em relativizar o princípio da territorialidade em favor do chamado princípio de justiça universal, de modo que haja a introdução de consideráveis mudanças em temas como a dupla jurisdição penal.

Em vista disso, se hoje é recorrente falar-se em investigações multijurisdicionais, dentro de tal contexto, figurando as Equipes Conjuntas de Investigação (ECIs) como principal diretriz,[xx] em vista do exponencial crescimento da cooperação bi e multilateral e o aumento de investigações criminais multijurisdicionais, não menos comum há de ser a constituição bi ou multilateral de processos penais multijurisdicionais.

Assume relevo, sobre a instituição de Equipes Conjuntas de Investigação, que há considerável base normativa no Brasil para tanto. Isso porque fez-se necessário o implemento de um ponto de conexão investigatório entre diferentes jurisdições estatais. Basta trazer ao contexto a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Decreto n° 154, de 26 de junho de 1991)[xxi], a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto n° 5.015, de 12 de março de 2004)[xxii], a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto nº 6.587, de 31 de janeiro de 2006)[xxiii], a Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016[xxiv], que dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas e o Acordo-Quadro de Cooperação entre os Estados Partes do Mercosul e Estados Associados Para a Criação de Equipes Conjuntas de Investigação (Decreto nº 10.452, de 10 de agosto de 2020)[xxv], todos trazem previsões específicas relativas à formação de Equipes Conjuntas de Investigação, ou seja, há notável fundamento legal para as investigações multijurisdicionais.

Não se negue, portanto, que haja a formação de processos penais multijurisdicionais. Aqui, lida-se com a atuação de duas ou mais jurisdições penais que atuam de forma concorrente para processar e julgar um mesmo fato delituoso, em razão da produção de efeitos em cada território soberano, cabendo a cada Estado a faculdade de aplicar a justiça ao caso concreto, possibilitando-se a cooperação jurídica internacional entre os Estados, contudo, sem que haja interferência entre as respectivas jurisdições.

Neste sentido, é necessária harmonização e interação entre as jurisdições para o implemento de um processo penal multijurisdicional, evitando-se a xenofobia jurisdicional e conformando-se por um modelo de articulação entre diferentes ordens jurídicas, para que se constitua o exercício da dupla jurisdição penal. Logo, o forum internum e o forum externum para a apreciação do fato devem confluir-se.

Bem analisadas as circunstâncias, a Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal, internalizada no Brasil por meio do Decreto n° 6.340, de 03 de janeiro de 2008, tem neste contexto fundamento de aplicação. O art. 2º da referida Convenção explicita que "os Estados Partes prestar-se-ão assistência mútua nas investigações, processos e procedimentos em matéria penal referentes a delitos cujo conhecimento seja da competência do Estado requerente no momento em que se solicitar a assistência", sendo certo que "esta Convenção não faculta um Estado Parte a empreender, no território de outro Estado Parte, o exercício da jurisdição nem o desempenho de funções reservadas exclusivamente às autoridades da outra Parte por sua legislação interna".

Não é incomum que os Estados sul-americanos, incluindo o Brasil, prestem assistência mútua em casos envolvendo crimes transnacionais, o que incrementa a cooperação bilateral e o aumento de investigações criminais multijurisdicionais. E os processos penais caminham para a multijurisdicionalidade.

 As investigações internas em ambientes multijurisdicionais têm se tornado uma realidade nos últimos anos, havendo uma gama de condutas que privilegiam o uso intercambiado entre Estados para fins de produção probatória, figurando o tráfico transnacional de entorpecentes, lavagem de dinheiro e corrupção em diversos Estados sul-americanos, paraísos fiscais offshore e fraudes fiscais por multinacionais, crimes cibernéticos cometidos pela rede mundial de computadores, envolvendo a produção, venda e distribuição de pornografia infantil, fraudes em serviços e títulos financeiros internacionais, delitos econômicos entre empresas multinacionais, etc.

É inegável a faceta transnacional ou globalizada que atingiu a Política Criminal moderna. O problema da criminalidade transnacional, incluindo-se aquela de matiz organizada, atinge âmbitos mais amplos e genéricos, "quase obrigando seu estudo sob uma ótica de integração supranacional (ou visão externa da questão)"[xxvi], havendo premente fundamento para a expansão do Processo Penal.

Perigos podem haver com a estruturação de processos penais multijurisdicionais, de ambos os lados. De um, a negação a um dos Estados envolvidos no que se refere ao exercício do jus puniendi sob a justificativa da suposta violação à proibição da dupla punição pelo mesmo fato pode implicar em negação à própria soberania do Estado em questão; de outro, máxima atenção dever ser conferida à mantença e ao respeito dos direitos e garantias fundamentais do sujeito que se pretende processar criminalmente, sob risco de ferir-lhe, especialmente, a dignidade humana e o devido processo legal.

Não obstante, é certo que a criminalidade transfronteiriça continua a se proliferar, o que implica na conjugação de esforços entre os pares estrangeiros para que não se neutralize a resposta penal em casos de tal natureza. Esforços hão de ser feitos para a formação de processos penais multijurisdicionais, tal qual já ocorre no âmbito das investigações transfronteiriças. Havendo interesse de dois ou mais Estados na persecução penal de um delito que transgride de modo simultâneo as suas soberanias, cada qual torna-se apto tanto a investigar como a processar os agentes envolvidos na conduta transnacional.

Mantendo-se um modelo equilibrado de reciprocidade entre as autoridades judicias e do Ministério Público dos Estados, o compartilhamento de informações substanciais e a assistência jurídica mútua acerca do crime transnacional praticado, ter-se-á um modelo próprio de processo penal, isto é, multijurisdicional, na hipótese de dois ou mais países terem autoridade processual sobre a conduta criminosa.

Se se vive hoje na época das investigações criminais transnacionais, não há razão para não se fortalecer os esforços para o incremento de processos penais multijurisdicionais, considerando-se que investigar e processar crimes transnacionais exige cooperação transnacional, ou multijurisdicional, na mesma medida há de ser a aplicação da lei por intermédio de um processo.

A despeito da questão envolvendo o bis in idem, não soa ideal que tão somente um Estado seja o responsável pela persecução penal do agente (quando em verdade vários podem investigar o mesmo fato criminoso, a exemplo do que já se tem feito com as Equipes Conjuntas de Investigação). O modelo ideal há de ser aquele pertinente ao interesse de cada Estado dito sujeito passivo da conduta em ver processado o delito transnacional, por isso é necessário falar em processos penais multijurisdicionais. Ou, ao contrário, conviver-se-á com uma espécie de "refúgio transnacional de impunidade"...

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Sobre o autor
Júnior da Silva Garcez

Máster Universitario em Derecho Penal Internacional y Transnacional pela Universidad Internacional de La Rioja (Espanha) (em andamento). Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos pelo Centro Universitário e Faculdades Uniftec (UNIFTEC). Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Faculdade Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Pesquisador com concentração em Direito e Processo Penal Internacional, Cooperação Jurídica Internacional e Direitos Humanos. Autor de artigos jurídicos. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Graduado em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Porto Velho/RO (ILES/ULBRA). Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado de Rondônia. E-mail: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCEZ, Júnior Silva. Por que falar em processos penais multijurisdicionais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6754, 28 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95654. Acesso em: 21 nov. 2024.

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