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Não olhe para o Direito Penal.

A triste realidade negacionista das garantias processuais

04/01/2022 às 09:09
Leia nesta página:

Temos visto a inobservância reiterada e sistêmica do ordenamento jurídico-penal no que tange às garantias dos direitos fundamentais do devido processo legal. Morre o Direito Penal em sua essência e renasce o câncer do Direito Penal Midiático.

Alerta de spoiler. Devo, incialmente, informar que há spoiler sobre o filme abordado no decorrer do texto. Portanto, caro leitor, se não quiser prosseguir antes de assistir o filme, fique à vontade e retorne depois.

O presente artigo tem como base o filme Não olhe para cima, lançado recentemente (09/12/2021), do diretor Adam McKay, que conta com um aclamado elenco. Pode até ser que não renda o megassucesso de bilheteria do filme Homem-aranha: sem volta para casa, que bateu o recorde de arrecadação de 1 bilhão de dólares, mas, inquestionavelmente, é um filme que ficará para a eternidade para os que gostam de pensar e não terceirizam a capacidade de questionar o mundo em que vivem.

O grande jurista Lenio Luiz Streck nos brindou, essa semana, com o artigo Não olhe para a Constituição: o filme do negacionismo do Direito, publicado no site jurídico Conjur1.

O professor e jurista Lenio Streck faz, como sempre, um brilhante ensaio de nossa triste realidade jurídica, na qual os direitos e garantias fundamentais do cidadão brasileiro são, a todo o momento, desrespeitadas, massacradas e negadas. É como se referidos direitos não existissem ou existissem apenas para exposição na vitrine do devido processo legal.

O professor Lenio Streck desvela o grande desrespeito e negação das garantias legais e processuais. Fala, o ilustre jurista, da negação da Constituição Federal.

Aqui abordarei algo igualmente sério e decorrente da situação anterior: a negação do Direito Penal.

No filme Não olhe para cima, dois cientistas descobrem um grande cometa que irá destruir o planeta Terra em seis meses. Através dos cálculos, descobrem, inclusive, o exato dia e hora da colisão. Imediatamente, comunicam a descoberta apocalíptica à Presidência da República dos Estados Unidos da América do Norte, considerada, por muitos, uma das altas cúpulas do poder político e econômico mundial.

Entretanto, ao invés de ganharem irrestrito apoio, são ridicularizados e manipulados para minimizarem os efeitos catastróficos do acontecimento. Afinal, a Presidente Orlean, interpretada para aclamada atriz Meryl Streep, e assessorada por seu filho Jason (interpretado por Jonah Hill) estão preocupados com o ano eleitoral e em como essa notícia poderia lhes prejudicar politicamente. Daí surge a política negacionista do evento cataclísmico que está para ocorrer. Qualquer similaridade com o quadro político internacional é mera coincidência.

Com o tempo, os cientistas percebem que estão ficando sem tempo e mudam de rota, tentando alertar a população acerca do fim que se aproxima, pois, já é possível, ao se olhar para cima, visualizar, no céu, a aproximação do cometa destruidor de planetas. O grupo político, contrariado com a postura dos cientistas e receosos pelo julgamento que podem sofrer do público por não estarem fazendo nada, iniciam uma política negacionista da realidade, intitulada não olhe para cima, ou seja, ignore a realidade. E aí a trauma se desenvolve até um final surpreendente.

A questão é que, para mim, trata-se de uma obra muito mais do que ficcional. Vejo, em referida obra cinematográfica, um verdadeiro documentário da realidade política internacional. Um quadro que passa por todos os regimes políticos, bem como por todos os períodos históricos da humanidade.

Neste ensaio analisarei como vem sendo tratado o Direito Penal em pleno século XXI.

Da mesma forma que vemos a negação da Constituição Federal, inclusive e fundamentalmente pelos órgãos do Poder Judiciário que, em tese, deveriam ser a última catedral das garantias democráticas e protetora do cidadão, vemos uma verdadeira aberração no que tange à aplicação do verdadeiro Direito Penal e de suas fundamentais garantias.

Vemos, como dizia o saudoso professor Luiz Flávio Gomes, um Direito Penal clara e vergonhosamente midiático e não científico. Tenho defendido em meus livros2 que o Direito Penal, de ultima ratio, transmutou-se, para o desespero dos grandes teóricos do Direito, a exemplo de Cesare Beccaria, na prima ratio, ou seja, o que deveria ser o último remédio, transformou-se em primeira terapêutica para solucionar os problemas relacionados ao controle social.

Como dizia meu amado pai: tempos críticos, difíceis de manejar (2 Timóteo 3:1).

A matemática mais crimes, mais penas e mais presídios não irá reduzir a criminalidade, conforme já abordei em ensaio já publicado3.

O Direito Penal, em verdade, transformou-se em Direito de Vingança. Pune-se pelo simples prazer de se punir. Quem tem o poder pune, quem não tem é punido. Essa a realidade simples.

O princípio da insignificância ou da bagatela, engendrado para resolver as questões de ínfima relevância, como furto de produtos alimentícios e até mesmo de vestuário para utilização própria, não vem tendo, a contento, a devida aplicação.

Recentemente, o Ministro Nunes Marques, do STJ, negou a aplicação do precitado princípio em um caso de furto de 18 chocolates e 89 chicletes. Em seus argumentos, disse o ilustre Ministro4, litteris:

"O STF já firmou orientação no sentido da aplicabilidade do princípio da insignificância no sistema penal brasileiro desde que preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos, como a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada", ressaltou o magistrado.

Para ele, como no caso analisado o furto foi praticado por concurso de agentes, não há que se falar em fato insignificante, pois há especial reprovabilidade do comportamento.

Será que em um país miserável, de pessoas postas em situação de miséria (em todos os aspectos), onde a fome ainda assola grande parte da população, fica difícil antever que as pessoas vão roubar para comer? Isso, inegavelmente, ocorrerá. E mais inegavelmente ainda é que haverá muitos concursos de pessoas, tentando sobreviver, que empreenderão quaisquer artifícios para buscar o pão nosso de cada dia. Mas, para quem come lagosta no almoço é difícil imaginar que alguém possa furtar chocolate, pão, manteiga ou chiclete para aplacar a fome.

Parece hipocrisia, salvo melhor juízo, mas, o que tenho visto é que os maiores defensores de punições severas são os que, na clandestinidade e na intimidade, têm cometido os crimes e imoralidades mais atrozes. A psicologia explica isso. É a projeção. Projetamos nos outros aquilo que está em nós para que, mudando o foco de atenção, possamos cometer nossos pequenos delitos em paz. Não olhem para os problemas sociais, não olhem para a miséria, não olhem para o analfabetismo. Olhem para o próprio umbigo, para os que detêm o poder, são nossos salvadores! A nata da nata da sociedade! Será? Talvez exista mais podridão de terno e gravata do que na pior latrina das penitenciárias. Ou talvez não. Quem sabe. Tudo é uma questão de olhar ou não olhar. Eis o ponto. Mas, a cegueira seletiva tem um preço. E a cobrança já está acontecendo.

Para o pobre, o Direito Penal, para o rico, o Direito Legal e Garantista, repleto de prerrogativas, cuidados, conchavos, conluios e outros predicados.

Há um direito penal prostituído, carcomido, alterado, envergonhado, desrespeitado.

Pune quem pode punir, pelo simples prazer de poder fazê-lo. Conspurcaram o direito probatório, e o assecuratório da ampla defesa, do contraditório, da ampla produção de provas, da não autoincriminação. E o que dizer do in dubio pro reo? Esse foi assassinado há muito tempo. Como dizia o saudoso Luiz Flávio Gomes, vigora o na dúvida, pau no réu. Condena-se o mais pobre e o mais feio.

É realmente um vitupério o que tem acontecido com o ordenamento jurídico. Uma inflação crescente de leis, mas que são aplicadas para poucos.

A Lava-Jato e suas escatologias. A Boate Kiss e suas patologias processuais. Pula-se instâncias em busca de condenação. A qualquer custo. De quem quer que se coloque no caminho do clamor público. Maldito populismo penal midiático, malditos julgadores de redes sociais com pós-graduação em tautologias. Esse o Brasil de todos? Nunca foi de todos. Nem mesmo em termos de punição! Esse o preço por não se olhar.

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Até quando um direito penal de minorias? Os paladinos da justiça caem a todo o momento, mudam de lado, se vendem, aderem a novas ideologias, enfim, coisas de um mundo líquido, para se relembrar as lições de Zygmunt Bauman. Os heróis de hoje são os vilões do amanhã e vice-versa.

O direito de defesa é desrespeitado sistematicamente, bem como o direito de se expressar livremente. Tudo é penalizado. Apenas não se penaliza as barbáries da elite. Diz o ditado: quem tem o ouro dita as regras. E assim tem sido desde a aurora da humanidade. Um ciclo pernicioso sem fim.

Olhar ou não para cima é, acima de tudo, uma escolha. Compete a cada um escolher para que lado olhar. Ignorar não tem se mostrado o melhor caminho. A margem do rio pode ser segura, mas, não permite a evolução da nau.

Não demorará muito e se criminalizará o direito de defesa, a imunidade profissional do advogado, a liberdade de fundamentação dos magistrados, a proscrição do direito de acusar do ministério público, enfim, o nascimento de uma era de horrores. O professor Lenio Streck, artigo citado, ainda faz constar, verbis:

Não olhe para a democracia é filigrana (sic) e para o Estado Democrático de Direito (só é bom se me serve; algo como a prescrição). Olhe para as redes sociais que querem a ditadura. Não olhe para livros complexos que tratam do Direito. Não "olhe" textos com mais de dez linhas. Olhe coisas tik tok. Olhe para os textos curtinhos que dizem que "garantias processuais são patologias". Isso dá laiques.

(...)

Um Direito sem processo (tão odiado ultimamente) é como um médico que quer tratar seus pacientes com frutas e verduras... para doenças que exigem... antibióticos. Vacinas? São fruto de conspiração. Um cometa vem arrasar a terra? Isso é na sua opinião. Não olhe para cima. Não olhe para a ciência.

" Não olhe para a Constituição, para o procedimento, para as garantias". O problema é que, quando for você precisando delas, talvez o cometa já tenha chegado.

O problema para os negacionistas é que, o direito que você nega ao outro hoje, pode ser o mesmo que lhe será negado amanhã. Não olhe para os direitos alheios. Assim, quando o cometa matador de garantias fundamentais chegar, você será aniquilado sem ver.

Se o direito penal posto lhe agrada, fica a dica: não olhe para o direito penal. Mas, não reclame quando o cometa das ilegalidades e das arbitrariedades atingir sua vida ou a vida das pessoas com as quais você se importa, destruindo direitos e abrindo caminho à punição massiva e sem fundamento.


Notas

1 Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-dez-30/senso-incomum-nao-olhe-constituicao-filme-negacionismo-direito>.

2 O valor do dano moral: como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas: casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado); Comentários à reforma da previdência artigo por artigo. Leme: Editora Cronus, 2020 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado); A defesa do médico: causas de exclusão da responsabilidade médica. Leme: Editora Cronus, 2021 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado).

3 Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-dez-23/embargado-rodrigo-delgado-leis-presidios-nao-diminuirao-criminalidade>.

4 Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-dez-27/nunes-marques-nao-aplica-insignificancia-furto-chicletes.

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Sobre o autor
Rodrigo Mendes Delgado

Advogado. Escritor. Palestrante. Parecerista. Pós-Graduado (título de Especialista) em Ciências Criminais pela UNAMA – Universidade do Amazonas/AM. Ex-presidente da Comissão e Ética e Disciplina da 68ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo por dois triênios consecutivos. Membro relator do Vigésimo Primeiro Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP pelo 3º triênio consecutivo. Autor dos livros: O valor do dano moral – como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas – casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado). Personal (Life) & Professional Coach certificado pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE COACHING – SBCOACHING entidade licenciada pela BEHAVIORAL COACHING INSTITUTE e reconhecida pelo INTERNACIONAL COACHING COUNCIL (ICC). Carnegiano pela Dale Carnegie Training Brasil. Trainer Certificado pela DALE CARNEGIE UNIVERSITY, EUA, tendo se submetido às certificações Core Competence e Endorsement, 2014. (Contatos profissionais: Cel./WhatsApp +55 018 9.9103-5120; www.linkedin/in/mdadvocacia; [email protected])

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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