“que putaria é essa aí”?a atuação do poder de polícia (e da polícia) no contexto da prostituição

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24/01/2022 às 20:07
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4 - A ausência de reprovação social relevante e o interesse econômico como fatores de composição

Em minhas andanças, observações e depoimentos obtidos ao logo dos anos na cidade de Três Rios, onde cursei a graduação em Direito no campus da UFFRJ, que fica bem próximo à entrada da rua da Zona, nunca havia parado para refletir a respeito de como a população e o governo trirrienses pensavam naquela região. Talvez me faltasse aquele estranhamento que Gilberto Velho conceitua na obra Observando o Familiar (1978), e que possibilita ao pesquisador a possibilidade de perceber detalhes que os nativos não conseguem perceber em suas palavras e formas de agir, mas que demonstram formas de pensar que podem ser extremamente importantes para entender a realidade pesquisada.

Por vezes ouvi várias histórias curiosas, com conotação cômica por parte dos interlocutores, sobre fatos ocorridos quando de passagem pela rua, pelos mais diversos motivos; pude observar contextos em que estabelecimentos comerciais como, lojas de peças, mecânicas e até uma casa de festas que se situa bem no início do trecho da zona de meretrício fossem indicados para prestações de serviços diversas; ouvi locais reclamarem sobre buracos na rua e vi o poder público agir no sentido de pavimentar, limpar e dar certa urbanização à rua, em seus diversos trechos; pude constatar que vários dos estabelecimentos que existem na rua, incluindo os bares que alugam quartos para a prestação de serviços sexuais, possuem alvará concedido pela municipalidade.

Assim, pude perceber que, embora exista certa reprovação moral a atividade empreendida predominantemente naquela localidade, ela não é tão substancial ao ponto de fazer com que a administração pública municipal, através de sua fiscalização ou da atuação de seus Guardas Civis Municipais, ou que o executivo estadual, através das polícias, hajam para coibir o que ali ocorre.

Ao ter esse estalo, me questionei sobre a forma como o judiciário local tratava a questão, mas, infelizmente, após uma intensa pesquisa, não localizei demandas nesse sentido. Assim, resolvi pesquisar a forma como os tribunais em geral tratavam a questão de possuir casa de prostituição em zonas de meretrício conhecidas e, deparei-me com julgados interessantes, que traduzem um pouco da tolerância com esse tipo de atividade, em que pese a reprovação moral:

Casa de Tolerância em zona do meretrício: inexistência de crime STF: Casa de prostituição. Exploração em Zona do meretrício. Inexistência de crime. Concessão de habeas corpus. Inteligência do art. 229 do Código Penal. A exploração de casa de tolerância em zona de meretrício não constitui crime.39

CÓDIGO PENAL. ART. 299 DO CP. MANTER CASA DE PROSTITUIÇÃO. ATIPICIDADE. A manutenção de casa de prostituição com conhecimento das autoridades, sem imposição de restrições, desfigura o delito previsto no art. 229 do CPP. Conduta que, embora prevista como ilícita, é aceita pela sociedade atualmente. Absolvição mantida. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ART. 244-A. SUBMISSÃO DE ADOLESCENTE À PROSTITUIÇÃO. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. EXISTÊNCIA DO FATO E AUTORIA. Submissão de adolescentes, com 16 anos de idade, à prostituição e consumo de bebidas alcoólicas em uma boate de prostituição. Apesar de existirem indícios de autoria, não há prova suficiente de que os acusados submeteram as vítimas à exploração sexual, nos termos do fato narrado na inicial, impedindo a condenação. Sentença absolutória foi a melhor solução. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ART. 243. FORNECER BEBIDA ALCOÓLICA PARA MENORES. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O ART. 63, I, DA LEI DAS CONTRAVENCOES PENAIS. EXISTÊNCIA DO FATO E AUTORIA. Em razão da distinção estabelecida pelo legislador, no art. 81 do ECA, apartando bebidas alcoólicas dos produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, o fornecimento daquelas a menores não caracteriza o crime do art. 243 do ECA, mas a infração do art. 63, inc.I, da LCP. APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO IMPROVIDO E APELO DEFENSIVO PROVIDO PARA DECLARAR EXTINTA A PUNIBILIDADE DOS RÉUS QUANTO À CONTRAVENÇÃO DO ART. 63, I DA LCP. UNÂNIME.40 - (ACR: 70051840064 RS)

Note-se que o magistrado, nesse caso, mesmo sem a citação, faz uso da teoria da adequação social, utilizada por autores no âmbito do direito penal corriqueiramente, e de autoria do jurista alemão Hanz Welzel, segundo a qual uma atividade humana poderia constituir crime em todos os seus aspectos formais e legais, mas, ainda assim, dispensaria punição por se encontrar dentro de uma esfera de tolerância social. Mas o detalhe, tal aplicação não encontra respaldo legal, em uma perspectiva positivista da legislação.

Portanto, é possível notar que tanto o poder público quanto a sociedade possuem comportamentos que, se não aprovam a existência de uma zona de meretrício, também não a reprovam com suas ações, o que estabelece uma espécie de zona de limbo legal, que também irá compor a atuação policial nessas situações e, aqui em especial, também caracteriza o trabalho policial na rua da Zona, em Três Rios-RJ.

Ademais, é provável que a administração municipal pense na movimentação do comércio da cidade, em virtude da movimentação de pessoas de fora da cidade, que procuram aquela região para trabalhar, a saber, as prostitutas, ou o mais corriqueiro, os clientes, que movimentam os bares, compram combustíveis para seus carros e também injetam, indiretamente, seu dinheiro na economia local, ao pagar pela prestação de serviços, sendo certo que, parte dos valores obtidos pelo trabalho das prostitutas será gasto no próprio comércio da cidade. Um dos elementos que corroboram tal possibilidade, além da existência notória do local e das práticas que ali ocorrem, é a concessão de alvará de funcionamento para esses estabelecimentos, ainda que estes não prevejam em seu bojo a atividade de fornecimento do espaço para a prestação de serviços de prostituição.


5 A discricionariedade na tomada de decisão policial

O uso do atributo da discricionariedade é elemento central do poder policial, em sua atuação prática, pois é decisivo na tomada de decisões, entre o agir e o não agir, dentro de um contexto em que é permitido optar, desde que dentro de um contexto de legalidade, entre as possíveis opções que se apresentam. Isso, sempre é bom frisar, é a teoria e, como as pesquisas de campo tradicionalmente apontam, existe um imenso distanciamento entre a literalidade da norma e sua aplicação prática no dia a dia.

Pois bem. Como se portar diante de opções de ações e/ou omissões possíveis para uma mesma situação, sabendo que independente da decisão tomada, haverá interpretações possíveis que atribuirão alguma infração à atuação policial? Não há resposta exata a essa questão, mas o resultado dessa ação acaba de uma alguma forma permeando sempre a ilegalidade, à medida que acaba por acarretar uma aplicação seletiva da lei, conforme detalha Muniz (2008):

É sabido que a maioria dos Estados possui algum dispositivo legal que estabelece que as polícias devam aplicar todas as leis de forma plena e integral. É óbvio que este tipo de normatividade não se mostra factível na vida real. Todavia, ela converte claramente a aplicação de todas as leis relacionadas à incolumidade e segurança das pessoas e do patrimônio, em uma efetiva obrigação ou um dever da polícia. Sob este ângulo, a aplicação seletiva da lei seria apreciada como um ato extralegal ou mais propriamente ilegal (Klockars,1985).

E isto, de tal maneira que toda ação policial estaria, no limite, condenada à clandestinidade e a debilidade de seus procedimentos pela necessidade operacional da violação da lei para poder cumpri-la. Isto ocorre, sobretudo, no Brasil, onde o ato policial discricional tende a ser interpretado juridicamente como prevaricação. Ou seja, a decisão policial discricionária pode ser tipificada como um crime perpetrado por um funcionário público, e que consiste em retardar ou deixar de praticar, indebitamente, ato de ofício, ou em praticá-lo contra disposição legal expressa, para satisfação de interesse ou sentimento pessoal.

Note-se que a perspectiva de um enquadramento a priori do ato discricional como uma possível prevaricação pode conduzir ora a paralisia decisória policial, ora a um acordo tácito na polícia de sustentação dos necessários procedimentos policiais de aplicação seletiva da lei numa ordem de total informalidade e baixa institucionalização. O que certamente amplia os níveis de incerteza, imprecisão e insegurança do policial na tomada de decisão e, por conseguinte, a imprevisibilidade dos resultados de sua ação (Muniz, 1999; Muniz e Proença Jr, 2006b). Diante de uma espécie de insegurança jurídica, os policiais, interessados em sobreviver nas suas organizações, podem sensatamente optar por alternativas de ação consideradas mais prudentes em relação às possíveis interpretações do texto legal. Mesmo que estas ações sejam sabidamente insuficientes e insatisfatórias para os próprios propósitos legais. Estas seriam traduzidas, por exemplo, na escolha por fazer o que se deve e menos o que se pode à luz das referências legais.

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Assim como na reflexão acima exposta, a fala inicial do policial aposentado que aqui relatei, expõe, na prática, um ótimo exemplo de como essa discricionariedade se opera na prática, como ferramenta da decisão a ser tomada, em face das diversas possibilidades possíveis, ao ponto de escolher a já mencionada bola de segurança, afim de preservar a sua carreira policial.


4 Conclusão

Essa desordem aparente, alimentada pelos fatores mencionados em todo o corpo deste trabalho, direcionada em particular ao contexto da zona de meretrício onde a pesquisa de campo foi realizada, causa, metaforicamente falando, essa sensação de uma verdadeira zona no que se refere à atuação policial. Porém, essa bagunça resulta em toda uma rede de acordos e regramentos próprios, que visam a uma atuação mais segura, do ponto de vista institucional, para os policiais, não deixando de patrulhar e atuar gerando uma sensação de segurança aos frequentadores e trabalhadores da zona de meretrício.

Foi possível perceber que, parte dessa sensação de segurança e da confiança despertada nas prostitutas e donos de comércio, que também facilitam a obtenção de informações importantes a atuação com relação a outros crimes, é possibilitado pela própria omissão policial proposital no que se refere ao crime de manter casa de prostituição.

A decisão de não atuar no contexto do crime citado é a chamada bola de segurança, haja vista a tolerância demonstrada por parte do poder público e pela sociedade trirriense, assim como evidências que apontam para a visão de que a região movimenta a cidade economicamente, gerando renda e movimentando o comércio local.

Assim, podemos notar que a discricionariedade, bem como os demais atributos do poder de polícia são essenciais dentro deste contexto.


5 - Referências Bibliográficas

MUNIZ, Jacqueline de Oliveira. SILVA, Whashington França da. Mandato Policial na Prática: Tomando decisões nas ruas de João Pessoa. Caderno CRH, Salvador, V.23 n. 60, p, 449-473, Set./Dez. 2010.

MUNIZ, Jacqueline, LARVIE, Sean Patrick, MUSUMECI, Leonarda & FREIRE, Bianca. Resistências e dificuldades de um programa de policiamento comunitário. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(1): 197-213, maio de 1997.

MUNIZ, Jacqueline de Oliveira, MELLO, Kátia Sento. Nem tão perto, nem tão longe Odilema da construção da autoridade policial nas UPPs. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 44-65, jan.-mar. 2015

MUNIZ, Jacqueline de Oliveira. ALBERNAZ, Elisabete. Moralidades entrecruzadas nas UPPs: Uma narrativa policial. Cadernos Ciências Sociais - CSC 29, 11 Série. Porto (Portugal). Ed. Afrontamento 2016:115-151

MUNIZ, Jacqueline de Oliveira. Discricionariedade Polícia e a Aplicação Seletiva da Lei na Democracia. Artigo elaborado para o Curso de Gestão Organizacional em Segurança Pública e Justiça Criminal do NEVUSP, cuja versão publicada constitui a Aula 5: Tendências contemporâneas na área da segurança pública do projeto de Curso à distância

PACHECO, Manuel Flavio Saiol. Da necessária (e viável) regulamentação da profissão do sexo: já chega de jogar pedra na Geni!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5743, 23 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72788. Acesso em: 24 jan. 2022.

VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In NUNES, Edson de Oliveira. A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1978

MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril S.A. Cultural. 1978

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Sobre o autor
Manuel Flavio Saiol Pacheco

Pesquisador, Advogado e funcionário público, graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Campus Três Rios. Atualmente é mestrando em Justiça e Segurança, pela Universidade Federal Fluminense. É Pós Graduado em Direito Administrativo, Direito Constitucional e Direito Tributário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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