Os desafios da institucionalização da atividade de inteligência no Brasil: controle e transparência versus sigilo e eficiência.

16/02/2022 às 08:58
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É certo que a atividade de inteligência é uma função essencial para todo Estado Democrático, pois seu fim precípuo é identificar ameaças em potencial à integridade do próprio Estado e ao regime democrático, dentre outras tarefas referentes a subsidiar a tomada de decisão da autoridade governamental em assuntos de interesse nacional.

De todas as atividades desempenhadas pelo Estado, a Inteligência é aquela que possui características mais distintas: ao coletar informações sensíveis indisponíveis para o público em geral, dispõe de certas prerrogativas legais para penetrar na privacidade dos cidadãos, lesionando garantias individuais constitucionais. Por isso, a rotina de trabalho das agências de inteligência é marcada pela confidencialidade e compartimentação das atividades desenvolvidas.

E é essa peculiaridade das agências de inteligência que as diferenciam das demais instituições democráticas, pois estas devem atuar de modo transparente para que qualquer cidadão possa, no exercício de suas prerrogativas democráticas e republicanas, fiscalizar se as atividades estão sendo realizadas de acordo com os atributos legais que lhe competem de modo eficaz.

Os órgãos de inteligência, como instituições democráticas pertencentes ao Estado Democrático, também devem ser submetidos ao controle do cidadão, principalmente devido à extensão dos poderes que lhes são atribuídos. Mas como cobrar transparência de uma atividade que depende da confidencialidade para a consecução de seus fins? Esse é o desafio que as mais sólidas democracias enfrentam.

Em primeiro lugar, é necessário definir em que consiste o controle e a fiscalização. Controle é a definição legal e regulamentar que delimita a competência e o modo de atuação de uma instituição. Já a fiscalização é a supervisão do trabalho realizado pela instituição pública, verificando a legalidade dos atos praticados e a eficácia no uso dos recursos material, econômico e de pessoal disponíveis, corrigindo qualquer irregularidade encontrada.

Logo, para garantir o sigilo do produto da atividade de inteligência, a fiscalização deve se limitar aos aspectos formais das diligências realizadas, observando a conformidade legal dos atos praticados e o uso racional e econômico dos recursos empregados. Assim, preserva-se o conteúdo das informações obtidas. Disso decorre a formação de uma relação de confiança entre fiscalizado e fiscalizador, necessária para o correto controle da agência, que não negará em prestar as informações necessárias requeridas pelo órgão fiscalizador, que deverá atuar de forma imparcial, não emitindo juízo de valor algum quanto ao trabalho da agência perante a opinião pública.

Nos regimes democráticos, o órgão fiscalizador por excelência é o Poder Legislativo, onde se manifesta de modo mais apropriado toda a representatividade social, garantindo certa imparcialidade do controlador. O órgão fiscalizador não deve se ater à supervisão de uma ou algumas agências, mas sim à toda rede de inteligência nacional, pois é da realidade dessa atividade estatal a constante troca de informações entre as agências que a compõem. Limitando-se à fiscalização de órgãos pontuais, as agências sob escrutínio externo podem recorrer a outras não supervisionadas para realizar atividades ilícitas que não seriam detectadas pelo órgão fiscalizador, simulando uma aparente legalidade na sua atuação.

Se o controle e a fiscalização das atividades de inteligência é um problema nas democracias mais íntegras, no Brasil a questão é ainda mais complicada. A atividade de inteligência no país ainda não é bem vista por significativa parcela da sociedade, que ainda entende os órgãos de inteligência como instrumento de repressão governamental, percepção herdada pelo uso indevido da atividade no período do Regime Militar na perseguição de adversários políticos e ideológicos.

A estigmatização da atividade de inteligência é tão nítida que o constituinte simplesmente ignorou essa função essencial do Estado na elaboração da Constituição de 1988. Uma década após a promulgação da Carta Magna, quando da criação da ABIN, setores da sociedade civil e do Congresso Nacional ainda manifestavam preocupação quanto à reestruturação do serviço de inteligência, temendo o uso político da atividade. A recomposição da função de inteligência só foi possível condicionando a criação da agência à fiscalização externa quanto à observância dos princípios republicanos democráticos e às garantias individuais constitucionais. Essa fiscalização ficou à cargo do Congresso Nacional, através da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI).

Entretanto, como é possível fiscalizar devidamente algo carente de sólida normatização? A legislação que regula a atividade de inteligência ainda é inteiramente infraconstitucional. Diferente dos demais órgãos de defesa nacional e segurança pública, que encontram esteio, respectivamente, nos arts. 142 e 144 da CF, a ABIN, assim como o SISBIN - rede que integra todas as agências de inteligência brasileira - não contam com qualquer previsão constitucional. Essa anomia constitucional é preocupante. Primeiro, porque a ausência dos órgãos de inteligência na estrutura estatal descrita na Constituição Federal confere às agências a aparência de inferioridade e ilegitimidade, reforçando a desconfiança de décadas de parte da sociedade quanto à atividade. Uma emenda constitucional elencando as agências de inteligência como componente da estrutura do Estado resolveria esse problema facilmente.

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Segundo, que a não definição de forma clara e precisa das competências da atividade de inteligência permite a alteração de sua finalidade pelo legislador ordinário. Num eventual estado de exceção, é possível modificar as prerrogativas dos órgãos de inteligência conforme os desejos do governo ilegítimo.

Por fim, a normatização constitucional da atividade de inteligência oferece segurança jurídica às tarefas desempenhadas pelas agências, além de propiciar a fiscalização mais eficiente dos órgãos incumbidos dessa tarefa, já que os contornos legais estariam mais nítidos, permitindo ao controlador saber claramente o que deve ser fiscalizado nas agências, inclusive se os recursos disponibilizados são utilizados de forma eficiente para a atividade-fim.

Há um certo receio nas agências de inteligência de que suas atividades sejam temas do debate político. Mas esse é o preço a ser pago para serem aceitas como instituições democráticas. O debate público limita o uso arbitrário das prerrogativas das agências, conferindo assim a transparência necessária e suficiente para a verificação de legitimidade e eficácia de suas atividades, sem comprometer o sigilo imprescindível para seus fins.

A atividade de inteligência só ganhará a relevância necessária quando o poder político reconhecer sua função essencial na manutenção da integridade nacional e na defesa dos princípios do Estado Democrático, ao incluí-la no texto constitucional ao lado de outros atributos típicos do Estado, permitindo uma investigação eficiente e legítima dos órgãos afetos à atividade conforme os valores exigidos pelo regime democrático.


REFERÊNCIAS

GILL, Peter. Inteligência, controle público e democracia. Paper elaborado para o seminário Atividades de inteligência no Brasil: contribuições para a soberania e a Democracia. Realizado nos dias 06 e 07 de novembro de 2002, na Câmara dos Deputados Brasília.

GONÇALVES, Joanisval Brito. Sed quis custodiet ipso custodes?: o controle da atividade de inteligência em regimes democráticos: os casos de Brasil e Canadá. 2008. 837 f. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) - Universidade de Brasília, Brasília, 2008, cap. 3.

MOTA, Gibran Aype et al. Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasileiros. Rev. Brasileira de Segurança Pública. São Paulo, v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018.

UGARTE, José Manuel. Controle Público da Atividade de Inteligência: a Procura de Legitimidade e Eficácia In: Brasil. Congresso Nacional. Anais do Seminário Atividades de Inteligência no Brasil: Contribuições para a Soberania e a Democr acia, de 6 a 7 de novembro de 2002. Brasília: Abin, 2003, (89-145).

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