Concurso de pessoas e a teoria da acessoriedade limitada: postura dogmática e efeitos práticos

24/02/2022 às 03:34
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O Direito Penal brasileiro é regido pela teoria monista no tocante ao concurso de agentes, e, nessa toada, sua aplicação prática exige a compreensão da teoria da acessoriedade limitada, pois a conduta do partícipe é acessória à ação principal.

De início, insta consignar que a figura do concurso de pessoas, do ponto de vista jurídico-criminal, alberga a concepção de que os praticantes de determinado fato delituoso, quando agem com unidade de desígnios, cujas condutas tiveram relevância causal para a produção do resultado, responderão pela figura típica em tese violada, na medida de sua culpabilidade.

Nesse sentido, segundo a teoria monista ou monística, que impera no âmbito do Direito Penal pátrio, se há pluralidade de agentes e convergência de vontades para a prática da mesma infração penal, todos aqueles que contribuem para o crime incidem nas penas a ele cominadas, nos termos do art. 29, do Código Penal (BRASIL, 1940), ressalvadas as eventuais exceções para as quais a lei prevê expressamente a aplicação da teoria pluralista.

Assim, e em necessário reforço argumentativo, com base na teoria monista, adotada, como regra, pelo Código Penal (BRASIL, 1940), quem participa da empreitada criminosa responde pela prática do mesmo crime, juntamente com os demais agentes envolvidos naquele fato delituoso.

Esse entendimento, aliás, também é apresentado pelo Professor Cezar Roberto Bitencourt:

[...] Essa teoria não faz qualquer distinção entre autor e partícipe, instigação e cumplicidade. Todo aquele que concorre para o crime causa-o em sua totalidade e por ele responde integralmente. Embora o crime seja praticado por diversas pessoas, permanece único e indivisível. O crime é resultado da conduta de cada um e de todos, indistintamente. Essa concepção parte da teoria da equivalência das condições necessária à produção de resultado. No entanto, o fundamento maior dessa teoria é político-criminal, que prefere punir igualmente a todos os participantes de uma mesma infração penal (BITENCOURT, 2008, p. 416).

No mesmo sentir, já decidiu o Eminente Desembargador Paulo Antonio Rossi (TJSP):

O nosso Código Penal, em seu artigo 29, adotou a teoria monista, segundo a qual todos aqueles que concorrem para a conduta delitiva, ainda que não tenham praticado os atos executórios, respondem pelo mesmo crime. Segundo a doutrina pátria, para que haja o concurso de agentes, mister se faz a presença de alguns requisitos, os quais podem ser assim enumerados: a) existência de infração penal ao menos tentada, podendo o concurso de agentes ocorrer em qualquer fase do iter criminis, até a consumação do delito; b) pluralidade de condutas com relevância causal de cada qual para o resultado; c) unidade de infração (face à adoção da Teoria Monista); d) liame psicológico entre os agentes (unidade de desígnios) e; e) liame fático entre as ações dos concorrentes, ainda que um deles não saiba da ação do outro (TJSP; Apelação Criminal 0017431-68.2004.8.26.0079; Relator (a): Paulo Rossi; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Botucatu - 1ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 28/05/2014; Data de Registro: 02/06/2014).

Contudo, importante dizer que, parte da doutrina, esmiuçando a questão, denota que autores são aqueles que praticam diretamente a ação criminosa, isto é, a figura nuclear descrita no tipo penal, ao passo que partícipe é aquele que, embora não pratique atos executórios do crime, concorre de qualquer modo para a sua realização, nos termos do art. 29, do Código Penal (BRASIL, 1940).

Damásio de Jesus elucida a questão nos seguintes termos:

Dá-se a participação propriamente dita quando o sujeito, não praticando atos executórios do crime, concorre de qualquer modo para a sua realização (CP, art. 29). Ele não realiza a conduta descrita pelo preceito primário da norma, mas realiza uma atividade que contribui para a formação do delito. Chama-se partícipe (JESUS, 1985, p. 355).

Nessa alheta, lecionam Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto:

O partícipe é quem, mesmo não praticando a conduta que a lei define como crime, contribui, de qualquer modo, para a sua realização. Existem duas formas de participação: a. Participação moral (ou instigação). A pessoa contribui moralmente para o crime, agindo sobre a vontade do autor, quer provocando-o para que nele surja a vontade de cometer o crime (chama-se determinação), quer estimulando a ideia criminosa já existente (é a instigação propriamente dita). b. Participação material (ou cumplicidade). A pessoa contribui materialmente para o crime, por meio de um comportamento positivo ou negativo (ex.: a ação do vigilante, emprestando a arma, ou a omissão desse mesmo vigia, não fechando a porta que deveria trancar, para faciliar o roubo) (DELMANTO; DELMANTO; DELMANTO JUNIOR; DELMANTO, 2010, p. 195).

Do mais, e agora avançando ao cerne do tema, é certo dizer que a teoria monista incide para considerar que o fato definido como crime, na hipótese de concurso de agentes, deverá ser tratado, penalmente, como unidade jurídica. Nesse caso, a participação, que é necessariamente acessória ao ato principal, só terá relevância na ótica criminal quando o autor da conduta nuclear pratica a execução do crime, conforme preconiza a teoria da acessoriedade limitada.

Sobre a matéria, Guilherme de Souza Nucci preleciona:

[...] havendo pluralidade de agentes, com diversidades de condutas, mas provocando-se apenas um resultado, há somente um delito. Nesse caso, portanto, todos os que tomam parte na infração penal cometem idêntico crime [...] (NUCCI, 2014, p. 321).

De conseguinte, se o fato atribuído àquele que executa o verbo nuclear contido no tipo penal não foi considerado penalmente antinormativo e antijurídico, a participação não poderá ensejar qualquer repercussão na situação fático-processual.

Nesse diapasão, seguindo a doutrina do laureado Professor Damásio E. de Jesus, "[...] passamos a adotar a teoria da acessoriedade limitada. Como diz Welzel, 'para a punibilidade da participação basta que o fato principal seja típico e antijurídico' [...]", e, assim, "[...] a participação exige, além da tipicidade do fato principal, a sua ilicitude, isto é, que não ocorra causa de justificação em relação ao autor" (JESUS, 1985, p. 524-525).

Nesse vértice, com esteio nas ponderosas considerações doutrinárias reproduzidas, é de se concluir que, se o autor da conduta principal não for penalmente censurável, se porventura seu comportamento seja tido como adequadamente normativo para a seara criminal, isto é, juridicamente aceitável, não há como se impor condenação ao partícipe, cuja conduta é acessória, em nome da teoria da acessoriedade limitada.

Nesse mesmo propósito são os ensinamentos de Frederico Marques, quando afirma que "[...] a participação é acessória de um ato principal, como diz JIMENEZ DE ASÚA, e este consiste na prática de ação penalmente ilícita". Para exemplificar, o doutrinador em voga aduz que, verbi gratia, a prática de eventual conduta acobertada pelo exercício regular de direito, ou em estado de necessidade, não enseja reprovabilidade ao partícipe, pois a própria ação principal não é objetivamente ilícita, e, de arremate, entende que ocasional causa de exclusão de punibilidade não afasta a censurabilidade da conduta do participante (MARQUES, 1956, p. 311-312).

Na mesma senda, Guilherme de Souza Nucci vaticina que, para que seja punido o partícipe, a teoria da acessoriedade limitada exige que o autor pratique, ao menos, fato típico e antijurídico, isto é, se faltar tipicidade ou ilicitude, não há cabimento para a punição do partícipe (NUCCI, 2005, p. 249).

Em suma, e tomando-se como parâmetro os estudos de André Luis Callegari, se não existe fato pelo menos típico e antijurídico, cometido por alguém como autor, então não se pode falar em participação, pois não há razão para se castigar alguém que se limita a participar de manobra penalmente irrelevante. Logo, se inexiste início de fato típico e antijurídico, a participação, na perspectiva técnica, não estará configurada (CALLEGARI, 2001, p. 92).

Como se vê, os doutrinadores em comento, ao discorrerem sobre a temática, concluem que não é necessário que o autor direto do fato seja culpável para que a participação esteja caracterizada nos moldes da teoria da acessoriedade limitada, ou seja, é suficiente que sua conduta seja tipicamente ilícita.

Aliás, há diversos julgados acerca da temática. Para ilustrar, o Supremo Tribunal Federal (STF) assim já decidiu nos autos do RHC nº 42313, como se infere da ementa a seguir transcrita:

JÚRI. CO-AUTORIA. INEXISTÊNCIA DE MANDATO POIS, O INDIGITADO MANDATARIO FOI ATÉ ABSOLVIDO PELA JUSTIFICATIVA DA LEGITIMA DEFESA, ISTO E, ANTES DE COMETER CRIME, EXERCEU UM DIREITO. A DECISÃO DO JÚRI, EM RELAÇÃO AO APONTADO MANDATARIO, TRANSITOU EM JULGADO E, ASSIM, APROVEITA O PACIENTE APONTADO COMO MANDANTE. CONCESSÃO DO HABEAS CORPUS.

Importa ponderar, por outro lado, que outros estudiosos do assunto, ao analisarem a teoria da acessoriedade limitada, apontam que sua abrangência também alcança casos penais em que não necessariamente existem causas de atipia ou excludentes de ilicitude.

É dizer, se verificado, no caso concreto, que o executor direto foi absolvido, seja pela ausência de algum estrato do conceito analítico de crime, ou mesmo quando falecer suporte probatório para justificar a prolação do juízo de censura, por exemplo, o partícipe também deverá usufruir dos efeitos da decisão absolutória proferida em favor do autor principal.

Por oportuno, importante transcrever os brilhantes fundamentos exarados pelo Preclaro Desembargador Leandro Crispim, justamente nesse viés:

A participação no Direito Penal é acessória de um fato principal. Ou seja, de acordo com a teoria da acessoriedade limitada, adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, não há se falar em condenação daquele que colabora com a perpetração delitiva se o autor do fato não restou condenado.

Nessa visão, na teoria da acessoriedade limitada, para que se possa falar em partícipe, necessariamente, deve existir um autor do fato. Sem este, não há a possibilidade daquele ser punido, em decorrência da acessoriedade da participação.

A referida teoria da acessoriedade tem por fim limitar o alcance da punição do partícipe em crimes cujo iter criminis conta com a participação de terceiros, que atuam paralelamente à conduta principal do autor.

[...] Sendo assim, a punição da participação dependerá, obrigatoriamente, da conduta do autor. Se o autor é absolvido, portanto, em razão de negativa de autoria, a participação não poderá ser punível (TJ-GO - APR: 382968620108090011, Relator: DES. LEANDRO CRISPIM, Data de Julgamento: 02/02/2017, 2A CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: DJ 2231 de 17/03/2017).

A propósito, confira-se a ementa do acórdão:

APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO. CONCURSO DE AGENTES. ABSOLVIÇÃO DO AUTOR PRINCIPAL. CONDENAÇÃO DO PARTÍCIPE. QUESITAÇÃO. DEFEITO. NULIDADE DO JULGAMENTO. TEORIA DA ACESSORIEDADE LIMITADA. A participação penalmente reprovável há de pressupor a existência de um crime principal, sem o qual descabe cogitar de punir a conduta acessória. Verificado, na espécie, que o executor direto foi absolvido e o participe, que emprestou a arma de fogo, foi condenado, é de rigor a anulação do veredicto condenatório imposto ao apelante, ora partícipe, para que ele possa usufruir dos reportados efeitos da decisão absolutória proferida em favor do autor principal (Teoria da Acessoriedade Limitada - Precedentes do STF e STJ). APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA (TJ-GO - APR: 382968620108090011, Relator: DES. LEANDRO CRISPIM, Data de Julgamento: 02/02/2017, 2A CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: DJ 2231 de 17/03/2017).

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Como se viu, e de acordo com o magistério jurisdicional em tela, a participação penalmente reprovável há de pressupor a existência da efetiva condenação do autor principal do fato, sem a qual descabe cogitar-se de punir a conduta meramente acessória do participante. Na espécie, entende o julgador em comento, que o efeito absolutório da decisão proferida em prol do executor da conduta nuclear deve ser estendido ao partícipe pela imperativa incidência da teoria da acessoriedade limitada.

De saída, cumpre concluir-se que, de fato, o Direito Penal brasileiro é regido pela teoria monista no tocante ao concurso de agentes, e, nessa toada, sua aplicação prática exige a compreensão da teoria da acessoriedade limitada, pois, conquanto não haja distinção imediatamente impactante entre autores e partícipes, o fato é que a conduta do participante é necessariamente acessória ao comportamento delitivo em tese praticado pelo executor material da conduta nuclear prefigurada no tipo penal.

Assim, a teoria da acessoriedade limitada impõe que a reprovação penal, da conduta acessória, necessita da tipicidade e ilicitude do ato primário imputado ao autor principal daquele contexto hipoteticamente criminoso, de tal sorte que, se acaso sombreado por eventual causa de atipicidade ou excludente de ilicitude, por conseguinte, a ação adjacente não poderá ensejar quaisquer reverberações criminais.

Demais disso, rememore-se que há posicionamento no sentido de que, conquanto a primeira análise esteja direcionada ao exame da antinormatividade e antijuridicidade, a absolvição do executor material, em face da ausência de substrato probante, também poderá ocasionar a extensão dos efeitos absolutórios para o participante daquele cenário fático, diante da igual aplicação da teoria da acessoriedade limitada.

Em síntese conclusiva, a importância empírica dos estudos aqui realizados está calcada na análise prática de reais casos criminais, na medida em que a relação entre agente principal e participante possui efeitos importantes na compreensão do modus operandi atribuído ao fato-crime e em suas consequências sancionatórias.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: volume 1: parte geral. 13. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.

 

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 18 fev. 2022.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC nº 42313. Relator: Gonçalves De Oliveira. Brasília, 02 de junho de 1965. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur42700/false>. Acesso em: 21 fev. 2022.

 

CALLEGARI, André Luis. Imputação Objetiva. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

 

DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

 

GOIÁS. Tribunal de Justiça de Goiás. Apelação Criminal nº 382968620108090011. Relator: Leandro Crispim. Goiânia, 2 de fevereiro de 2017. Disponível em: <https://tj-go.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/440386993/apelacao-criminal-apr-382968620108090011>. Acesso em: 21 fev. 2022.

 

JESUS, Damásio Evangelista de. Comentário ao Código Penal: volume I. São Paulo: Saraiva, 1985.

 

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal, 1º Vol. Parte Geral. 10. ed., revista. São Paulo: Saraiva, 1985.

 

MARQUES, José Frederico. Curso de Direito Penal: volume II. São Paulo: Saraiva, 1956.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

 

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 0017431-68.2004.8.26.0079. Relator: Paulo Antonio Rossi. São Paulo, 28 de maio de 2014. Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=7607648&cdForo=0>. Acesso em: 21 fev. 2022.

Sobre o autor
Kelvin Mario Mosna

Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Paulista (UNIP), com Bolsa Integral pelo Programa Universidade Para Todos do Governo Federal (PROUNI), conquistada mediante excelente desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2016.

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A importância empírica dos estudos aqui realizados está calcada na análise prática de reais casos criminais, na medida em que a relação entre agente principal e participante possui efeitos importantes na compreensão do “modus operandi” atribuído ao fato-crime e em suas consequências sancionatórias.

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