UMA BREVE ANÁLISE DO PACOTE ANTICRIME (LEI 13.964/19)

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Resumo:


  • O Pacote Anticrime, Lei 13.964/19, foi idealizado para combater a corrupção, crime organizado e crimes violentos no Brasil, gerando debates e críticas no meio acadêmico e jurídico.

  • O ex-Ministro da Justiça, Sérgio Moro, propôs mudanças nas leis penais e processuais penais para tornar mais efetivo o combate ao crime, com destaque para a relativização das garantias individuais em casos de periculosidade.

  • O Pacote Anticrime trouxe modificações significativas no ordenamento jurídico, como o aumento da pena máxima, alterações na progressão de regime e a introdução do juiz de garantias, influenciado pela Teoria do Direito Penal do Inimigo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo: O Pacote Anticrime, Lei 13.964/19, planeja o combate efetivo à corrupção, ao crime organizado e aos crimes violentos, modificando leis penais vigentes. No entanto, tais mudanças geraram importantes debates no meio acadêmico e, acima de tudo, várias críticas tecidas por doutrinadores e operadores do Direito. O presente artigo busca analisar brevemente os fatores para a realização do pacote de mudanças legais mencionado, observar algumas mudanças no ordenamento jurídico penal trazidas por este, bem como estudá-lo sob uma perspectiva teórica.

Palavras-chave: Pacote Anticrime; Leis penais; ordenamento jurídico penal.

Sumário: 1. Introdução 2. FATORES CRUCIAIS PARA SUA CRIAÇÃO 2.1. A Realidade Social Brasileira 3. PRINCIPAIS MODIFICAÇÕES NO ORDENAMENTO JURÍDICO 4. INFLUÊNCIA DA TEORIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO PACOTE ANTICRIME 4.1 As alterações promovidas frente ao Sistema Prisional Brasileiro 4.2 A Função Ressocializadora da Pena 5. Considerações Finais 6. Referências

1. Introdução

Com as modificações implantadas pela Lei 13.964/19, comumente chamada de Pacote Anticrime, reacendeu-se o debate jurídico acerca do dever estatal de, mesmo exercendo seu poder de penalizar o indivíduo que comete crime, salvaguardar seus direitos e garantias previstas no ordenamento jurídico vigente.

O Pacote Anticrime (Lei 13.964/19), idealizado pelo ex-Ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, Sérgio Moro, quando ainda estava no cargo público, tem como objetivo realizar mudanças nas legislações penais e processuais penais com a finalidade de tornar mais efetivo o combate ao crime no Brasil.

Dentre as questões de maior relevância para o Direito Penal Brasileiro com o advento da Lei supracitada é a existência da possibilidade de relativização das garantias individuais do cidadão sob a tutela estatal por razão de crime, tendo por base o seu grau de periculosidade (a exemplo, se este é apontado como parte da liderança de uma organização criminosa).

Portanto, o presente trabalho visa realizar uma breve análise à Lei 13.964/19, observando os fatores para sua criação, algumas modificações importantes trazidas por este e o seu embasamento teórico, a luz da filosofia do direito.

2. FATORES CRUCIAIS PARA SUA CRIAÇÃO

Em 24 de dezembro de 2019, fora sancionado o Pacote Anticrime, lei que busca trazer importantes modificações ao ordenamento jurídico-penal brasileiro (Código Penal, Código de Processo Penal e Leis Extravagantes). Idealizada pelo ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, a Lei 13.964/19 tem por objetivo, em suma, diminuir a morosidade do Processo Penal, bem como aumentar a punibilidade dos crimes previstos no ordenamento jurídico, principalmente os tidos como violentos, corrupção e de organização criminosa. Conforme expõe Brasileiro:

O denominado projeto Anticrime foi apresentado ao Congresso Nacional no dia 31 de janeiro de 2019 (PL 882-2019), tendo como principal meta o estabelecimento de medidas que realmente se demonstrassem efetivos contra a corrupção, o crime organizado e os delitos praticados com grave violência à pessoa, sistematizando as mudanças em uma perspectiva mais rigorosa no enfrentamento à criminalidade, totalmente em consonância com o anseio popular expressado nas eleições de 2018. (2020, p. 18).

Vale ressaltar que Sérgio Moro, ex-Ministro da Justiça, quando Juiz Titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, atuou ativamente na notória e polêmica Operação Lava-Jato, que resultou em mais de mil mandatos de busca e apreensão cumpridos bem como mais de 700 milhões de reais repatriados, conforme dados fornecidos no site da Polícia Federal.

2.1. A Realidade Social Brasileira

O pacote de modificações legais ora analisado sofreu diversas modificações que foram realizadas durante seu processo de julgamento e votação pelo Congresso Nacional, por meio da Câmara dos Deputados e Senado Federal, havendo vetos importantes a este, tal como a suspensão do instituto do Juízo de Garantias, que busca fazer um controle da legalidade da investigação, entre outras atribuições.

Para entender a proposta do ex-Ministro de aperfeiçoar, conforme seu entendimento, as leis penais vigentes, faz-se necessário entender o momento em que o Brasil estava/está no tocante à segurança pública e política. É de conhecimento geral que o Brasil é um país onde se tem altas taxas de criminalidade.

Conforme exposto em matéria jornalística do Portal G1, mesmo no cenário atual de isolamento social em razão da pandemia de Covid-19 que assola a humanidade, houve um aumento nos homicídios de 5% no ano de 2020 em comparação ao ano de 2019, totalizando 43.892 mortes violentas de 2020 ante a 41.730 de 2019. (2021, on-line).

Não obstante, é notória a atividade de organizações criminosas encabeçando esse aumento de crimes violentos. Apenas no Estado do Ceará, no ano de 2017, houve um recorde de homicídios, sendo contabilizados ao fim deste ano 5.134 mortes violentas, muitas dessas ligadas a uma disputa entre facções criminosas (BORGES, 2019, on-line).

No Estado do Rio de Janeiro, de 1.413 comunidades, 828 (59% destas) são dominadas por uma facção apenas, enquanto 278 são por milícias e o restante por facções criminosas distintas. Portanto, é incontestável a força da criminalidade organizada no país, o que gera grande insegurança para a população brasileira (LEITÃO; LANNOY, 2020).

A sociedade brasileira é acometida de maneira brutal por crimes violentos, o que aumenta significativamente a insatisfação dos cidadãos ante o serviço jurídico e segurança pública prestado pelo Estado. Portanto, há o dever estatal de resposta aos anseios populares, bem como promover o bem-estar social, visando atender esses anseios que a Lei 13.964/19 fora projetada aumentando o rigor penal, principalmente no que se refere ao crime organizado, tornando, também, os processos mais céleres (aumento da eficácia do judiciário), o que cominaria no início resolução do problema dos crimes violentos cometidos no Brasil.

Como um dos objetivos mais importantes do Pacote Anticrime, está o aparelhamento legal do Estado para o enfrentamento ao crime organizado, uma vez que o país já foi palco de graves crises políticas e na segurança pública, sendo este um dos maiores males da sociedade brasileira.

Ao realizar uma análise em alguns escândalos de corrupção, um tipo de crime organizado muito comum no Brasil, percebe-se que há um desvio astronômico de dinheiro dos cofres públicos. Conforme exposto no Índice de Percepção de Corrupção (IPC), divulgado pela Transparência Internacional (2020), o país, em 2019, estava em 106º lugar de 180 países (do menos para o mais corrupto), empatando com Albânia, Costa do Marfim, Argélia e Egito.

Para um estudo amplo do fenômeno da corrupção no Brasil, é necessário o entendimento dos fatores históricos, sociais e estruturais/políticos que levaram a tal fim, entretanto esse breve estudo se aterá apenas ao fator estrutural da corrupção, uma vez que está ligado ao comportamento dos representantes estatais ante a governabilidade do Estado brasileiro.

A corrupção estrutural evidencia a facilidade que os agentes públicos possuem para praticarem atos criminosos de corrupção, utilizando os acessos que suas funções públicas lhes dão para tanto desviar verbas públicas quanto garantir a impunibilidade. Afirma Melo:

Tal fator nos remonta diretamente ao emparelhamento do Estado em prol da corrupção, ao analisarmos que a corrupção é um fenômeno recorrente e generalizado nas instituições, que se unem para viabilizar a impunidade dos desvios de verbas públicas, conforme ficou evidenciado recentemente no desfecho das investigações da operação lava jato, onde as empresas se emparelhavam mediante carteis para ganhar licitações e subornavam desde os governadores até os secretários das respectivas pastas. (2020, p. 15).

De acordo Miriam Moraes, as formas consideradas usuais para a corrupção dos agentes públicos/políticos são cinco: cargos públicos, contratos de licitações, emendas orçamentárias, financiamento de campanhas feitas por terceiros e compra de voto (2014, p. 143). Portanto, por meio de anos de impunidade ante a corrupção, não causa estranhamento a existência de verdadeiras organizações criminosas especializadas em desvio de verbas públicas em várias esferas de poder do Estado.

Observa-se que a lei ora analisada alega combate efetivo ante os fatores citados, tendo como importantes objetivos, dentre outros, o combate aos crimes violentos e, consequentemente, às organizações criminosas, juntamente ao enfrentamento aos crimes de colarinho branco, por exemplo, a corrupção, mais comum no desvio de verbas estatais para ganhos pessoais ou de outrem. No entanto, esse pacote de modificações ao ordenamento jurídico-penal vigente vem sofrendo severas críticas, sob alegação de um desrespeito aos preceitos penais constitucionais, tal como o Garantismo Penal, relativizando direitos individuais do preso, dentre outros.

Logo, conclui-se que a Lei 13.964/19, comumente chamada de Pacote Anticrime, que visa, entre outros objetivos, aparelhar legalmente o Estado para o combate a crimes mais complexos, tais como o de corrupção ou os crimes cometidos por uma organização criminosa, deve também respeitar os preceitos constitucionais penais, o que gera um debate na comunidade jurídica acerca do dever estatal de, mesmo exercendo seu poder de penalizar o indivíduo que comete crime, salvaguardar seus direitos e garantias previstas no ordenamento jurídico vigente.

Ao analisar as principais modificações legais com o advento do Pacote Anticrime, será analisada a dicotomia punibilidade/garantismo trazida pela lei estudada, bem como as observações doutrinárias feitas a esta.

3. PRINCIPAIS MODIFICAÇÕES NO ORDENAMENTO JURÍDICO

O Pacote Anticrime, de acordo com seu idealizador ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, visa modificar as leis penais vigentes com a finalidade de combater crimes mais gravosos, tais como os violentos, os cometidos por organizações criminosas ou mesmo os grandes crimes de corrupção, tais como os esquemas que desviam grandes quantidades de dinheiro dos cofres públicos.

Outro objetivo da lei mencionada é uma maior eficiência do judiciário, cominando em um aumento da celeridade processual. Para alcançar tais objetivos, foram necessárias várias modificações notáveis no ordenamento jurídico-penal, como adiante serão pontuadas.

Uma das principais mudanças com o advento da Lei 13.964/19 é o aumento da pena máxima a ser cumprida no país, prevista no art. 75 do Código Penal. Conforme a nova redação legal, a pena máxima passa de 30 à 40 anos:

Art. 75. O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (quarenta) anos.

§ 1º Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 40 (quarenta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo.

§ 2º - Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido. (BRASIL, on-line).

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O aumento da pena máxima se dá em razão do também aumento da expectativa de vida no país que, em 1940, ano de publicação do Código Penal vigente, não passava de 45,5 anos. Em 2019, a expectativa de vida dos brasileiros passou a ser de 76,3 anos, contabilizando um aumento de 30,8 anos em 79 anos. (BRASILEIRO, 2020, p. 29).

Enfatiza-se que, no momento da confecção deste trabalho, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou (31/05/2021) o PL 3492/2019 que, dentre outros pontos, busca alterar novamente o art. 75 do Código Penal (já modificado pelo Pacote Anticrime), aumentando a pena máxima no Brasil de 40 para 50 anos. Esse Projeto de Lei também prevê o homicídio e a lesão corporal de criança e adolescente como circunstância qualificadora do crime de homicídio e da lesão corporal.

Posteriormente, houve uma modificação dos valores a serem cumpridos para que ocorra a progressão de regime dos condenados à pena privativa de liberdade, previstos no art. 112 da Lei de Execução Penal. Portanto, caso o réu seja primário e fora condenado ao cumprimento de pena por cometimento de crime sem o emprego de violência ou grave ameaça, terá que cumprir 16% desta para solicitar a progressão de regime.

Outra mudança substancial no período para progressão de regime são as previstas para crimes hediondos ou equiparados a estes. Por exemplo, tratando-se de indivíduo condenado por crimes mais gravosos, como por crime hediondo com resultado em morte, caso primário, este cumprirá 50% da pena, vedado o livramento de condicional. Esse percentual cai para 40% se o apenado for condenado a crime hediondo sem resultado com morte. Entretanto, caso seja reincidente nesse tipo de crime, cumprirá 60% da pena para solicitar essa progressão e cumprirá 70% da pena caso a reincidência for em crime hediondo com resultado em morte.

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:

I - 16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça;

[]

V - 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário;

VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for:

a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional;

[]

Dando andamento ao tópico ora exposto, pontua-se as alterações legais no art. 83 do Código Penal, que trata do instituto do livramento condicional do sentenciado. Para o doutrinador brasileiro César Bitencourt, em seu livro Tratado de Direito Penal, o livramento condicional é uma antecipação, embora limitada, da liberdade. Portanto, serve para promover ao apenado que, em determinado momento do cumprimento da pena, apresenta suficiente regeneração, analisada de forma técnica ante as condições legais, de volta ao convívio social (2012, p. 301).

Conforme a nova redação legal do art. 83, o que anteriormente era exposto em um inciso (art. 83, inc. III) e agora fora dividido em três alíneas, com adição de uma quarta condição para que o indivíduo sob a tutela estatal seja beneficiado com este instituto penal.

O requisito adicionado está previsto no art. 83, III, b) do Código Penal, sendo esta a impossibilidade da concessão do livramento de condicional a indivíduos que cometeram falta grave nos 12 meses que antecedem a solicitação. As faltas graves estão previstas nos arts. 50, 51 e 52 da Lei de Execuções Penais e englobam fugir do estabelecimento prisional; utilizar, possuir ou fornecer aparelho que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo (ao condenado a pena privativa de liberdade e ao preso provisório); descumprir, injustificadamente, restrição imposta (aos apenados com restritiva de direitos), entre outras.

Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que:

[]

III comprovado:

a) bom comportamento durante a execução da pena;

b) não cometimento de falta grave nos últimos 12 (doze) meses;

c) bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído; e

d) aptidão para prover a própria subsistência mediante trabalho honesto;

(BRASIL, on-line).

Tais modificações buscam o endurecimento legal ante a criminalidade, tentando reprimir, de maneira bem mais intensa que a legislação anterior, as práticas criminosas, seja em meio ao convívio social usual, seja no encarceramento dos indivíduos praticantes de atos criminosos. Essas medidas buscam, portanto, o combate às organizações criminosas, que, muitas vezes, por meio de seus associados, ainda que encarcerados, comandam atos criminosos contra a sociedade.

Em meio as alterações e adições legais promovidas pelo Pacote Anticrime, uma em específica ensejará em uma reestruturação significativa no Judiciário nacional. Essa adição tem por finalidade a criação de um juiz de garantias, empenhando seu labor em fiscalizar o inquérito policial e analisando o respeito às garantias do investigado, de forma a tomar decisões no momento pré-processual, tais como prisão preventiva, interceptação telefônica, quebra do sigilo bancário, dentre outras questões ligadas a obtenção de provas. Guimarães e Ribeiro acrescentam:

Nos termos da nova lei, o juiz das garantias, ou seja, o juiz que será competente para a investigação criminal, é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário e compete a ele: receber a comunicação imediata da prisão; receber o auto da prisão em flagrante para controle da legalidade; zelar pelos direitos do preso; ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar; prorrogar prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revoga-las assegurando o contraditório e a ampla defesa; e também todas as demais decisões que forem referente a fase administrativa da investigação. (2020, p. 161)

Esse instituto já é bastante utilizado nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, assim, não sendo, portanto, uma inovação jurídica, mas uma adaptação do que se pode observar do sistema jurídico-penal de outros países como Espanha, como juiz instrutor (Artículo 622, Ley de Enjuiciamento Criminal), França, com a criação do Le juge des libertés et de la détention (juiz das liberdades e da detenção - Lei 2000-516), entre outros. Pode-se mencionar que, no Código de Processo Penal de Portugal, existe a figura do juiz de instrução, previsto no artigo 17º da lei supracitada. O juiz de instrução se responsabiliza pelas decisões quanto às funções jurisdicionais até a remessa do processo para julgamento.

Artigo 17.º

Competência do juiz de instrução

Compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código.

No Brasil, as regras trazidas pelo Pacote Anticrime que instauram o juiz de garantias foram suspensas por tempo indeterminado por decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux (ADI 6298 MC/DF), uma vez que requer uma completa reorganização da justiça criminal no país, causando um impacto financeiro relevante ao Judiciário nacional, tornando-se, por hora, inviável sua aplicação.

[...]

Com a devida vênia aos que militam em favor desse raciocínio, entendo que essa visão desconsidera que a criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país. Nesse ponto, os dispositivos questionados têm natureza materialmente híbrida, sendo simultaneamente norma geral processual e norma de organização judiciária, a reclamar a restrição do artigo 96 da Constituição.

(STF- MC ADI 6298 DF-DISTRITO FEDERAL 0035984-92.2019.1.00.0000, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 22/01/2020, Data de Publicação: Dje-019 03/02/2020).

Por fim, compreende-se que algumas alterações legais ainda demorarão para que se tenha pleno exercício ante a realidade criminal do país. Entretanto, tratando-se das novas regras que estão em vigência, observa-se um aumento do rigor estatal ante a relação infrator/Estado, o que leva a indagação sobre o respeito às garantias constitucionais, visto que o Brasil sofre uma série de problemas sociais e estruturais, levantando questões sobre possíveis colapsos nos sistemas penais.

As mudanças que a Lei 13.964/19 trouxe culminou em importantes debates na comunidade jurídica, resultando em severas críticas, principalmente no que tange à inconstitucionalidade de certas modificações legais, uma vez que o ordenamento jurídico-penal brasileiro deve estar de acordo com o Garantismo Penal constitucional.

4. INFLUÊNCIA DA TEORIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO PACOTE ANTICRIME

A teoria do Direito Penal do Inimigo busca a punição dos cidadãos que cometem crimes menos gravosos (entende-se por crime menos gravosos aqueles que não tem como objetivo atingir o bem-estar social como um todo ou a disposição do Estado por exemplo, o crime de homicídio simples), dentro do normal, previsto no ordenamento jurídico, e a punição severa aos indivíduos que cometem crimes que atentem contra o bem-estar social como um todo, sendo afronta ao próprio Estado de Direito (por exemplo, os crimes de terrorismo). A esses últimos, caberia ao Estado cercear direitos constitucionais para aplicar uma punição adequada (JAKOBS; MELIÁ, 2020, p. 27).

A indagação de como tal teoria poderia ter influenciado na confecção das modificações penais aplicadas nas leis penais recorre a uma análise estrutural da situação penal brasileira.

4.1 As alterações promovidas frente ao Sistema Prisional Brasileiro

Primeiramente, observa-se um aumento de 10 anos no tempo máximo que se pode atribuir com fim de penalização, passando, logo, 40 anos de limite para o cumprimento de pena.

De acordo com os dados fornecidos pelo Sistema Prisional Brasileiro, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o país possui 161,42% (2019) de seus presídios ocupados. Portanto, o Brasil está com 61,42% a mais do seu limite de vagas prisionais, isso com 70 anos com o Código Penal estabelecendo a pena máxima de 30 anos a ser cumprida.

Ressalta-se que o estabelecimento da pena máxima em 40 anos em si não é o problema, mas sim um catalisador de crises penitenciárias, uma vez que o sistema penitenciário brasileiro já está defasado por superlotações e falta de infraestrutura.

Por mais que tenha ocorrido um aumento na expectativa de vida dos brasileiros, essa realidade não chega para os presos, já que a maioria já vive uma vida de pobreza fora da cadeia, passando por mais necessidade dentro do sistema prisional.

Assim, analisa-se que, sobre esse aumento de pena ou requisitos para a progressão de regime, a lei proposta pelo ex-Ministro da Justiça, Sérgio Moro, busca dificultar a liberdade do indivíduo penalizado, pois oferece grandes períodos para o cumprimento da pena para que este venha a requerer.

Conforme o art. 112 da Lei de Execuções Penais (LEP), a progressão de regime ocorre com o cumprimento de 40% da pena caso o indivíduo seja primário em crime hediondo; 50% se o apenado for primário em crime hediondo com resultado em morte ou condenado por comando de organização e milícia criminosa; 60% se o apenado for reincidente em crime hediondo; 70% se o apenado for reincidente em crime hediondo com resultado em morte.

A realidade prisional do Brasil é que já se vive em uma situação alarmante no tocante ao super-encarceiramento. Indaga-se de que maneira o Estado cuidaria de tantos indivíduos sob sua tutela e como dar estrutura para um projeto de ressocialização na cadeia, quando os indivíduos estão mais preocupados com sua sobrevivência.

Nesse sentido, cita-se a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, julgamento realizado pelo STF que estabeleceu o Estado de Coisas Inconstitucional nas prisões do Brasil. Sob relatoria do atualmente ex-Min. Marco Aurélio de Mello, expôs uma série de falhas no sistema prisional brasileiro que descumpria preceitos constitucionais fundamentais. Cita-se que tal teoria se iniciou na Corte Constitucional Colombiana, expondo as irregularidades penitenciárias neste país.

Diante de tais relatos, a conclusão deve ser única: no sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. (STF, 2015, p. 6-7).

O Pacote Anticrime também traz a possibilidade de construção de presídios, entretanto observa-se a situação econômica brasileira atual, a qual enfrenta uma pandemia e sofre com ingerências governamentais, tornando-se bastante dificultoso o acesso a tais verbas.

Posto isso, há uma dificuldade do indivíduo de sair do sistema penal, vide as alterações legais ora discutidas, entretanto ainda assim há o caráter ressocializador do sistema penitenciário, conforme disposto no ordenamento jurídico brasileiro. Com o exposto, por meio de análise da situação carcerária brasileira, indaga-se sobre o caráter da pena, ou mesmo a possibilidade da diminuição dos índices de criminalidade tendo como base o caráter ressocializador desta. Conforme Mirabete:

A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação. (2002, p. 24).

De início, como dito anteriormente, houve uma lotação de 161,42% em 2019 nos presídios brasileiros. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, em relação ao segundo bimestre de 2021, houve um aumento de 190% na taxa de mortalidade nos presídios brasileiros por Covid-19. Sequer se fala em decorrência de outras doenças ou rebeliões, muito corriqueiras nos presídios nos últimos anos (CNJ, 2021).

4.2 A Função Ressocializadora da Pena

A ressocialização é um dos objetivos mais importantes da pena, buscando, no período que o indivíduo que cometera crimes esteja sob a tutela estatal, que este tenha, além de tempo, atividades, infraestrutura, educação, entre outros meios para que venha a refletir sobre suas ações, bem como reabilitar-se para sua reinserção na sociedade, recuperado e pronto para viver nos moldes da lei.

Parte-se da suposição de, por meio do tratamento penitenciário entendido como um conjunto de atividades dirigidas à reeducação e reinserção social dos apenados , o interno se converterá em uma pessoa respeitadora da lei penal. E, mais, por causa do tratamento, surgirão nele atitudes de respeito a si próprio e de responsabilidade individual e social em relação à sua família, ao próximo e à sociedade (BITENCOURT, 2011, p. 14).

O Sistema Penitenciário Brasileiro, da forma como se apresenta, torna de grande dificuldade a possibilidade de reabilitação do indivíduo encarcerado, uma vez que os presos estão em um ambiente extremamente hostil, preocupados em sobreviver e não ressocializar. De acordo com Foucault:

A prisão não pode deixar de fabricar delinquentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade, é de qualquer maneira não pensar o homem em sociedade; é criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa; queremos que a prisão eduque os detentos, mas um sistema de educação que se dirige ao homem pode ter razoavelmente como objetivo agir contra o desejo da natureza? A prisão fabrica também delinquentes impondo aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder. (1987, p. 65).

Torna-se impensável a ressocialização do indivíduo inserido em um ambiente pior ao que já se encontrava. Aumentar o tempo em que está inserido no cárcere não parece uma boa solução para esse problema. Ao contrário, gera um sentimento vingativo deste com o Estado, fazendo-o cometer possivelmente crimes mais gravosos que os que o levaram a ser preso.

A sociedade também se movimenta em prol de repelir o indivíduo criminoso dela, o que cria um ciclo interminável de insegurança social, bem como fomenta a associação de indivíduos para cometer crimes e, posteriormente, de organizações criminosas.

Dessa maneira, expõe Sá e Haug:

As promessas de prevenção e de retribuição também não se cumprem, uma vez que estamos em um contexto nacional de encarceramento sem precedentes, e mesmo assim as taxas de criminalidade não diminuem. Tomam-se de exemplo crimes que resultam em mortes violentas, que representam 14% das prisões no caso dos homens e 7% no caso das mulheres. De acordo com dados do IPEA, entre o período de 2013 a 2016 houve um aumento de 25% no número de mortes violentas intencionais, ao passo que, no mesmo período, houve uma expansão da população carcerária em 10%. (...) Portanto, percebe-se que o cárcere não evita crimes futuros, nem protege eventuais vítimas, mas existe a fim de garantir controle e enriquecimento sobre os corpos encarcerados. (2020, p. 13).

As penas privativas de liberdade são necessárias para a manutenção da ordem social, principalmente no tocante ao sentimento de segurança social, entretanto deve-se observar o cumprimento da pena com dignidade, em busca da reabilitação ao convívio social.

Por todo exposto, pode-se entender que tamanhas reformas ao ordenamento jurídico-penal promovidas pelo Pacote Anticrime visando o rigor legal ante a criminalidade podem não resolver o problema criminal brasileiro, haja vista a falta de preocupação com a ressocialização de fato do indivíduo encarcerado.

Dificilmente consegue-se convencer uma pessoa de que esta deverá buscar o convívio de bem em sociedade quando ela está em uma situação de constante risco quando encarcerada, sob a tutela estatal. Portanto, pode-se entender que essa lei é um meio de considerar indivíduos como inimigos da sociedade por meio da relativização de seus direitos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, a insegurança pública é sempre assunto de importantes debates políticos e jurídicos. O país há muito tempo sofre com a ação indivíduos que cometem crimes gravosos, que acuam a população e afrontam o Estado. Logo, há a necessidade da existência de mecanismos legais para o enfrentamento do crime organizado de maneira efetiva.

Com o advento do Pacote Anticrime (Lei 13.964/19), ocorreram algumas mudanças notáveis no ordenamento jurídico-penal brasileiro. Algumas dessas modificações podem ser entendidas como aplicação da Teoria do Direito Penal do Inimigo, uma vez que relativizam ou retiram direitos de indivíduos pelo fato de estes pertencerem a uma organização criminosa.

O tratamento diferenciado promovido por tais alterações busca o efetivo combate ao crime, entretanto, devem ser observados os limites legais, constitucionais, bem como as questões sociais para a efetiva aplicação do ordenamento jurídico penal.

Sobre o autor
Bruno Henrique Rolim de Azevedo Moreira

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário 7 de Setembro. Tecnólogo em Gestão de Serviços jurídicos e Notariais pela Universidade Internacional. Mestrando em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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