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Direito natural e positivismo jurídico.

Justiça, segurança e interpretação jurídica

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Notas

01 Uma observação paralela acerca da noção de liberdade: para começar, diremos que para ser plenamente indivíduo, para gozar de plena existência individual, separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a (plena) existência ab initium et ante saecula de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a (plena) existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a (plena) institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social tudo é possível : o melhor – se houver – e, desde logo, o pior. Tão é tudo possível na vida social, que até é possível nela a declaração de inexistência individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é a morte do "indivíduo" para todos os efeitos do trâmite social, sua desumanização total por via de redução do sujeito a mero instrumentum vocale , segundo a célebre formulação do direito romano ( ou "instrumento animado" , para usar a expressão de Aristóteles).Para existir como indivíduo separado e autônomo é , pois, e ao menos , necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não ser escravo, não ser tratado como um instrumento , senão como um fim em si mesmo - aliás , dito seja de passo, perde-se habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar aos demais como fins em si mesmos, não está dizendo nada radicalmente novo e "moderno", mas que está repetindo o mesmo que sustentaram todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles, ou seja: que aos livres não se lhes pode tratar como escravos , quer dizer, como instrumentos ( "vocais" ou "animados"). Pois bem, o liberalismo entende por liberdade somente a liberdade negativa, e esta é definida de tal maneira que uma pessoa é livre quando está livre de coerção, quer dizer, que não há ninguém nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos. De liberdade positiva se fala, em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e a oportunidade de atuar, ou seja, de que o Estado não só deve proteger senão também ajudar o indivíduo, de criar oportunidades para que o indivíduo se possa ajudar a si mesmo. Para citar um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro caso, um montanhês que cai em um abismo do qual é incapaz de sair, é livre neste sentido porque não há ninguém que o impeça de sair; já no caso de liberdade positiva, nosso montanhês precisamente não seria livre neste sentido, se não pode sair, ainda que ninguém o impeça – falta-lhe a capacidade e a oportunidade de atuar. O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é arbitrária, senão que precisamente está justificada pela proteção geral da liberdade dos cidadãos, assim que não pode implicar uma violação de minha liberdade mais que em um sentido muito primário. No mesmo sentido, seguramente não seríamos verdadeiros cidadãos se o direito consentisse a alienação de nossa liberdade, se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato civil privado, livremente subscrito – coacti volunt –, por meio do qual uma das partes se vendesse a outra na qualidade de escrava, participando do preço. Há direitos de todo ponto inalienáveis, como o direito a não ser "objeto" ou propriedade de outro. E são inalienáveis, porque não são direitos puramente instrumentais, senão direitos constitutivos do homem mesmo como âmbito de vontade soberana: direitos que habilitam publicamente a existência de in-divíduos dignos, separados, livres e autônomos. Certamente que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária da própria liberdade é uma interferência. Mas bem sabemos que não nos molestam as interferências como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se pode constatar nos exemplos aquí mencionados. Sem inalienabilidade legal da própria pessoa – para seguirmos no exemplo dado- , não há liberdade, nem há dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas. Trata-se, em síntese, de uma concepção robusta de liberdade, aqui entendida em seu sentido republicano-democrático, como "não interferência arbitrária", ou seja, como um aparato histórico-institucional que imponha ao Estado a obrigação de assegurar e de promover a liberdade necessária para que o indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que, em igual medida, garanta ao mesmo plena capacidade para resistir à interferência arbitrária não somente do próprio Estado, mas também de si mesmo e de todos os demais agentes sociais. Esta restrição legal ( como não interferência arbitrária e própria da liberdade republicana) característica de nossas democracias é um dos testemunhos mais patentes do fato de que a base do mundo político moderno foi sentada pela tradição republicana. Representam o núcleo duro republicano de nossas democracias, resistentes até agora (embora por vezes mitigadas e vilipendiadas de forma dissimulada) à "desconstrução" que o liberalismo operou na modernidade. Sobre liberdade republicana e sua diferença com relação a liberdade liberal: Pettit, 1999; Overero et alii, 2004; Skinner, 1996 , 1998; Sandel, 1982; e Atahualpa Fernandez, 2002 e 2006.

02 Note-se - oportunamente - que, em matéria de hermenêutica jurídica, não há no sistema jurídico norma que oriente sobre que princípio (ou valor) jurídico deve ser privilegiado e qual deve ser depreciado em um determinado caso concreto, ou seja, critérios normativos, absolutamente definidos em todo tempo e lugar, para fixar a dimensão de peso ou de importância entre princípios ou valores concorrentes ou conflitantes. Neste particular, temos nos manifestado no sentido de que, em caso de concorrência entre princípios, o "princípio da proporcionalidade" ou da "razoabilidade" (chama-se como quiser) é suficiente para operacionalizar um processo de cedência recíproca ou de concordância prática, no sentido de congraçar os princípios ou valores aparentemente contraditórios, desde que abdiquem da pretensão de serem interpretados de forma absoluta. Sem embargo, no caso de "conflito" ou "contradição" de princípios ou valores (não incomum e insolúvel mediante o processo de cedência recíproca ou de concordância prática), o critério do maximin que proponho parece ser o mais apto e eficaz para superar, sempre diante do caso concreto, a referida colisão, mediante a preferência ou prioridade, na efetivação, de certos princípios ou valores frente aos restantes. Dizendo de outro modo, o peso ou a importância do princípio ou valor a ser aplicado se decide pelo intérprete à luz do caso concreto mediante a aplicação do critério maximin, atendida a seguinte condição: a pessoa que, em relação com a repartição dos direitos e valores individuais próprios da validez da pretensão, está na posição mais desvantajosa, deve-se-lhe conceder o argumento prioritário decisivo, quando, de outorgando-se a prioridade à meta-ordem individual da pessoa que se encontra em melhor situação, ela venha a ser colocada em uma postura ainda mais desvantajosa. Isto significa, em linguagem mais simples e geral, um compromisso mais específico em relação aos interesses e liberdades dos menos favorecidos na sociedade – aliás, o aspecto mais importante da eqüidade – isto é, o de uma aversão espontânea e reflexiva à desigualdade e a efetiva proteção às minorias, aos mais desfavorecidos, aos direitos humanos e fundamentais, às liberdades fundamentais, etc. ( cfr. Atahualpa Fernandez. Argumentação jurídica e Hermenêutica, 2006).

03 É que as decisões jurídicas, dependendo do grau que assumam no ordenamento jurídico, constituem inegável instrumento de estabilidade e alteração da realidade social, de modo que o intérprete tem indisfarçável "responsabilidade social" com a decisão jurídica que profere. Esta "responsabilidade social" nada mais é do que um componente da prudência que deve iluminar todo o processo decisório, a fim de serem afastadas as decisões estapafúrdias, desconectadas do sistema jurídico e do contexto histórico-social em que são proferidas. E o juiz, mais do que qualquer outro intérprete do direito, tem elevada à máxima potência essa exigência de prudência com o teor das suas decisões. O direito, como instância da realidade, tem inegável função de promover a estabilidade social. Sob este prisma, a prognose não somente influi diretamente sobre os efeitos que a decisão jurídica provocará no futuro senão que também manifesta a prudência no ato de julgar, pois revela a preocupação do intérprete com as conseqüências futuras de uma decisão jurídica sobre a estabilidade do sistema jurídico e do corpo social. A pré-compreensão (dado passado) e a prognose (dado futuro) ocorrem rotineiramente no processo de interpretação jurídica. A "boa interpretação", a interpretação "satisfatória", entendida como a interpretação cujo componente de justiça não afeta a estabilidade social e a segurança jurídica, é aquela que considera de forma equilibrada estes dois aspectos no processo interpretativo .

04 Observe-se que desde suas primeiras formulações, a justiça sempre foi associada com a igualdade e , nessa mesma medida , foi evolucionando ao compasso desse princípio ilustrado. No Livro V da Ética a Nicómaco , por exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua doutrina da justiça ( que, ainda hoje, representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça ) situando a igualdade (proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo básico da justiça. Como é quase ocioso recordar, a igualdade não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais. O princípio ético-político da igualdade não pode apoiar-se portanto em nenhuma característica "material"; é mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma aspiração desenvolvida ao longo de nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade). A justificação de tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar biologicamente. A regra, portando, é do trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe, adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética – que inclui a distribuição aleatória de talentos e de habilidades – enfermedades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo básico da justiça ( e parece muito intuitivo que se trata de uma emoção moral arraigada em nossa arquitetura cognitiva mental : o mais canalha dos homens sempre reagirá ante um tratamento desigual no que se refere a sua pessoa), as reais e materiais desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. Dito de outro modo, justiça e igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas, sim, e muito particularmente, ausência de exploração de uns sobre outros. Daí que tratar como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar , senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições (Dworkin,1989).

05 Tal como assinala o evolucionista Richard Alexander (1994), a principal força hostil da natureza encontrada pelo ser humano é o outro ser humano. Os conflitos de interesses estão onipresentes e os esforços competitivos dos outros membros de nossa espécie se converteram no traço mais caracteristicamente marcante de nosso panorama evolutivo. Em virtude de que todos temos as mesmas necessidades, os outros membros de nossa própria espécie são nossos mais temíveis competidores no que se refere a vivenda, emprego, companheiro sexual, comida, roupa, etc. Sem embargo, ao mesmo tempo, são também nossa única fonte de assistência, amizade, ajuda, aprendizado, cuidado e proteção. Isto significa não somente que a qualidade de nossas relações sociais foi sempre vital para o bem estar material de nossa espécie, como a solução pacífica dos conflitos e a igualdade passaram a ser uma estratégia eficaz para evitar os altos custos sociais da competição e da desigualdade material. Essas considerações vão ao âmago mesmo dos dois tipos distintos de organização social encontrados entre os humanos e os primatas não hominídeos: o que se baseia no poder e domínio ("agônico") e o que se baseia em uma cooperação mais igualitária ("hedônico"). Devido a que as sociedades de classes tem sido predominante ao largo da história da humanidade, temos a tendência a considerar como norma humana as formas agônicas de organização social. Mas isso passa por alto da evidência de que durante nossa pré-história como caçadores-recoletores – a maior parte da existência humana – vivemos em grupos hedônicos. De fato, os antropólogos qualificaram de "firmemente" igualitárias as sociedades modernas de caçadores-recoletores. Em uma análise de mais de um centenar de informes antropológicos sobre vinte e quatro sociedades recentes de caçadores-recoletores estendidas ao largo do planeta, Erdal e Whiten (1996) chegaram à conclusão de que estas sociedades se caracterizavam por um "igualitarismo, cooperação e reparto a uma escala sem precedentes na evolução dos primatas..., de que não há hierarquia dominante entre os caçadores-recoletores..., e de que o igualitarismo é um universal intercultural que provém sem lugar a dúvidas da literatura etnográfica". Em resumo, o igualitarismo das sociedades de caçadores-recoletores – recentes em termos evolutivos –, que marcou as pautas de nossa existência passada enquanto seres humanos "anatomicamente modernos", deveria considerar-se como uma eficaz estratégia sócio-adaptativa que evitava os altos custos sociais da desigualdade material. Paralelamente a este processo evolucionou a justiça - e a igualdade proporcional aristotélica é uma manifestação explícita deste paralelismo – , cujo núcleo duro e indisponível reside na circunstância de que todos os seres humanos devem ser considerados como fins e nunca como meios, e que são merecedores de um trato e consideração igual em todos os vínculos sociais relacionais que se consideram constitutivos da autonomia e liberdade do indivíduo , quer dizer, que permitem a cada um viver o livre desenvolvimento de sua identidade e de seus projetos vitais em uma comunidade de homens livres e iguais unidos por um comum e fraterno sentimento de legitimidade e de submetimento ao direito, e em pleno e permanente exercício de sua cidadania. Neste particular, o descobrimento de que os Cebus apella (macaco prego) estão dispostos a intercambiar fichas por comida mas somente quando o trato é similar ao que se dá a outros indivíduos do grupo abre igualmente um amplo campo de possibilidades de estudo que pode relacionar-se à perfeição com as idéias acerca da origem e da evolução da igualdade entre os primatas. Tem, portanto, sentido ligar de forma prioritária a concepção de justiça às virtudes ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. A história recente das teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento cada vez mais refinado e sofisticado dessas virtudes e, muito particularmente, do princípio de igualdade. Dito de outro modo, estas três virtudes que configuram a noção de justiça somente são aspectos diferentes da mesma atitude humanista fundamental destinadas a garantir o respeito incondicional à dignidade humana. (Atahualpa Fernandez, 2005 e 2006).

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06 Segundo Brian Bix (1999), uma razão pela qual os teóricos do direito natural e os juristas positivistas parece falar de coisas diferentes é que eles têm distintos pontos de partida acerca do que é o direito, e do que a teoria deve tratar de fazer. Os positivistas (com a possível, ainda que importante exceção de Kelsen) tendem a concentrar-se no direito como uma classe de sistema social. Pelo contrário, os teóricos do direito natural se concentram no direito como uma classe de prática que subministra razões (Finnis, 1998). O direito dá razões para a ação, ao menos (muitos diriam) quando é consistente com os standard morais mais altos: os teóricos do direito natural aqui insistem nas razões morais para a ação que o direito pode (algumas vezes) oferecer, e não nas razões prudenciais que as sanções jurídicas (como todas as ameaças de força ou vergonha pública) pode implicar. Este aspecto do direito chama a atenção dos teóricos acerca da congruência de normas particulares, e sistemas jurídicos particulares, com critérios morais, para determinar quando o direito se incorpora à lista de nossas razões morais para a ação. Por conseguinte, conclui Bix, parece inevitável que uma análise do direito como uma atividade que subministra razões, uma análise de quando ou como os sistemas jurídicos criam novas razões morais para a ação , nos levará a uma direção diferente ao de um estudo do direito como uma classe particular de instituição social, e vice-versa.

07 Particularmente com relação ao positivismo jurídico, ao significar para o pensamento não apenas o repúdio dos jusnaturalismos teológico e racionalista – formas de dogmatismo acrítico-sistemático e ahistórico que havia sem dúvida de se superar –, mas igualmente por envolver ainda um agnoscitismo axiológico, uma deliberada recusa da intenção axiológica – que teria como resultado uma cegueira metodológica para o normativo, o próprio sacrifício intencional da dimensão normativa, a essencial dimensão axiológico-normativa do jurídico e, assim, uma total incompreensão dos problemas do fundamento e da validade da juridicidade enquanto tal –, esta ainda dominante linha de pensamento, confundindo direito com o "direito posto" (pelo Estado), a legalidade vigente com a legitimidade jurídica e sobrevalorizando não só o método algoritmo como também a segurança em detrimento do comunitário projeto axiológico-jurídico, foi ( e ainda é) responsável por graves aberrações que acabaram por atentar contra a natureza humana. Pode-se argumentar, é verdade, que esta situação é excepcional e não deve, por isto, ser tomada em consideração. Mas engana-se quem assim pondera. A vida social despenca do normal para o excepcional com mais facilidade do que se pensa e com maior rapidez do que seria imaginável. E a história (e as ciências da vida) está aí para demonstrar a necessidade de uma adequada concepção acerca da natureza humana para tratar com valores, normas e princípios jurídicos, e, muito especialmente, para fazer face ao emocional e ao imprevisto, advindos tanto do hemorrágico processo de elaboração de leis quanto do subjetivismo que afeta a tarefa de realização do direito e do ensandecido entorno sócio-cultural. Não resta dúvidas de que a sua atual e inegável desvinculação com relação às outras áreas de conhecimento , à realidade social e suas práticas tem gerado como consequência o reforço da crise de legitimação do próprio direito. Pode-se dizer, inclusive, que o direito vai anunciando um ponto crítico de que ele poderá sair subvertido ou resgatado. Ou conserva o isolamento teórico e o racionalismo formalizante que sempre o tem vindo a constituir , e dele não restará mais do que uma carcaça ressequida e fria de um dispositivo serventuário da autoridade estatal; ou ouve e faz seu o apelo de afirmação da natureza humana, de liberdade , igualdade e emancipação que o homem dirige ao mundo humano , e será também dele o futuro, pois neste caso o direito mais não será que o direito que ao homem compete cumprir e reconhecer a sua humanidade na "multidão dos homens", isto é, que permitrá a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum. É esta, pois, a crise interna do direito, aquela que não apenas no futuro , mas já hoje o atinge. Crise das mais graves que o jurídico alguma vez já sofreu: o direito a correr o risco de ser negado como direito; o pensamento jurídico a recusar o direito enquanto tal, como a sua intenção problemática e essencialmente humana, e a diluir-se por isso em intencionalidades ilegítimas e dogmáticas em que apaga a sua autonomia e, portanto, a si mesmo se anula. E neste momento em que o velho está morto ou morrendo e o novo ainda não pôde nascer ou impôr-se em sua integralidade, vem surgindo uma variedade de sintomas mórbitos , decorrentes, fundamentalmente, da quase completa desconexão do direito com o resto das ciências e o seu inconsequente e mais displicente descaso com as características (cognitivas , morais e emocionais) que procedem da admirável natureza humana (Atahualpa Fernandez, 2006) .

08 Como se dá com tantas idéias na ciência social, a centralidade da linguagem é levada a extremos no desconstrucionismo, no pós-modernismo e em outras doutrinas relativistas e analíticas. Os textos de oráculos como Derrida são crivados de aforismos como "Não é possível escapar da linguagem", "O texto é auto-referente", "Linguagem é poder" e "Não existe nada fora do texto". O prêmio para a afirmação mais extrema tem de ser para Roland Barthes, por sua declaração: "O homem não existe anteriormente à linguagem, seja como espécie, seja como indivíduo". Sofismas intelectuais. De fato, se bem pensado, a língua não poderia funcionar se não se assentasse sobre uma vasta infra-estrutura de conhecimento tácito sobre o mundo e sobre as intenções de outras pessoas, isto é, as palavras sempre são interpretadas no contexto de uma compreensão mais profunda das pessoas e suas relações. No nosso caso, por exemplo, a própria existência de normas ambíguas , nas quais uma série de palavras expressa pelo menos dois pensamentos, prova que pensamentos não são a mesma coisa que séries de palavras e que somos equipados com faculdades cognitivas complexas que nos mantêm em contato com a realidade. A linguagem, assim entendida, é a magnífica faculdade que usamos para transmitir pensamentos e informação de um cérebro para outro, e podemos cooptá-la de muitos modos para ajudar nossos pensamentos a fluir. Mas linguagem não é o mesmo que pensamento, nem a única coisa que separa os humanos dos outros animais, a base de toda cultura, a morada do ser onde reside o homem, uma prisão inescapável, um acordo obrigatório, os limites de nosso mundo ou o determinante do que é imaginável (Pinker, 2002). A idéia de que o pensamento é o mesmo que a linguagem constitui um bom exemplo da que poderia denominar-se uma estupidez convencional, ou seja, uma afirmação que se opõe ao mais elementar sentido comum e que, não obstante, todo mundo se crê porque recorda vagamente havê-la ouvido mencionar (Pinker, 1994). Mais recentemente se há visto as limitações insalváveis de afirmações do tipo que o "ser que pode ser compreendido é linguagem" e até mesmo a relação estabelecida nos textos aristotélicos entre a linguagem e o sentido do justo e do injusto: certas observações e experimentos indicam que já outros primatas reacionam como se tivessem algo parecido a um sentido de justiça, ainda que careçam de linguagem; sem linguagem pode haver compaixão, cooperação e quiçá algo assim como um sentido de justiça. Da mesma forma, nem toda cultura é linguística. Uma grande parte da cultura é independente da linguagem e se transmite por imitação não mediada por palavras: por exemplo, a cultura de diversos primatas que carecem de linguagem - como os chimpanzés ou os macacos (de Waal, 1993, 1996 e 2001) -, assim como a transmissão de determinados ofícios e a propagação das modas entre os humanos (Mosterín, 2006). Dito de outro modo, a linguagem é simplesmente o conduto através do qual as pessoas compartilham seus pensamentos e intenções, suas experiências de prazer e de sofrimento - enfim, a que permite o reparto (sócio-afetivo) da subjetividade -, e, com isso, adquirem o conhecimento, os costumes e os valores daqueles que as cercam e no contexto da realidade em que plasmam suas respectivas existências. Nas palavras do linguísta Derek Bickerton (1995): não é (a linguagem) somente um meio de comunicação senão uma maneira de organizar o mundo, e cuja finalidade é pôr pensamentos nas mentes das outras pessoas e extrair pensamentos das mentes das outras pessoas. E não somente isso. No que diz respeito propriamente a sua origem, por exemplo, Tomasello (1999) rechaça a idéia de que uma mutação tenha criado a linguagem. Para ele, a chave radica em que nos humanos evolucionou biologicamente uma nova maneira intencional de identificar-se e de entender-se com membros da mesma espécie. A continuação do processo, a partir desta única adaptação cognitiva que permite reconhecer aos outros como seres intencionais, teria tido um caráter inteiramente cultural e produziu o desenvolvimento de formas simbólicas de comunicação. Este desenvolvimento, sustenta Tomasello, transcorre a uma velocidade que nenhum processo de evolução biológica pode igualar.

09 Nas palavras de Brian Bix (1999): pode ocorrer que a dupla natureza do direito – como instituição social e como prática que subministra razões – faça impossível capturar a natureza do direito mediante um único enfoque, e que se necessite um enfoque mais "neutral" (como o do positivismo jurídico) para compreender, justificar e acentuar seu lado institucional, e um enfoque mais valorativo (como o das teorias do direito natural) para dar conta, viabilizar e operacionalizar seu lado de prática que confere (subministra) razões (morais para a ação).

10 E não podemos inferir nada acerca da natureza humana a partir de nossos meros ideais políticos ou de vagas elocubrações acadêmico- filosóficas. A investigação da natureza humana é uma questão tão fática como a medida do perihélio de Mercúrio. Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma natureza humana de um certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre esta e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da igual "dignidade" humana. Neste particular, parece oportuno observar que a própria idéia de dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser digno de algo. Ser digno de algo é merecer algo. Uma ação digna de aplauso é uma ação que merece o aplauso. Um amigo digno de confiança é um amigo que merece nossa confiança. Se alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o que seja) que outro, então merece que se registre seu record, quer dizer, é digno de figurar no Guinness World Records. O que não significa nada é a tão popular dignidade genérica, sem especificação alguma. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer nada. De todos modos, palavras como "dignidade", ainda que privada de conteúdo semântico, provocam secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives à retórica. De fato, resulta inclusive muito difícil aceitar a própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão, como se verá, consiste em que tal noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado por ele. Depois, Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão prática pura sobre a natureza da moralidade. Ora, o fundamento da moral e do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Daí que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal. Para uma apreciação acerca do possível conteúdo da "dignidade humana", ver Atahualpa Fernandez, 2002, 2005 e2006.

11 Note-se que reconhecer a natureza humana não somente é compatível com o progresso social e moral mas também pode ajudar a explicar o óbvio avanço ocorrido no decorrer de milênios. Costumes que foram comuns ao longo de toda a história e pré-história – escravidão, punição com mutilação, execução pela tortura, genocídio por conveniência, rixas intermináveis entre famílias, morte sumária de estranhos, estupro como despojos de guerra, infanticídio como forma de controle de natalidade e posse legal de mulheres – desapareceram em vastas porções do mundo. O filósofo Peter Singer (1981) mostrou que o progresso moral contínuo pode emergir de um senso moral fixo. Suponhamos que somos dotados de uma consciência que trata outras pessoas como alvos de solidariedade e nos inibe de explorá-las ou prejudicá-las. Suponhamos, também, que temos um mecanismo para avaliar se um ser vivo se classifica como pessoa. Pinker (2002), citando a Singer, sugere a seguinte explicação para o progresso moral: as pessoas expandiram constantemente a linha pontilhada mental que abrange as entidades consideradas dignas de consideração moral. O círculo foi sendo ampliado, da família e da aldeia para o clã, a tribo, o país, a raça e, mais recentemente (como na Declaração Universal dos Direitos Humanos), para toda a humanidade. Foi se afrouxando, da realeza, aristocracia e senhores de terra até abranger todos os homens. Cresceu, passando da inclusão apenas de homens à inclusão de mulheres, crianças e recém-nascidos. Avançou lentamente até abranger criminosos, prisioneiros de guerra, civis inimigos, os moribundos e os mentalmente deficientes. E as possibilidades do progresso moral não terminaram. Atualmente, há quem deseje ampliar o círculo para incluir os macacos antropóides , as criaturas de sangue quente e os animais com sistema nervoso central. Alguns querem incluir zigotos, blastócitos, fetos e as pessoas com morte cerebral. Outros ainda pretendem abranger espécies, ecossistemas ou todo o planeta. Essa mudança arrebatadora nas sensibilidades, a força propulsora na história moral de nossa espécie [...] poderia ter surgido de um mecanismo moral contendo um único botão ou cursor que ajustasse o tamanho do círculo abrangendo as entidades cujos interesses tratamos como comparáveis aos nossos. A expansão do círculo moral não tem que ser movida por algum impulso misterioso de bondade. As sociedades humanas, como os seres vivos, tornaram-se mais complexas e cooperativas com o passar do tempo, não por possuir uma mentalidade cívica inerente, mas porque se beneficiaram da cooperação mútua , da divisão do trabalho e desenvolveram modos de abafar conflitos entre os agentes que compõem o sistema. Dito de outro modo, isso ocorre porque os humanos beneficiam-se quando se agrupam e se especializam na busca de seus interesses comuns, contanto que resolvam os problemas da troca de informações, da falta de reciprocidade nos vínculos sociais relacionais e da punição dos trapaceiros. Jogos de soma não-zero (contrário de um jogo de soma zero, no qual o ganho de um jogador implica perda para o outro) surgem não somente da capacidade das pessoas de ajudar umas às outras mas de sua capacidade de abster-se de prejudicar uma às outras. Em muitas disputas, ambos os lados saem ganhando ao dividir o que foi poupado graças a não ter lutado. Isso fornece um incentivo para desenvolver mecanismos de resolução de conflitos, como o direito, medidas para salvar as aparências , restituição e retribuição reguladas e códigos legais. Franz de Waal afirmou que rudimentos de resolução de conflitos podem ser encontrados em muitas espécies primatas. As formas humanas são encontradas em todas as culturas, tão universais quanto os conflitos de interesses que elas se destinam a dissipar (pessoas de todas as culturas distinguem o certo do errado, têm um senso do que é justo, ajudam umas às outras, impõem direitos e obrigações, acreditam que os agravos têm de ser compensados e condenam o estupro, o assassinato e certos tipos de violência). Assim que há razões para crer que um senso moral evoluiu em nossa espécie em vez de precisar ser deduzida da estaca zero por cada um de nós depois de sairmos da lama. A evolução nos dotou de um senso moral, cuja esfera de aplicação nós expandimos no decorrer da história por meio da razão (entendendo a permutabilidade lógica entre nossos interesses e os das outras pessoas), do conhecimento (aprendendo as vantagens da cooperação no longo prazo ) e da compreensão ( passando por experiências que nos permitem sentir a dor de outras pessoas). Por conseguinte, parece razoável supor que o progresso moral e social pode ter avançado gradualmente, não a despeito de uma natureza humana fixa, mas graças a ela.(Pinker, 2002).

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Sobre os autores
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Cognición y Evolución Humana pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Teoría del Derecho pela Universidad de Barcelona- UB (Espanha). Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica) pelo Laboratório de Sistemática Humana- UIB (Espanha). Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB pelo Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog (Espanha). Membro do Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB) do Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa ; FERNANDEZ, Marly. Direito natural e positivismo jurídico.: Justiça, segurança e interpretação jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1390, 22 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9770. Acesso em: 26 abr. 2024.

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