O DNA constitucional da Lei de Combate ao Superendividamento

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A Lei do Superendividamento, ainda recente, tem por fim evitar o endividamento em massa, que retira de muitos o mínimo necessário para viver. Trata-se de norma de índole constitucional, concretizadora de direitos fundamentais

Trata-se de Legislação cujo objetivo é alterar o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, aperfeiçoando a disciplina do crédito e dispondo sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. 

Nos termos do art. 54-A, §1º, recentemente inserido no CDC, entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer o mínimo existencial, nos termos da regulamentação (BRASIL, 2021). Em outras palavras, objetiva-se combater as situações em que o consumidor, pelas suas dívidas, é privado do mínimo para viver.

Inicialmente, deve-se observar que dá ensejo a sua aplicação o endividamento de pessoas físicas, excluindo-se a pessoa jurídica (art. 54-A, caput). Embora não tão distante da razoabilidade, aqui se entende que esta disposição merece ressalvas, isto porque o art. 2º, do CDC (BRASIL, 1990), reconhece como consumidor tanto pessoas físicas como jurídicas, sendo, então, ambas potencialmente vulneráveis no mercado de consumo (art. 4, I, do CDC).

A Lei só poderá ser aplicada às dívidas contraídas de boa-fé. Nota-se que é outra limitação da aplicação do diploma, trazida por ele mesmo, mas que aqui se entende como louvável, pois prestigia a eticidade[2], princípio que baseou a elaboração do CC (BRASIL, 2002), norma geral sobre contratos e negócios jurídico-privados(TARTUCE, 2019).

Mesmo diante das referidas limitações, a Lei de Combate ao Superendividamento é abrangente, pois tem como hipótese de incidência quaisquer compromissos financeiros assumidos, decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada (BRASIL, 2021).

Em suma, a Lei 14.181/2021 traz consigo uma relevante função social, que vai além do aspecto negocial, contratual ou jurídico-financeiro. Trata-se de instrumento, que conforme se verá a seguir, tem DNA constitucional, concretizando uma série de direitos e princípios fundamentais.

Em seu art. 1º, a Lei 14.181/2021 (BRASIL, 2021) incluiu no art. 4º, do CDC, como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo o fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores e a prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social.

No mesmo art. 1º (BRASIL, 2021) também alterou a redação do art. 5º, do CDC, que versa sobre os instrumentos para a concretização da Política Nacional das Relações de Consumo, incluindo, dentre eles, a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural (inciso VI) e a instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento (inciso VII).

Outra novidade está no acréscimo dos incisos XI, XII e XIII, ao art. 6º, do CDC, que estabelece o rol de direitos básicos dos consumidores:

 

XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;

XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;

XIII - a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso (BRASIL, 1990).

 

Entende-se, aqui, que acima se encontram as mais salutares novidades legislativas, tendo em vista que se trata de disposições de elevada envergadura e valor constitucional.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXXII, prevê, dentre os direitos fundamentais que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (BRASIL, 1988). A leitura isolada deste dispositivo já nos dá a conclusão de que Lei do Superendividamento espelha a vontade do Poder Constituinte. Todavia, percebe-se a maior importância dos três incisos inseridos no art. 6º, do CDC, quando da leitura do art. 5º, §2º, da CF: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (BRASIL, 1988).

Se é direito fundamental a proteção ao consumidor (DEL MASSO, 2011), e se a própria Carta Magna reconhece que os direitos fundamentais não se esgotam naqueles que são previstos nela, conclui-se que o art. 6º, do CDC, que dispõe sobre direitos básicos do consumidor, está prevendo direitos fundamentais de ordem constitucional. Assim, a Lei do Superendividamento é norma ampliadora da proteção constitucional.

A ideia de unidade da Constituição[3] (BULOS, 2012) demanda uma interpretação sistemática dela, ou seja, lendo cada dispositivo a partir do seu todo. Trazendo ao debate os novos direitos do consumidor, reconhecidos no CDC, percebe-se a preocupação do Legislador com o valor da dignidade da pessoa humana, isto porque expressamente mandou que se preservasse o mínimo existencial.

Diante disso, conclui-se que a Lei do Superendividamento não apenas amplia o alcance do direito fundamental dos consumidores de serem protegido pelo Estado, mas reforça a garantia deles de preservação da dimensão humana, para que vivam com dignidade.

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Sob o ponto de vista negocial, há importantes alterações, pois com o advento da Lei 14.181/2021 o art. 51, do CDC, passou a considerar como cláusulas abusivas, ou seja, nulas de pleno direito aquelas que:

 

XVII - condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário;

XVIII - estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores (BRASIL, 2021).

 

Verifica-se a ampliação de outro direito fundamental, constitucionalmente previsto: a inafastabilidade do controle jurisdicional.

 

Considerações Finais

Conclui-se que a Lei do Superendividamento é de grande relevância social, não apenas porque traz uma série de mecanismos de melhora da condição econômica dos vulneráveis, mas porque reflete uma série de preceitos constitucionais, sobretudo, direitos e garantias fundamentais.

Depreende-se, claramente, que o legislador ordinário teceu a Lei 14.181/2021 sob a ótica da Constituição, preocupando-se, sobretudo, com a dignidade humana, ao garantir que ninguém, mesmo em razão de débitos contraídos em operações licitas e legitimas, poderá ser privado do mínimo necessário para viver.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

_____. Código de Defesa do Consumidor (1990). 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

_____. Código Civil (2002). 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

_____. Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, 1º jul. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14181.htm#art1. Acesso em: 6 mai. 2022.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

DEL MASSO, Fabiano. Curso de Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil volume único. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

Sobre o autor
João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: [email protected].

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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