Em atenção às inovações promovidas pela Lei Federal nº 14.133/2021 (NLLCA), este paper apresenta, sinteticamente, os dispositivos e instrumentos precípuos vigentes e, em sequência, estabelece um paralelo entre as modificações normativas e o combate às práticas de corrupção no sistema público, com protagonismo do Ministério Público enquanto órgão de controle externo, conjugando lições de direito administrativo e da atividade-fim ministerial, com primazia à eficiência das contratações públicas e responsabilidade dos gestores e agentes. Pois bem.
O artigo 37, XXI, da CRFB/88, preconiza que os contratos administrativos sejam precedidos de licitação pública (procedimento administrativo que culmina na celebração do contrato) e, por seu turno, o artigo 175 da Magna Carta prevê a obrigatoriedade de licitar, imposta ao ente estatal (regime de concessão e permissão), cujo intuito primordial é mitigar o risco de escolhas escusas dos gestores (atuação discriminatória ou tendente a favoritismos, com a prática de corrupção), desvirtuadas do interesse público, vetor máximo de todos os princípios, o que possibilita a concorrência de interessados em igualdade de condições e a escolha da proposta mais vantajosa.
Sobre a temática em apreço, Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua licitação como:
Licitação - em suma síntese - é um certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas. Estriba-se na ideia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que preencham os atributos e aptidões necessários ao bom cumprimento das obrigações que se propõem assumir. (MELLO, 2014, p. 536).
Em obediência ao dispositivo constitucional, em 1º de abril de 2021 e, em substituição à legislação antecedente, foi promulgada a Lei nº 14.133/2021, que delimita o âmbito de aplicação, os princípios aplicáveis à licitação, as modalidades e os tipos de licitação, bem como define os procedimentos correlatos, as hipóteses de dispensa e de inexigibilidade, e demais procedimentos auxiliares para as contratações públicas, os contratos administrativos e as infrações e sanções administrativas.
No período de abril de 2021 a abril de 2023 (dois anos), prazo de transição insculpido no artigo 191 da NLLCA, o gestor poderá optar pela licitação nos moldes da legislação anterior ou pelo novo regime, escolha expressa no edital de licitação, sendo vedada a cominação das duas legislações em único procedimento licitatório.
Oportuno salientar que, no regime atual pátrio, se encontram vigentes outras três leis gerais de licitações: Leis nº 8.666/93, 10.520/02 (Lei do Pregão) e 12.462/11 (Regime Diferenciado de Contratações - RDC). No que lhe concerne, as contratações das empresas estatais são reguladas pela Lei nº 13.303/16 (empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias), ressalvado o disposto no artigo 178 da NLLCA, que disciplinou os crimes em licitações e contratos administrativos.
O artigo 1º da Lei em comento assinala expressamente a obrigatoriedade de licitação para as contratações de todas as entidades que recebam dinheiro público (sujeição passiva): entes das Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange: I - os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa; II - os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública.
Outrossim, as disposições legais, no que couber e na ausência de norma específica, aplicam-se também aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração Pública, na forma estabelecida em regulamento do Poder Executivo Federal (artigo 184 da NLLCA).
Aliados aos princípios insertos no artigo 37, caput, o procedimento licitatório deve observância obrigatória aos princípios implícitos no ordenamento jurídico, aplicáveis à atuação do Estado (nominado Regime Jurídico Administrativo), bem como aos princípios específicos elencados no artigo 5º da Lei 14.133/2021: os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
Quanto aos tipos de licitação (critérios de julgamento), que não devem ser confundidos com as modalidades de licitação (estrutura procedimental, tais como a concorrência, concurso, leilão, pregão e diálogo competitivo), nos termos do artigo 33 e seguintes da NLLCA, são divididos em licitação de: menor preço, maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artístico, técnica e preço, maior retorno econômico e maior lance.
Ultimada a exposição das generalidades da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o tema de escolha deste paper fundamenta-se nos instrumentos disponíveis no arcabouço delineado pelo atual regime jurídico das contratações públicas, com enfoque na eficiência dos contratos, gestão de riscos, integridade e controle/fiscalização pelos órgãos responsáveis, em especial, o Ministério Público.
Segundo dispõe o artigo 11 da Lei 14.133/2021, O processo licitatório tem por objetivos: I - assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto; II - assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição; III - evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos; IV - incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
O parágrafo único do citado dispositivo verbera: A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.
Este dispositivo corresponde à anterior redação do artigo 3º da Lei nº 8.666/93 que definia os fins da existência do procedimento licitatório (o de assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, o tratamento isonômico e o incentivo à inovação e ao desenvolvimento nacional sustentável). A Lei nº 14.133/21 manteve os antigos objetivos e acrescentou dois novos: assegurar a justa competição e evitar contratações com sobrepreço, com preços manifestamente inexequíveis e por superfaturamento (PERNAMBUCO, 2021, p. 10-11).
Por conseguinte, ao tratar do assunto em questão, Matheus Carvalho, João Paulo Oliveira e Paulo Germano Rocha prelecionam que:
De fato, a licitação precisa atender aos interesses da Administração que não pode optar por firmar contratos menos vantajosos dada a indisponibilidade do interesse público. Nessa esteira, a lei acrescentou que a licitação tem por objetivo, também, evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos, o que não deixa de ser enxergado como a escolha da melhor proposta de contratação. [...] Assim, os quatro objetivos traçados na lei devem ser lidos de forma conjunta pelo poder público, com o intuito de firmar contratos válidos e que atendam ao interesse público. (2021, CARVALHO et al., p. 102-103)
Segundo o artigo 6º, LVII, da NLLCA, o superfaturamento é o dano provocado ao patrimônio da Administração (erário público), caracterizado, dentre outras situações, por: a) medição de quantidades superiores às efetivamente executadas ou fornecidas; b) deficiência na execução de obras e de serviços de engenharia que resulte em diminuição da sua qualidade, vida útil ou segurança; c) alterações no orçamento de obras e de serviços de engenharia que causem desequilíbrio econômico-financeiro do contrato em favor do contratado; d) outras alterações de cláusulas financeiras que gerem recebimentos contratuais antecipados, distorção do cronograma físico-financeiro, prorrogação injustificada do prazo contratual com custos adicionais para a Administração ou reajuste irregular de preços.
Lado outro, consoante se infere do artigo 6º, LVI, da NLLCA, o sobrepreço é o preço orçado para licitação ou contratado em valor expressamente superior aos preços referenciais de mercado, seja de apenas 1 (um) item, se a licitação ou a contratação for por preços unitários de serviço, seja do valor global do objeto, se a licitação ou a contratação for por tarefa, empreitada por preço global ou empregada integral, semi-integrada ou integrada. Atente-se que as definições legais retrocitadas ilustram a consolidação da jurisprudência assentada pelo Tribunal de Contas da União3">1.
Em que pese a ausência de previsão específica de sanções para contratações públicas efetuadas com sobrepreço ou por superfaturamento, em ambas as hipóteses o Ministério Público, enquanto órgão legítimo de controle externo das licitações, poderá investigar os efetivos danos ao erário público, a fim de proceder à persecução da responsabilidade dos agentes públicos e particulares envolvidos nas práticas ilícitas, com aferição de vantagens indevidas e patente lesão ao interesse público.
Noutro vértice, sob o prisma de controle das contratações, necessário consignar a exegese do artigo 169 da NLLCA, segundo o qual: As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:
I - primeira linha de defesa, integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade; II - segunda linha de defesa, integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade; III - terceira linha de defesa, integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas.
Destarte, as irregularidades de caráter formal serão saneadas e anotadas para a diminuição de riscos de sua repetição. Ademais, as medidas deverão priorizar a melhoria dos controles preventivos e a melhor capacitação dos agentes públicos. Essa capacitação evidentemente exigirá a participação do TCU, órgão responsável pelas auditorias e fiscalizações as quais costumeiramente detectam falhas dessa natureza (NIEBUHR et al., 2021, p. 252).
No tocante à constatação de irregularidades graves, causadoras de danos à Administração, as medidas que os integrantes das linhas de defesa são obrigados a adotar devem ser mais eficazes. Além das providências para evitar as irregularidades formais, deverá ser apurada a responsabilidade de infrações administrativas com a individualização das condutas e segregação das funções. Por fim, para resolutividade, devem representar ao Ministério Público para apuração dos ilícitos de sua competência.
Um derradeiro aspecto relevante é extraído da regra de interlocução entre a disciplina punitiva nas contratações e o regime de combate à corrupção instituído pela Lei nº 12.846/2013, uma vez que o artigo 159 da NLLCA prescreve que eventuais condutas corruptivas serão processadas e apreciadas no âmbito das instituições de combate à corrupção, dentre elas, o Ministério Público, revelando-se regra condizente com a disposição do § 3º do artigo 22 da LINDB (NIEBUHR et al., 2021, p. 241).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
______. Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm
______. Lei n° 14.133, de 1º de abril de 2021, Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm
CARVALHO, Matheus. Nova Lei de Licitações Comentada / Matheus Carvalho, João Paulo Oliveira, Paulo Germano Rocha Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
CONJUR. Opinião. Nova Lei de Licitações. Consolidação Jurisprudência do TCU. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-05/opiniao-lei-licitacoes-jurisprudencia-tcu
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos / Joel de Menezes Niebuhr et al. 2. ed. Curitiba: Zênite, 2021.
PERNAMBUCO. Ministério Público. Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21): cartilha perguntas e respostas / Coordenação, Lucila Varejão Dias Martins e Eliane Gaia Alencar; Redação e revisão técnica, Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público, Fundações e Terceiro Setor e Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça Criminal; [recurso eletrônico]. Recife: Procuradoria-Geral de Justiça, 2021. Disponível em: https://www.mppe.mp.br/mppe/attachments/article/14590/EXTERNO%20-%20Nova%20Lei%20de%20Licitac%CC%A7o%CC%83es%20%20e%20Contratos%20.docx%20(1).pdf
Notas
Neste sentido, o artigo disponível no link: https://www.conjur.com.br/2021-abr-05/opiniao-lei-licitacoes-jurisprudencia-tcu