Resumo: Este artigo tenta dar um panorama e a partir disto descrever a perigosa correspondência entre a liberdade de expressão em uma sociedade democrática de direito e discursos que se mostram autoritários, do passado e do presente, tendo como referencial teórico suas figuras correlatas na doutrina e sua estreita conexão com os direitos humanos e fundamentais, a hodierna e necessária filtragem constitucional e convencional dos direitos postulados, suas consequências para as democracias jovens e até mesmo as já consolidadas, bem como o comportamento e a conclusão do Supremo Tribunal Federal e da jurisprudência dos tribunais internacionais de direitos humanos diante de tais atos.
Palavras-chaves: Discursos. Direitos Humanos e fundamentais.
SUMÁRIO:INTRODUÇÃO. 1.1. A globalização e o processo de exclusão. 1.2. A constitucionalização simbólica e a erosão da consciência constitucional. 1.3. Hate speech, fighting words, liberdade de expressão, democracia militante e a jurisprudência do supremo tribunal federal. 1.4. Estado democrático de direito, faces do autoritarismo e lawfare. 1.5. A adoção de uma postura dubstancialista do supremo tribunal federal e o efeito backlash. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
Introdução
Com a salutar elevação da liberdade de expressão à categoria de metadireito, ou seja, base para que se verbalizem e se exerçam os demais direitos (a exemplo da dignidade da pessoa humana), da concepção de livre mercado de ideias (free market place of ideas) de John Milton, bem como de sociedade aberta dos intérpretes[1] de Jurgen Habermas (este defensor de uma democracia deliberativa) veio à tona uma faceta obscura e já vista em épocas passadas, o discurso autoritário e de dominação.
Dentro de um estudo minimamente crítico e sério, pretende-se analisar os influxos jurídicos sobre o tema em questão. Ainda, muito se discute quais os fatores e mecanismos levaram a tal escalada, seus atores e, principalmente, suas consequências em face dos direitos humanos, fundamentais e para democracia como um todo, bem como a forma de se combater tais práticas. É o que se pretende aqui analisar sem qualquer pretensão de esgotar o tema.
Feitas as considerações iniciais, passemos a analisar o tema proposto.
1.1. A Globalização e o Processo de Exclusão
A história da globalização traz consigo inúmeras conquistas civilizatórias como atualmente conhecemos e sem as quais boa parte da população entende ser inimaginável viver sem.
Todavia, traz, também, a exclusão. Logo, globalização e processo de exclusão são conceitos que definem duas realidades entrelaçadas, havendo uma realidade empiricamente comprovada de que vários extratos da população, sobretudo em países em desenvolvimento, mas não exclusivamente, tiveram estagnação no seu nível de desenvolvimento humano e social.
É bem verdade que referida exclusão dá-se não apenas por meio do processo de desenvolvimento do capitalismo, mas também do fenômeno da corrupção, por exemplo, impondo uma tentativa de domínio de uns em detrimento de outros. Há, dessa forma, a formação de verdadeiros guetos radicais e polarizados que não conversam ou dialogam entre si e o mais forte tenta se impor com base na força que se arroga legitimado a usá-la, apenas aceitando as medidas judiciais e legislativas que lhe convém em um verdadeiro garantismo de ocasião.
1.2. A Constitucionalização Simbólica e a Erosão da Consciência Constitucional
Somam-se ao caldo já apresentado, duas teorias bem interessantes: a constitucionalização simbólica e a erosão da consciência constitucional.
A constitucionalização simbólica[2], do professor Marcelo Neves, afigura-se como uma matéria de filosofia do direito que se incorpora na tônica do constitucionalismo moderno e propõe a análise crítica acerca da função instrumental da norma constitucional.
Nesse contexto, segundo o professor Neves, tendo como base a teoria sistémica do Direito de Niklas Luhmann, os grupos de interesse que disputam o poder e, consequentemente, o protagonismo para ter seu valores reverenciados em detrimento dos demais, em um pseudo direito das maiorias, utilizam-se de alguns marcos teóricos que, em apertada síntese, seriam: a legislação simbólica (como confirmação de valores sociais), a legislação-álibi e, por fim, a legislação como fórmula de compromisso dilatório.
O primeiro, visa justamente contemplar os valores e desejos de determinados grupos dominantes que pouco se preocupam com a eficácia de determinada lei aprovada, sendo mais importante a posição de vantagem obtida e de seus valores.
A segunda é brilhantemente explicada pelo professor quando aduz:
“O legislador, muitas vezes sob pressão direta do público, elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas. A essa atitude referiu-se Kindermann com a expressão “legislação-álibi”, através da qual o legislador procura se descarregar de pressões políticas ou apresentar o Estado como sensível às exigências e expectativas dos cidadãos[3].”
Por fim, o último marco seria o do compromisso dilatório, em que também há controvérsia entre grupos políticos-ideológicos que almejam dominar, quando, já antevendo que determinada lei não terá eficácia, aprova-a com o objetivo de se adiar a solução de temas que a referida lei se propõe a resolver.
O que se quer demonstrar aqui é que não apenas com facere os discursos autoritários se impõem atualmente, mas, também, como um não fazer e por meio de diversos instrumentos não perceptíveis à primeira vista que servem de manuseio para impor determinadas práticas antidemocráticas.
Em outro viés, a chamada erosão da consciência constitucional[4], de Karl Loewnstein, aponta para condutas que desrespeitam e desvalorizam a Constituição e seus preceitos.
Nesse diapasão, o desprezo pela Carta Magna ocorre muitas vezes quando há omissão em face de preceitos constitucionais, mormente os direitos fundamentais sociais.
Assim, como exemplo, podem-se citar os non facere do Poder Executivo na atual pandemia do Covid-19 em prover auxílio (material, psicológico, instrumental etc.) adequado e necessário ou mesmo sem prover auxílio algum e, até, incentivando ações contrárias às orientações das autoridades de saúde, quase sempre animadas com a finalidade de impor determinado discurso alheio a qualquer base fática e/ou científica.
1.3. Hate Speech, Fighting Words, Liberdade de Expressão, Democracia Militante e a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal já consolidou o entendimento de que a liberdade de expressão, albergada na CF/88, traduz-se como um verdadeiro metadireito, ou seja, tal como a dignidade da pessoal humana, é um direito que serve de base para que se expresse e se exerçam os demais direitos. Contudo, como quase todos os direitos, esse não é absoluto, pois é preciso deixar claro que não há direito ao abuso de direito. Como anotam Caio Paiva e Thimotie Heemann (Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos, pág.101, 3ª Ed., 2020), ao relatar o Caso
Olmedo Bustos e outros vs. Chile, popularmente conhecido como “A última tentação de
Cristo”, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos IDH, há uma imbricada conexão com o Caso Ellwanger (exemplo de racismo), em que o STF examinou os limites do direito à liberdade de expressão e a caracterização de hate speech (discurso de ódio). Segundo os referidos autores:
“Trata-se de um hard case envolvendo publicações antissemitas. Nesse caso o STF entendeu que a publicação da obra com expressões discriminatórias ao povo judeu caracterizava um verdadeiro discurso de ódio (hate speech), pois o seu conteúdo violaria o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade, além de materializar o delito de racismo (HC 82.424, rel. Min. Moreira Alves, rel. p/ acórdão min. Maurício Corrêa, Plenário, j. 17.09.2003). Logo, é possível concluir que, como todo direito fundamental, o direito à liberdade de expressão também tem limites, não sendo protegido por essa liberdade fundamental o uso de fighting words[5].”
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Os aurores citam, ainda, outros casos paradigmáticos decididos pelo Tribunal Constitucional como os Casos Gerald Thomas e Jonas Abib (racismo religioso).
Outrossim, no presente contexto, cabe trazer à baila o conhecido e atual conceito de democracia militante, de Karl Lowenstein, que em apertada síntese aduz que regimes democráticos devem proteger e recharçar políticos e partidos que se utilizam de instrumentos previstos constitucionalmente, portanto democráticos, porém com fins escusos para legitimar projetos totalitários e antidemocráticos de poder, autorizando, inclusive, o seu banimento do processo democrático.
Logo, nota-se que a jurisprudência internacional, tampouco a nacional, alberga e protege discursos de ódio em face de minorias e a consequente imposição de ideologias. Nessa toada, o pluralismo, alçado a fundamento da República Federativa do Brasil, conforme art. 3º, V, da CF/88, tem como limite material e formal implícito a impossibilidade de se subjugar, reduzir as minorias e os grupos vulneráveis com pretensos discursos em que se aleguem a liberdade de expressão como salvaguarda, pois esta não pode ser verdadeira teoria da Katchanga e servindo como bullying interpretativo.
Pelo exposto, resta evidente que, pela gramática dos direitos fundamentais, os cidadão têm não apenas direitos, mas também deveres. Temos um oceano a transpor.
Nesse diapasão, muito embora certas castas e sociedades ainda serem intolerantes a condições como sexo, raça, nacionalidade, opção sexual etc., a sociedade majoritária e os Estados não podem utilizar tais ciscunstâncias para incorrer em tratamentos discriminatórios, devendo enfrentar tais manifestações de intolerância, pois o Direito e os Estados devem ajudar no avanço sóciodemocrático já que do contrário corre-se o risco de se consolidar atos e práticas atentatórias dos direitos humanos e fundamentais.
Como arremate, a par do progressivo e salutar reconhecimento da jurisprudência pátria acerca da importância de um controle não apenas constitucional, mas também convencional do direito, seja este construtivo ou destrutivo[6], é importante que se tenha consciência que trata-se de um processo contínuo e ainda longe do ideal e que não deve ser usado apenas para se reforçar argumentos quando favoráveis a determinados interessses e pontos de vista, ou seja, quando lhe convém. Por fim, importante lembrar, conforme já aduzido pela Corte IDH no Caso Gelman vs. Uruguai, que compete não apenas ao Poder Judiciário o poder-dever de excercer o controle de convencionalidade, mas a toda autoridade pública[7].
1.4. Estado Democrático de Direito, Faces do Autoritarismo e Lawfare
Assim como a conhecida evolução histórica dos direitos humanos, o estado democrático de direito não é algo pleno e acabado. Ao revés, é resultado de um processo histórico, dificultoso e, por vezes, sangrento. Pode-se até afirmar que se insere em uma espécie de living constitution,expressão cunhada por David Strauss que prescreve que o texto constitucional e seus preceitos devem ser lidos de forma atual, contemporânea, não estanque com a época de sua promulgação e em constante mutação, exigindo, por isso, constante vigilância dos atores sociais.
Desta forma, muito embora o Brasil viva em constante instabilidade política por resquícios de um passado não totalmente esclarecido e de uma democracia não amadurecida, isso tem se agravado atualmente com arroubos e retóricas autoritárias, como as recentes manifestações por intervenção militar, e são em momentos como esse em qual se deveria ter mais respeito e observância dos preceitos constitucionais, convencionais e legais. Vislumbra-se, assim, a exemplo das fases da criminalização ou mesmo da prevenção, fases ou faces do autoritarismo em comento. Sem embargo de demais categorias, é facilmente perceptível: a) o recrudescimento penal b) a extinção de direitos c) o lawfare.
O endurecimento penal, seja na criminalização primária, seja na secundária ou mesmo na terciária, é uma realidade, como bem aponta Ulrich Beck em seus estudos sobre sociedade de risco e exaustivamente debatidos pela doutrina pátria. Parte-se da premissa em o recrudescimento penal, ao invés da substancial adoção de políticas públicas sérias e comprometidas, é o oásis seguro para o fim da violência que assola as cidades. O punitivismo exacerbado com a criação de um verdadeiro direito penal do inimigo, à la Gunter Jakobs, somando-se a uma criminalização da pobreza, conforme bem delineado por Loic Wacquant, é o pretexto perfeito para o avanço do Estado Policial e ao fim e ao cabo de discursos autoritários.
No tocante a extinção de direitos, a partir do ano de 2017, com a famigerada reforma trabalhista, instrumentalizada pela Lei 13.467/2017, passando pela ruidosa reforma da previdência, Emenda Constitucional 103/2019, dentre outras ainda em discussão e outras de menor envergadura, nota-se uma escalada na retirada de direitos conquistados a duras penas aumentando o fosso existente na sociedade, gerando um empobrecimento da classe média e de classes menos abastardas que nos últimos anos tinham sido alçadas a uma significativa melhora de vida, tratando-os como verdadeiros inimigos sociais e privilegiando o chamado “mercado”, o setor produtivo. Imperioso constatar que tais mudanças incutem basicamente o medo e o usam como ferramenta, causando um efeito resfriador (chiling effect) da liberdade de expressão, já que esta possui uma dupla dimensão, ou seja, a liberdade de se expressar (dimensão individual) e a liberdade de se disseminar informações (dimensão social). Pode se falar, inclusive, citando novamente Caio Paiva e Thimotie Heemann, (Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos, págs.68-69, 3ª Ed., 2020), ao comentarem o julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos IDH do Caso Loayza Tamayo vs. Peru, haver uma verdadeira violação ao dano ao projeto de vida, ou seja:
“Para a Corte, essa nova modalidade de dano não possui uma conotação patrimonial, decorrendo daí, portanto, a sua autonomia conceitual em relação aos danos material, emergente e moral. O projeto de vida, para a Corte IDH,
“(…) se associa ao conceito de realização pessoal, que por sua vez se sustenta nas opções que o sujeito tem para conduzir sua vida e alcançar o destino que se propõe. (…)[8]”
Cumpre notar que embora o contexto seja diferente, discursos autoritários também se consubstanciam em uma forma de violação dos direitos humanos, aptos, portanto, a enseja devida reparação na medida em que cerceiam o âmago dos direitos dos demais.
Por derradeiro, o chamado lawfare, é uma expressão de origem inglesa que em uma tradução livre significa a utilização do direito como arma de guerra. Interessa-nos aqui, sobretudo, a aplicação recentemente dada ao vocábulo lawfare como manipulação indevida dos aparelhos jurídicos do Estado para perseguição de adversários políticos e alcance de determinadas estratégias políticas, conforme facilmente nota-se hodiernamente. Diversos são os instrumentos utilizados para tal prática como a utilização ao bel prazer de institutos e casos jurídicos, fenômeno este conhecido como cherry-picking, ou seja, colher cerejas, que pode ser compreendido como o fenômeno pelo qual determinados atores políticos-jurídicos, logo intérpretes do direito, selecionam estrategicamente um país ou caso estrangeiro que apresenta alguma semelhança com um caso paradigma, com o objetivo de se reforçar o argumento comparativo apenas quando lhe convém e favorece em um verdadeiro uso à la carte do Direito, quase sempre com o intuito de perseguição. Tem-se, ainda, a desmoralização e desqualificação de adversários, mesmo quando estes já foram aliados, o cerceamento da imprensa, a ideia de incutir inimigos imaginários e de sentimentos de ódio buscando influenciar a opinião pública de forma negativa. Enfim, um poderoso conjunto de práticas de manejo e aparelhamento do direito muito em voga para fomentar práticas autoritárias. Uma verdadeira patologia jurídica a ser combatida.
1.5. A Adoção de uma Postura Substancialista do Supremo Tribunal Federal e o Efeito Backlash
Questão há muito discutida no constitucionalismo americano diz respeito a postura do tribunal constitucional em relação as questões que lhes apresentam, principalmente na acepção de democracia e a relação desta com a indubitabilidade da Constituição. Nesse caminhar, em face do grau de dirigismo que uma Constituição e seu Tribunal de interpretação devem adotar sobretudo em atenção a implementação de direitos econômicos, sociais e culturais, vislumbra-se o embate entre procedimentalismo e substancialismo.
Na visão do procedimentalismo, o papel de um Tribunal Constitucional deve ser de autocontenção, admitindo-se a sua atuação somente quando necessário para garantia dos pressupostos da democracia. Rejeita-se o ativismo, pois os membros de um tribunal não foram escolhidos pelo povo, logo não devem se imiscuir em questões como escolhas de membros de órgãos, políticas públicas etc. já que haveria uma verdadeira dificuldade contramajoritária.
Lado outro, tem-se o substancialismo que entende ser cabível a Corte Constitucional atuar não apenas quando estiverem em risco os pressupostos da democracia, mas também em questões sensíveis como, por exemplo, a escolha de um diretor geral da Polícia Federal ou de um reitor de universidade federal que não observe o princípio da impessoalidade, bem como a judicialização da saúde. Uma postura contramajoritária, pró ativismo e em obstáculo a vontade de maiorias ocasionais.
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal, muito calcado na doutrina do neoconstitucionalismo, tem se caracterizado por uma postura eminentemente substancialista e utilizando-se do conceito de razão pública, conforme John Rawls[9], para decidir questões melindrosas incluindo aí a vedação contra discursos autoritários e com potencial para causar uma ruptura institucional.
Como toda ação tem uma reação, emerge daí um novo fenômeno, o do efeito backlash, ou seja, a reação de forças políticas e/ou sociais em face de uma decisão do Supremo Tribunal Constitucional, rejeitando a mudança pretendida que vai de encontro aos interesses de uma parcela do poder, aduzindo estes que o Poder Judiciário, agentes públicos não eleitos pelo povo, exerceram o poder político, podando-o, ferindo a separação dos poderes, extrapolando suas funções, pois um tribunal constitucional não teria legitimidade para inovar o ordenamento jurídico ou invalidar decisões daqueles que foram escolhidos pelo povo. Desta feita, seria impossível o STF, ainda que sob a rubrica de ceifar discursos autoritários agir de tal modo.