Tribunal Penal Internacional para Ruanda

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6. O MOVIMENTO FEMINISTA E O CENÁRIO POLÍTICO E ECONÔMICO ATUAL

O combate ao patriarcado e suas implicações acompanham a história das mulheres desde os primórdios da humanidade. Esse modelo de sociedade, onde as pautas femininas são definidas, selecionadas e julgadas pelo gênero masculino é uma das bandeiras de luta das mulheres na atualidade. Em Ruanda, não foi diferente, o modelo patriarcal e hierarquizado também estruturou a sociedade ruandesa em sua construção histórica.

As ações pré e pós genocídio de 1994 produziram um efeito devastador na população feminina. A mulher, no geral, já era considerada um ser inferior política, econômica e socialmente, independentemente de sua etnia. E a violação aos direitos humanos já se fazia presente. De forma geral as mulheres já eram subordinadas aos homens, conforme afirma Bárbara Santolin Rodrigues:

A sociedade ruandesa, assim como muitas outras, era extremamente marcada pelo patriarcalismo e pela patrilinearidade, de modo que as mulheres são consideradas subordinadas aos homens, sejam eles pais, irmãos ou maridos, além de não possuírem acesso à política e à economia e nem direito a propriedade. (RODRIGUES, 2020, p. 164)

O conflito político e social ampliou absurdamente essas diferenças e as mulheres tutsis passaram a ser o alvo preferencial, pois nelas foi canalizado todo o ódio da etnia hutu construído através da história da população ruandesa. As mulheres tutsis carregavam uma imagem estereotipada, o pensamento masculino enxergava nelas o ideal de beleza e sedução capazes de dominar os homens, enquanto as mulheres hutus eram consideradas servis.

Agredir, violentar e eliminar as mulheres tutsis, virou a meta principal de muitos extremistas e apoiadores hutus como forma de garantir o seu predomínio social e político, destruindo todas as possibilidades de reorganização dos agredidos. Milhares morreram e as sobreviventes, foram profunda e moralmente marcadas pelas violências vistas e sofridas, a ponto de silenciarem diante às atrocidades, dificultando a punição dos criminosos:

As violações de mulheres, no Ruanda, serviram como arma de guerra para a limpeza étnica dos/as BaTutsi: possuir a mulher do inimigo adquire o significado simbólico de possessão e vitória sobre o mesmo, de destruição moral, política e étnica do inimigo. Atualmente a violência com base no gênero (VGB) é já́ considerada crime de guerra pelo Tribunal Internacional, mas torna-se complicado nestas situações obter depoimentos das vítimas e identificar os agressores. Muitas mulheres sofrem de estigma e discriminação pelo fato de terem sido violadas ou terem engravidado do inimigo, por isso não os denunciam (SILVA, 2011, p. 101).

As violações contra as mulheres persistiram durante o conflito sem nenhuma atitude efetiva da Sociedade Internacional para coibir os crimes, mesmo diante de um amplo e consolidado ordenamento jurídico internacional já aprovado pelos países como a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948. Nesse sentido, é importante mencionar os atos que o referido documento conceitua como genocídio:

Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional. étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; (BRASIL, 2022).

Houve resistência em definir o ocorrido em Ruanda como genocídio, mesmo diante das quase um milhão de vidas violentamente assassinadas. Foi fundamental a organização feminina para que tivessem voz e se fortalecessem para a reconstrução do país e retomada da vida, elas necessitaram de um empenho e envolvimento superior para que houvesse justiça às mulheres da etnia tutsi.

Rodrigues (2020) também destaca a pesquisa reproduzida abaixo, quase a totalidade das vítimas sobreviventes sofreu abusos sexuais graves:

Uma pesquisa feita pelo Ministério da Família e de Apoio a Mulheres em colaboração com a UNICEF, trazida também no texto de Binaifer Nowrojee, mostrou que a idade média das vítimas era de 20 anos. De 504 vítimas, 28% tinham menos de 18 anos; 43.75% possuíam entre 19 e 26 anos; 17.1% estavam entre 27 e 35 anos; e mulheres com mais de 45 anos também participam da porcentagem (NOWROJEE, 1996 apud RODRIGUES, 2020, p. 165).

Atualmente Ruanda avançou social e economicamente, e o país tem investido na tecnologia, produção agrícola, turismo e infraestrutura. Ocorreu redução da pobreza de 59% para 44,9%, e a economia cresce cerca de 8% ao ano. A renda per capita por cabeça triplicou em 20 anos. A taxa de alfabetização é de 51%. Paul Kagame é visto como homem responsável por frear o genocídio no país, mas ao mesmo tempo recebe críticas de organizações internacionais que o acusam de governar o país autoritariamente, visto estar à frente do governo por quase duas décadas, porém os hutus o acusam de não punir tutsis acusados de matar hutus, após o genocídio.

Se refazer e reconstruir o país, passou a ser uma meta feminina, assumir seu espaço e buscar sua voz gerou frutos em Ruanda, pois o país se destaca pelo alto percentual de mulheres na política. E indicadores sociais mostram que há um tratamento mais igual nas questões de gênero. Afirma-se também que pós massacre a população ruandesa contou com o percentual de 70% a mais de mulheres em relação aos homens, o que favoreceu a sua organização e crescimento. Isso se deve ao fato de que as mulheres sobreviventes tutsis e hutus precisaram ocupar o papel masculino depois que muitos homens foram mortos ou fugiram do país.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após uma análise crítica da atuação da Sociedade de Estados perante o massacre ocorrido em Ruanda no ano de 1994 é possível afirmar que o conflito representou um verdadeiro fracasso dos Organismos Internacionais e das potências mundiais para conter as graves violações aos direitos humanos no país africano. Algumas ações tomadas pela Organização das Nações Unidas como o embargo de armas e materiais à Ruanda não funcionou porque países aliados ao regime de maioria hutu e até mesmo organizações internacionais privadas como o banco francês Paribas contribuíram para a venda e o fornecimento de armamentos em plena vigência da resolução imposta pela ONU.

Um triste evento na história da humanidade, marcado principalmente pela inércia e desinteresse daqueles que poderiam ter evitado ou interrompido o conflito como o Conselho de Segurança da ONU, a França e os Estados Unidos, sendo o Tribunal Internacional para Ruanda considerado a única resposta efetiva da Sociedade Internacional para o sofrimento das vítimas.

Vale ressaltar que a Sociedade de Estado em geral não tratou a crescente e histórica rivalidade entre os hutus e tutsis com o devido entendimento e precauções que se faziam necessárias. Isso pode ser explicado pelo fato de Ruanda não possuir riquezas, recursos naturais, hard power, soft power ou até mesmo uma posição geográfica favorável que justificasse uma atuação mais contundente dos Organismos Internacionais. Soma-se a isso as experiências negativas dos Estados Unidos na Somália no qual os governantes receberam forte crítica da opinião pública norte-americana quanto aos elevados curtos das missões de paz e perda de soldados.

As lideranças políticas e órgãos internacionais não consideraram urgente a necessidade do envio de mais soldados para reforçar a atuação da UNAMIR ou mesmo agir de forma direta para intervir no conflito. O comportamento do Conselho de Segurança no caso do genocídio em Ruanda é considerado seletivo por alguns autores, pois no caso do conflito na Bósnia e Guerra do Golfo que aconteceram anos antes o mesmo órgão autorizou o uso da força e a intervenção militar.

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Diversos estudiosos do tema apontam que houve certa benevolência aos planejadores do extermínio, pois a jurisdição temporal da Corte de Ruanda não abrangeu os atos preparatórios anteriores a 1º de janeiro de 1994. E quanto aos réus julgados e considerados mentores e executores do massacre alguns receberam penas de prisão perpétua e outros foram sentenciados com penas que variam de 30 a 35 anos. De modo geral, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda cumpriu o seu papel, punindo e condenando os principais responsáveis pelos crimes cometidos no país africano. Entretanto, há diversas críticas a respeito do seu funcionamento como demora no processamento dos réus, desproporcionalidade quanto à fixação da pena de alguns condenados e custos elevados para manutenção da Corte. Lado outro, é importante ressaltar a construção de uma vasta jurisprudência para os crimes de graves violações ao direito humanitário e a consequente evolução do Direito Penal Internacional no período.

Muito há de se fazer para que possa julgar os crimes sexuais cometidos durante o Genocídio de Ruanda, e enquanto as abordagens não se tornarem mais inclusivas no sentido de incorporarem mais mulheres para atuarem a favor daquelas que são vítimas da desigualdade de gênero, não há como garantir que se atingiu o maior nível possível de reparação. Contudo, destaca-se na atualidade a gradativa recuperação de Ruanda no cenário político, econômico e social com redução das diferenças e respeito às individualidades.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Ana Cristina. Contos sobre Ruanda: uma análise crítica sobre o genocídio ruandês de 1994. Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Instituto de relações internacionais, 2005.

BRASIL. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952. Promulga a convenção para a prevenção e a repressão do crime de Genocídio, concluída em Paris, a 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Rio de Janeiro, Presidência da República, 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1952/D30822.html. Acesso em 16 mai. 2022.

HATZFEL, Jean. Uma temporada de facões: relatos do genocídio de Ruanda. São Paulo, Companhia das letras, 2005

MAIA, Daniele Lovatte. Hotel Ruanda: os dilemas das intervenções humanitárias e a busca dos direitos humanos através da arte. In: GALUPPO, Marcelo Campos; RUIZ, Ivan Aparecido (Org.). Direito, arte e literatura. Florianópolis: FUNJAB, p. 313-330. 2013.

MATTOS, Vívian Cantanhede Mattos. O Conflito de Ruanda. Uma breve análise da atuação da ONU. 2007. Monografia (Bacharelado em Relações Internacionais) - Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do UNICEUB. Brasília, 2007.

PAULA, Luiz Augusto Módolo de. Genocídio e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, 1ª ed. Curitiba: Appris, 2014.

RODRIGUES, Bárbara Santolin. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda e a proteção de mulheres vítimas do genocídio. Polifonia - Revista Internacional da Academia Paulista de Direito, São Paulo, n. 5, p. 159-173, 2020. Disponível em: https://apd.org.br/wp-content/uploads/2020/07/TEXTO-05.pdf. Acesso em 25 mai. 2020.

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Sobre os autores
Paloma Cristina da Costa Oliveira

Graduada no Curso de Direito - Faculdade Pitágoras Belo Horizonte - MG

Jaderson Lourenço

Acadêmico do curso de Direito pela Faculdade Mineira de Direito Campus Contagem PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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