À custa de repetições, têm se firmado nos tribunais posicionamentos – os quais são reiterados pela doutrina – afrontando direitos básicos constitucionalmente assegurados aos cidadãos, não somente na seara penal mas referentes também a diversos e variados temas. São exemplos disso, no campo criminal: a legitimação de condenações baseadas exclusivamente em provas colhidas sem a obediência ao contraditório e à ampla defesa, o reconhecimento da constitucionalidade dos diversos dispositivos hediondos da Lei nº 8.072/90 (posicionamento este recentemente alterado) e outros diplomas similares, a transferência do encargo de suportar as conseqüências das deficiências dos estabelecimentos prisionais do Estado para os detentos etc.
A causa desse estado de coisas tem relação com a conformação do ensino jurídico e de suas práticas. Um certo tradicionalismo paralisante impregna o jurista brasileiro desde os bancos acadêmicos até a sua atuação profissional. Trata-se de um terrível embotamento da capacidade crítica, que desincentiva a dialética e até mesmo a torna inviável, quando não ridicularizada. Um sintoma claro disso no ambiente acadêmico nacional é, sem dúvida, a posição secundária (se não meramente decorativa) emprestada (1) ao estudo da Filosofia do Direito. O jurista acostumou-se a ser apenas um técnico que atua de forma acrítica, até mesmo quando se traveste de cientista. Sua busca, incrivelmente, não é por perguntas, mas por respostas e respostas prontas que lhe possam ser ofertadas generosamente pelos mestres, pelos livros, pela jurisprudência dominante, pelos conhecimentos acumulados pela cultura jurídica tradicional etc. A efetiva produção de conhecimento, o questionamento sobre as informações recebidas, são simplesmente desprezados, de modo que o mundo jurídico reduz-se, com raras exceções, à reprodução e perpetuação de idéias alheias, com muito pouca contribuição pessoal.
O Direito, despido de uma abordagem filosófica que o ponha constantemente em xeque em seus fundamentos, torna-se uma atividade repetitiva, mecânica e divorciada da dinâmica e diversidade da vida. Os chamados "juristas" transformam-se em obtusos compiladores, incapazes de um ato criativo sequer. E o pior, o Direito e seus míopes (ou cegos) operadores passam a simplesmente reforçar e reproduzir uma realidade social opressora e injusta. Por isso é urgente recuperar o prestígio da filosofia no mundo jurídico, pois como bem destaca Nahur, "o método de desenvolvimento próprio da filosofia é o zetético, o da incessante investigação. Perguntar, fazer questionamentos é sempre preciso. Responder, com a certeza de algo definitivamente respondido, ao contrário, não é preciso, porque, o pensamento filosófico revigora-se ao retomar, a todo momento, novas e inevitáveis indagações"(2).
Essa necessidade premente já vem sendo percebida por alguns. Andrei Zenkner Schmidt, ao tratar da repetição automática dos precedentes jurisprudenciais que se cristalizam e passam a ser razões de decisões sem maiores indagações, chama a atenção para "uma doença crônica que impregna os tribunais nacionais" e, por que não dizer, o ambiente jurídico como um todo. Essa doença, lançando mão de uma irônica expressão cunhada pelo desembargador Amilton Bueno de Carvalho, poderia ser denominada de "teletubismo jurídico". Segundo Schmidt, "trata-se de um transtorno de personalidade argumentativa neutra que, em termos semelhantes àqueles ETs. Gordinhos do programa infantil, leva o doente ao método do de — novo — dedutivo"(3).
Decidir das mesmas formas, pensar as mesmas coisas, com base em retóricos "argumentos de autoridade"(4), é sintoma de ambiente impróprio à liberdade científica e propício à estagnação e à opressão. Como alertam Perelman e Olbrechts-Tyteca:
"O argumento de autoridade é o modo de raciocínio retórico que foi mais intensamente atacado por ter sido, nos meios hostis à livre pesquisa científica, o mais largamente utilizado, e isso de uma maneira abusiva, peremptória, ou seja, concedendo-lhe um valor coercivo, como se as autoridades invocadas houvessem sido infalíveis"(5).
A ciência jurídica carece hoje, ainda mais que antes, de libertar-se da opressão de dogmas, reconhecendo a necessidade de contradição, de suscitação da dúvida, da divergência, do debate sadio, "para a consolidação de um pensamento sistemático adequado à complexidade"(6).
É necessário caminhar no sentido contrário da acomodação e não se deixar enredar pela escolha desesperada do personagem de Martin Page, Antoine, o qual tomou a sério a decisão de ser estúpido, proclamando: "Eu não quero ter força para ser eu, nem coragem nem cobiça de ter algo parecido com uma personalidade. Uma personalidade é um luxo que me custa muito caro. Quero ser um espectro banal. Estou sufocado pela minha liberdade de pensamento, por todos os meus conhecimentos, pela minha abominável consciência!"(7). Afinal, conforme conclui o próprio personagem literário, "a renúncia a uma verdadeira inteligência é o preço a pagar por ter certezas e é sempre uma reserva invisível no banco da nossa consciência"(8).
Notas
(1) Usa-se aqui a palavra "emprestada" com o fito de enfatizar o sentido de "favor", "liberalidade", "condescendência"...
(2) NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. "Como eu vejo a filosofia", artigo inédito, Lorena, 2005, p. 2.
(3) SCHMIDT, Andrei Zenkner. "Violência simbólica e precedentes jurisprudenciais", São Paulo: Boletim IBCCrim, nº 146, jan., 2005, pp. 16-17.
(4) Trata-se de argumentação retórica que "utiliza atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese". PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação, trad. Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 348.
(5) Ibid., p. 348.
(6) SCHMIDT, Andrei Zenkner. "Violência simbólica e precedentes jurisprudenciais", São Paulo: Boletim IBCCrim, nº 146, jan., 2005, p. 17.
(7) PAGE, Martin. Como me Tornei Estúpido, trad. Carlos Nougué, Rio de Janeiro: Rocco, 2005, pp. 25-26.
(8) Ibid., p. 62.