O INSTITUTO DA EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE APLICADA AOS CONTRATOS IMOBILIÁRIOS
RESUMO- O presente artigo científico, elaborado sob o formato de artigo original de abordagem qualitativa, tem objetivo de demonstrar a aplicação do instituto da excessiva onerosidade superveniente aos contratos imobiliários. Inicialmente se pretende delimitar o que a doutrina jurídica nacional entende pelo referido instituto, elencando ainda problemas e situações contratuais de conhecimento público e notório, especialmente por ordem da pandemia do COVID-19. A partir deste referencial teórico, se busca demonstrar através da análise de alguns precedentes jurisprudenciais a aplicação do referido instituto na resolução de litígios contratuais, tendo por objetivo a repercussão social que a respectiva lide pode provocar no ambiente externo, visando essencialmente o alcance do reequilíbrio contratual entre as partes. Por fim, busca-se apontar soluções, a partir da análise deste trabalho, a serem empregadas pelos agentes públicos e privados buscando a equidade e o equilíbrio nas relações contratuais firmadas no ambiente negocial.
PALAVRAS-CHAVE: Direito imobiliário. Excessiva onerosidade superveniente. Revisão Contratual. Direitos fundamentais. Cidadania.
INTRODUÇÃO
O Brasil atualmente experimenta um período de crescimento do número de litígios e discussões contratuais, especialmente no âmbito das relações imobiliárias, em função do avanço da pandemia do COVID-19.
Muito tem se discutido na sociedade, inclusive sendo noticiado por veículos midiáticos e jornalísticos, acerca de situações de desequilíbrio contratual provocado pela pandemia, seja em contratos de locação residencial, locação não residencial, como também em contratos de compra e venda de imóveis.
É fato público e notório que a pandemia provocada pelo coronavírus levou as famílias a ficarem reclusas em suas próprias casas, mas exatamente neste momento, por um dos paradoxos da vida, os cidadãos passaram a ter que discutir e até mesmo defender a sua própria condição de possuidores de seus respectivos imóveis.
Isto porque muitos locatários, em função da perda ou redução de suas respectivas rendas mensais, se viram na condição de inadimplentes de seus aluguéis, já que tiveram de escolher entre pagar o aluguel, ou comprar comida para suas próprias famílias. Por outro lado, os locadores destes mesmos imóveis, que muitas vezes também contavam com os rendimentos locatícios para compor seus respectivos orçamentos mensais, se recusavam a aceitar tal inadimplência.
Quando se passa a analisar a situação dos contratos de locação não residencial, também se observam quadros fáticos muito semelhantes, agravados ainda pelas ocasiões onde imóveis deixaram de ter utilidade em função de normas que determinavam o fechamento completo do comércio e de centros de serviço.
No que tange a contratos de compra e venda de imóveis em prestações, de igual maneira verifica-se hipóteses de inadimplência do comprador em função de sua respectiva perda de renda.
Em todas estas situações, por mais distintas que possam parecer em seus aspectos intrínsecos, constata-se uma semelhança em seu respectivo atributo extrínseco, qual seja a existência do instituto da excessiva onerosidade superveniente do contrato, provocada por este fator externo, caso fortuito e de força maior, qual seja a pandemia do coronavírus.
Deste modo, a aplicação do referido instituto, leva ao intérprete da lei e operador do direito à proceder ao reequilíbrio da relação contratual, seja por meio de transação, seja por meio da adoção da medida judicial cabível.
1. O INSTITUTO DA EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE ASPECTOS TEÓRICOS E LEGAIS.
A fim de se estabelecer um referencial teórico para a presente pesquisa, se faz necessário discorrer acerca do que seria este instituto da excesssia onerosidade superveniente, sob a ótica da doutrina civilista nacional, e ainda traçando alguns paralelos junto aos operadores do direito no cenário internacional, especialmente na aplicação do referido instituto à prática contratualista.
Entretanto, é bem verdade que não se pode discorrer acerca da excessiva onerosidade superveniente, sem ater-se ao que seria o princípio da autonomia da vontade das partes, tema tão caro e essencial ao cotidiano dos mais diversos contratos firmados rotineiramente na sociedade.
Um contrato nada mais é do que um pacto firmado entre duas ou mais partes, que por vontade própria decidem assumir obrigações entre si. Neste sentido, o princípio da autonomia da vontade das partes, estabelece que o contrato só pode ser válido quando houver uma disposição clara, expressa e inequívoca de que determinado indivíduo teve por objetivo agir no sentido de firmar determinado pacto.
E assim, havendo esta vontade expressa de contrair o pacto contratual, os contratantes devem cumprir aquilo com o que se comprometeram, sob pena de serem responsabilizados por seus respectivos e eventuais inadimplementos.
Contudo, em contratos de duração prolongada, como normalmente se verifica naqueles firmados no mercado imobiliário, a situação das partes e do próprio objeto do contrato pode ser alterada durante a execução do contrato. Ou seja, podem ocorrer fatos que modifiquem substancialmente a condição econômica/financeira das partes, tal como doenças, catástrofes climáticas, epidemias, desemprego, falência, guerras... ou ainda que repercutam no próprio objeto, como por exemplo um imóvel alugado que não pode mais ser usado por haver uma desapropriação, ou a compra e venda de gado bovino contaminado por um surto de febre aftosa, ou a comercialização de petróleo afetada por uma crise humanitária no oriente médio...
Em todas estas hipóteses onde se verifica que a condição original do contrato sofreu grave modificação, criando um ônus grave para uma das partes, o qual era impossível de ser previsto inicialmente, cabe a aplicação do instituto da excessiva onerosidade superveniente, levando os contratantes assim a revisitarem as cláusulas contratuais, buscando assim o reequilíbrio do mesmo, com o intuito que ninguém perca ou ganhe mais do que previsto inicialmente.
Neste momento, é fundamental destacar-se uma palavra-chave para a aplicação daquele instituto, que seria justamente a IMPREVISIBILIDADE. Sabe-se que todo o contrato e todo o negócio envolve um risco, e que o mesmo é assumido pelo contratantes por ocasião da assunção do pacto contratual.
De igual modo também é sabido que em um mundo capitalista, onde se observa o lucro como o objetivo das empresas, e dos mais diversos segmentos profissionais, é fundamental associar o risco à lucratividade de ada negócio jurídico, ao passo que certamente, quanto mais arriscada determinada empreitada, maior deverá ser também a margem de lucro que justifique a realização da mesma.
Por outro lado, é importante ressaltar que o investidor do mercado imobiliário, por essência, tem um perfil mais conservador, onde se busca a lucratividade a médio e longo prazo, demonstrando assim certa aversão à riscos desmedidos, que coloquem em posição de vulnerabilidade seu respectivo patrimônio, consequentemente criando-se uma barreira ao entendimento por este empreendedor acerca das imprevisões que seus respectivos negócios podem se submeter, e que possam ensejar eventuais revisões e rediscussões de cláusulas contratuais.
Por isso, desde já se mostra quão delicada e importante é a análise do referido instituto, em sua aplicabilidade ao mercado imobiliário.
Feita esta breve análise inicial, passa-se ao estudo do que prevê o código civil de 2002 acerca do instituto:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Percebe-se assim que o Legislador fez a opção de incluir tal possibilidade de extinção dos contratos entre as formas de Resolução contratual, notadamente porque se entende ser este um justo motivo para se por termo à um pacto que demonstra flagrante desequilíbrio.
Com o mencionado dispositivo, nasce para o contratante a possibilidade de se eximir do cumprimento de uma obrigação que se tornou desproporcional, sem qualquer tipo de penalidade a ser aplicada sobre si.
Neste mesmo sentido, segue o entendimento jurisprudencial consolidado do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema:
"Os requisitos para caracterização da onerosidade excessiva são: o contrato de execução continuada ou diferida, vantagem extrema de outra parte e acontecimento extraordinário e imprevisível, cabendo ao juiz, nas instâncias ordinárias, e diante do caso concreto, a averiguação da existência de prejuízo que exceda a álea normal do contrato, com a consequente resolução do contrato diante do reconhecimento de cláusulas abusivas e excessivamente onerosas para a prestação do devedor. O reexame dessa matéria na instância especial enseja a aplicação das Súmulas ns. 5 e 7 do STJ. (REsp 1034702/ES, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 15/04/2008, DJe 05/05/2008, REPDJe 19/05/2008)"
Percebe-se assim, que o instituto merece ser aplicado a fim de rever situações que causem extrema vantagem à uma das partes, e extrema desvantagem à outra, sendo necessária ainda a imprevisibilidade, e que a relação contratual seja de natureza continuada.
2. O INSTITUTO DA EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Após análise das considerações do capítulo anterior acerca da natureza do instituto, passa-se a analisar a aplicabilidade do mesmo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que frequentemente tem apreciado questões que discorrem efetivamente a correta utilização do mesmo, nos casos concretos.
Neste sentido, observa-se a ementa do primeiro julgado a ser analisado:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA. DÓLAR AMERICANO. MAXIDESVALORIZAÇÃO DO REAL. AQUISIÇÃO DE EQUIPAMENTO PARA ATIVIDADE PROFISSIONAL. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. TEORIAS DA IMPREVISÃO. TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA. TEORIA DA BASE OBJETIVA. INAPLICABILIDADE. (...) 3. A intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes das circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) e de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva), que comprometa o valor da prestação, demandando tutela jurisdicional específica. (...) 5. A teoria da base objetiva, que teria sido introduzida em nosso ordenamento pelo art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor - CDC, difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade de fato que determine oneração excessiva de um dos contratantes. Tem por pressuposto a premissa de que a celebração de um contrato ocorre mediante consideração de determinadas circunstâncias, as quais, se modificadas no curso da relação contratual, determinam, por sua vez, consequências diversas daquelas inicialmente estabelecidas, com repercussão direta no equilíbrio das obrigações pactuadas. Nesse contexto, a intervenção judicial se daria nos casos em que o contrato fosse atingido por fatos que comprometessem as circunstâncias intrínsecas à formulação do vínculo contratual, ou seja, sua base objetiva. 6. Em que pese sua relevante inovação, tal teoria, ao dispensar, em especial, o requisito de imprevisibilidade, foi acolhida em nosso ordenamento apenas para as relações de consumo, que demandam especial proteção. Não se admite a aplicação da teoria do diálogo das fontes para estender a todo direito das obrigações regra incidente apenas no microssistema do direito do consumidor, mormente com a finalidade de conferir amparo à revisão de contrato livremente pactuado com observância da cotação de moeda estrangeira. 7. Recurso especial não provido. (REsp 1321614/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 03/03/2015).
Observa-se que no julgamento acima, a Corte da cidadania entendeu que não é qualquer desequilíbrio contratual que tem o condão de suscitar a aplicabilidade do instituto em tela, mas se faz imperiosa a demonstração de forma objetiva, das mudanças ocorridas na relação contratual e negocial, ao longo do tempo.
Nota-se ainda que a corte neste julgado fez uma distinção muito interessante acerca da teoria da imprevisão, onde se fundamento o instituto da excessiva onerosidade superveniente, e a teoria da base objetiva, que se aplica estritamente às relações de consumo, onde embora haja excessiva onerosidade, ela não precisa ser imprevista, fugindo à toda a lógica contratual de autonomia da vontade das partes (pacta sunt servanta), e prestigiando a proteção especial à parte hipossuficiente, em análise, o consumidor.
Neste diapasão, analisa-se a ementa do próximo julgado, onde a Corte da Cidadania, de igual modo, prestigiou e assinalou de forma didática a aplicação do instituto em comento, desta vez já em matéria de direito imobiliário:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO HABITACIONAL POR ALEGADA DIMINUIÇÃO DA RENDA FAMILIAR - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO, INSURGÊNCIA DOS AUTORES.
1. Correta aplicação das súmulas 5 e 7 do STJ. A alteração da conclusão adotada pelo acórdão recorrido a respeito da inexistência de situação anômala que tenha onerado excessivamente o mútuo, demandaria novo exame do acervo fático-probatório dos autos e das cláusulas do contrato de financiamento, o que é vedado em sede de recurso especial.
2. A teoria da imprevisão - corolário dos princípios da boa-fé e da função social do contrato -, a qual autoriza a revisão das obrigações contratuais, apenas se configura quando há onerosidade excessiva decorrente da superveniência de um evento imprevisível, alterador da base econômica objetiva do contrato, hipótese inocorrente no caso.
3. A teoria da base objetiva difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade, no entanto, ambas as teorias demandam fato novo superveniente que seja extraordinário e afete diretamente a base objetiva do contrato, circunstâncias não verificadas nesta demanda. 4. Agravo interno desprovido. (AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1.514.093. Min. Rel.: Marcos Buzzi. 4ª Turma do STJ. Julg.:25/10/2016).
No caso em tela, ao 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça novamente faz a distinção entre a teoria da imprevisão e a teoria da base objetiva, mas ressalta a relação da primeira teoria com o princípio da função social dos contratos.
Neste sentido, é fundamental ter tal princípio em mente, especialmente quando se analisam contratos imobiliários que versam sobre a moradia do consumidor, bem como quando tratam do tão aludido sonho da casa própria, ou até mesmo de locação residencial, eis que os efeitos do pacto contratual produzem impactos não apenas inter partes, bem como à sociedade e a coletividade.
3. CONCLUSÃO.
Por todo o exposto, percebe-se que o instituto da excessiva onerosidade superveniente, e por conseguinte a teoria da imprevisão, se mostram como ferramentas extremamente úteis na prática jurídica imobiliária, sendo imperioso o seu estudo por todos os operadores do direito que militam nesta área.
Isto porque se encontra pacificado na doutrina, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça , a aplicação do instituto, notadamente previsto no artigo 478 do Código Civil de 2002, com a finalidade de dirimir conflitos e controvérsias acerca de desequilíbrios em contratos de natureza continuada.
Além disso, em tempos tão imprevisíveis quanto os que se vivem recentemente, com os resquícios da pandemia do Covid-19, bem como com a eclosão da guerra na ucrânia, levando em consideração a economia globalizada, é fundamental que se esteja preparado para situações que demandem a aplicação da teoria da imprevisão. Sendo certo ainda, que em assuntos de natureza imobiliária, as questões podem se tornar extremamente sensíveis, por tratar-se de um bem tão vital para o núcleo familiar, que é a residência da mesma.
Assim, entende-se que o instituto da excessiva onerosidade superveniente deve ser aplicado aos contratos imobiliários, a fim de que os mesmos possam ser resolvidos, desde que observados os seguintes requisitos: (i) comprovação da onerosidade, (ii) Imprevisibilidade e (iii) relação contratual de execução continuada.
Deste modo, busca-se construir decisões judiciais e relações contratuais mais equilibradas e equânimes, e por conseguinte, uma sociedade mais justa e igual.
4. REFERÊNCIAS.
4.1 Doutrina.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo, Saraiva Educação, 2019.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 2017.
ATKINSON, Anthony B. Desigualdade. São Paulo: Leya, 2013.
Gonçalves, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado/ Marcus Vinicius Rios Gonçalves; coordenador: Pedro Lenza. 7. Ed. São Paulo: Saraiva,2016.
ULHOA COELHO, FABIO. In Manual de Direito Comercial, editora Saraiva, 8ª edição, 1997, pág. 113/114.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Saraiva, 21ª ed., Parte Geral, vol. 1, pág. 77).
4.2 Jurisprudência.
- AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1.514.093. Min. Rel.: Marcos Buzzi. 4ª Turma do STJ. Julg.:25/10/2016.
- REsp 1321614/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 03/03/2015.