Resumo: O presente artigo visa refletir sobre a política de cumprimento de pena privativa de liberdade no regime semiaberto hamonizado ao buscar as razões contemporâneas que fizeram sentido sua existência e como sua aplicação altera o cumprimento de pena no aludido regime. Pretende-se avaliar a monitoração eletrônica como alternativa a escassez de vagas em unidade penal adequada, além da análise da sua disciplina jurídica infralegal. Propõe-se a analisar jurisprudencias do Supremo Tribunal Federal, ressaltando o entendimento da Suprema Corte em relação à problemática e os parâmetros definidos no RE 641.320/RS, julgado que ganhou repercussão geral. Por fim, tratou-se da concessão e revogação de monitoração eletrônica para o regime semiaberto harmonizado, considerando a Súmula 56 do STF e a sua aplicação a depender de cada comarca ou juízo.
Palavras-chave: semiaberto harmonizado, monitoração eletrônica, jurisprudência.
1. INTRODUÇÃO
No Brasil foi adotado o sistema de progressão de pena onde, após o cumprimento de determinado período, e desde que alcançado alguns requisitos, o sentenciado terá o direito a progredir ao regime mais brando. O Supremo Tribunal Federal, através da Súmula Vinculante nº 56, baseado no RE nº 641.320, formalizou o entendimento de que manter o reeducando em regime mais gravoso do que aquele que ele tem direito caracteriza excesso na execução da pena, violando os princípios constitucionais e da legalidade.
Com a ineficiência estatal para corrigir o déficit de vagas no sistema prisional surge o regime semiaberto harmonizado. Trata-se de uma adaptação do poder Executivo e Judiciário onde o reeducando, quando não havendo vaga disponível em estabelecimentos de cumprimento de pena do regime semiaberto, é posto em liberdade com diversas restrições, sendo a utilização de tornozeleira eletrônica a mais comum.
A monitoração eletrônica, inserida no ordenamento jurídico penal brasileiro por meio das leis nº 12.258/2010 e 12.403/2011, até então destinada para uma pequena parcela da população carcerária, teve sua utilização expandida aos detentos com direito a progressão ao regime semiaberto após a corte suprema editar a Súmula Vinculante nº 56, em 2016.
Nesse cenário, torna-se relevante o estudo de como surgiu o regime semiaberto harmonizado e como se dá o cumprimento da pena privativa de liberdade no referido regime.
Para o avanço do conhecimento faz-se necessário a comunidade acadêmica investigar se, a luz da jurisprudência, é garantido a todos os apenados que tenham alcançado os requisitos objetivos e subjetivos progridam para o regime imediatamente mais brando, ainda que ocorra ausência de vagas no aludido regime.
Quanto ao objetivo do trabalho, a investigação se propõe a analisar fatores que já existem, descrevendo as razões contemporâneas que estimularam a harmonização do regime semiaberto, sua disciplina jurídica infralegal e as jurisprudências dos tribunais superiores.
O estudo se desenvolveu a partir de pesquisa bibliográfica, com o levantamento de referências teóricas produzidas por doutrinadores e pesquisadores da área e publicadas por meios impressos e eletrônicos, que se completou com a análise documental do RE 641.320/RS e da Súmula Vinculante 56 do STF.
Foi desenvolvida a pesquisa básica, tendo como o objetivo gerar conhecimento que seja útil para a ciência, sem necessariamente haver uma aplicação prática. Dentro deste contexto, este trabalho procura fazer uma contribuição no âmbito da execução penal, mais precisamente no cumprimento de pena privativa de liberdade no regime semiaberto harmonizado com monitoração eletrônica.
2. RAZÕES CONTEMPORÂNEAS DA HARMONIZAÇÃO DO REGIME SEMIABERTO: O DÉFICIT DE VAGAS COMO ESTOPIM
Nas últimas décadas houve um crescimento da população carcerária em todo mundo, resultado das fortes mudanças na utilização do cárcere como ferramenta de controle e gerenciamento do crime. Em relação ao sistema prisional brasileiro, dentre tantos problemas, o mais comum apresentado nos relatórios internos e internacionais é a superlotação das unidades penais. (ZACKSESKI; MACHADO; AZEVEDO, 2016, pág. 294 e 313).
As mazelas do sistema prisional brasileiro são de conhecimento de todos.
Como se sabe, o sistema prisional está falido. Não há mais quem defenda que a prisão é capaz de ressocializar um indivíduo. Pelo contrário, nas condições atuais, cada vez mais, é possível constatar em reportagens e pesquisas a revelação de que, ao ser presa, uma pessoa tem maior probabilidade de voltar a delinquir. (MINAGÉ, 2016, p. 253).
O Brasil é conhecido no cenário internacional como transgressor de regras definidas pelas Nações Unidas no que tange ao tratamento de pessoas privadas de liberdade. Vale salientar que a situação dos presídios brasileiros é denunciada por diversas organizações de Direitos Humanos, que relatam a falta de tomada de providências por parte do país. (ZACKSESKI; MACHADO; AZEVEDO, 2016, pág. 294).
Nesse contexto, a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 1º, inciso III, trás como aplicação o princípio da dignidade humana, que preconiza o cumprimento digno e justo da pena privativa de liberdade para o grupo vulnerável a que ela é aplicada. A constituição pátria destaca também, no Art. 5º, inciso XLIX, o respeito à integridade física e moral.
Acerca do tema, a Constituição Federal de 1988 também trás o princípio da humanidade nos incisos XLVII e XLIX do Art. 5º, mostrando que esses direitos também são aplicados na fase de execução penal, não permitindo penas cruéis. O Código Penal Brasileiro, em seu Art. 38, diz que O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. A Lei de Execução Penal, em seu Art. 40, Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios.
Entretanto, Guilherme Nucci (2016, pág. 952) nos diz que, na prática, o Estado não tem observado os dispositivos constitucionais que garantem o respeito à integridade física e moral dos presos, permitindo que uma parcela dos presídios se assemelhe com masmorras. O autor observa que o Estado tem sido pouco atencioso com o sistema penitenciário, sobretudo com a necessidade de humanização do cumprimento da pena privativa de liberdade.
Rogério Greco, também escreve sobre a incapacidade do Estado em oferecer condições mínimas para a ressocialização do preso:
Chegamos, portanto, a um ponto em que o sistema prisional deve ser revisto. Alternativas devem ser pensadas. A prisão, como inicialmente idealizada, não está cumprindo as suas funções. Não acrescenta absolutamente nada; pelo contrário, destrói, aniquila a personalidade daquele que, por azar, a conhece de perto. A prisão gera revolta, pois diferencia, nitidamente, ricos e pobres. (GRECO, 2011, pág. 136).
Outrossim, é possível notar que, diante das situações degradantes às quais as pessoas privadas de liberdade são submetidas, é possível evidenciar que esses indivíduos não sejam vistos como cidadãos, mas como pessoas sem dignidade. (PINESCHI; SOUSA, 2017).
Nessa toada, a inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar esse cenário, restou caracterizada a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais dos presos. O Plenário do STF reconheceu essa conjuntura como um verdadeiro estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, sendo que as penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios acabam sendo cruéis e desumanas (STF. Plenário. ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015) (online).
CUSTODIADO INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL SISTEMA PENITENCIÁRIO ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS FALHAS ESTRUTURAIS ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como estado de coisas inconstitucional. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL VERBAS CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.
(ADPF 347 MC, Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015).
Embora seja conhecido o cenário caótico do sistema penitenciário brasileiro, inclusive pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, os dirigentes e governantes não implementaram políticas públicas eficazes para transformar a atual conjuntura. Sendo assim, a decisão do STF torna-se valiosa para o desbloqueio institucional no que tange ao estado degradante que se encontra a população carcerária brasileira.
2.1. Déficit de vagas no regime semiaberto
Com o crescimento da população carcerária em todo mundo nas ultimas décadas, é natural que o déficit de vagas ocorra em estabelecimentos de todos os regimes de pena privativa de liberdade.
Além do mais, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 82.959/SP, em 2006, ligou o sistema progressivo de cumprimento da pena privativa de liberdade a individualização da pena, constante no art. 5º, inciso XLVI, da CF/88. Essa decisão pode ter provocado um aumento no número de pessoas cumprindo pena no regime semiaberto vez que, na ocasião, foi declarada a inconstitucionalidade do cumprimento integral da pena em regime fechado, como ocorria nos crimes hediondos e equiparados, onde era vedada à progressão de regime.
PENA. REGIME DE CUMPRIMENTO. PROGRESSÃO. RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semiaberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA. CRIMES HEDIONDOS. REGIME DE CUMPRIMENTO. PROGRESSÃO. ÓBICE. ART. 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90. INCONSTITUCIONALIDADE. EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82.959/SP. Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 23.02.06, DJ-49 de 13.03.06)
Desse modo, o cumprimento de pena integralmente no regime fechado passou a ser vedado e, diante da proteção constitucional ao sistema de progressão de regime, inúmeros condenados por crime hediondo ou equiparados passaram a ter direito a progressão para o regime menos gravoso.
Além disso, faz-se necessário observar os milhares de apenados que, diante do déficit de vagas no regime semiaberto, cumpriam reprimenda em regime diverso daquele fixado na sentença. Ao invés do recolhimento em Colônias Penais Agrícolas Industriais, os sentenciados em semiliberdade iniciavam o cumprimento da pena no regime fechado, mais gravoso, em decorrência da falta de vagas dos estabelecimentos adequados.
Segundo o DEPEN Departamento Penitenciário Nacional, o levantamento realizado em junho de 2016 indicou que o Brasil possuía um total de 65.580 vagas destinadas ao regime semiaberto, contudo, 111.176 pessoas cumpriam pena no referido regime, evidenciando uma taxa de ocupação de 170% (DEPEN, 2016, p. 23).
2.2. Monitoração Eletrônica como alternativa ao encarceramento em massa
O número de pessoas utilizando monitoração eletrônica no Brasil vem crescendo exponencialmente desde sua implantação. Segundo o DEPEN, o Brasil teve as primeiras pessoas monitoradas eletronicamente em 2004, finalizando o ano com 90 pessoas utilizando a tornozeleira eletrônica. Em dezembro de 2021 esse número saltou para 80.332 pessoas monitoradas.
O mecanismo utilizado para a monitoração eletrônica no sistema penal brasileiro é a tornozeleira. Este consiste em um equipamento fixado em tempo integral no indivíduo, enviando dados para uma central de informações, de modo que permita as autoridades responsáveis fiscalizem o cumprimento da pena a distância, sendo a pessoa vigiada constantemente.
Lima (2016) nos ensina que a vigilância eletrônica possui três finalidades, que são: I) manter a pessoa monitorada em local predeterminado; II) restringir a pessoa monitorada para que não frequente determinados locais ou se aproxime de determinados indivíduos; III) vigilância contínua sobre o agente, mesmo que não haja restrições em sua movimentação.
Do ponto de vista de Sheilla Neves (2019), a vigilância indireta através de monitoração eletrônica nas saídas temporárias e na prisão domiciliar é benéfica ao sentenciado uma vez que, além de viabilizar o processo de reinserção social através do afastamento gradativo do cárcere, ainda dá mais segurança aos magistrados ao concedê-las. Satisfaz, dessa forma, o princípio da humanização da pena.
Segundo LIMA, (2016), além de permitir que a pessoa monitorada possa preservar suas atividades habituais como trabalho e estudo, a monitoração eletrônica fornece ao indivíduo a possibilidade de reintegração ao passo que mantém a capacidade de vigilância do Estado sobre os acusados ou sentenciados.
Dessa forma, fez-se importante o fortalecimento das medidas alternativas à prisão já existentes bem como a criação de novas formas de cumprimento de pena. Nesse quadro, o monitoramento eletrônico surgiu e vem se revelando útil como alternativa ao encarceramento.
No entanto, no que se refere ao encarceramento em massa, a maior efetividade da monitoração eletrônica se deu com o surgimento do regime semiaberto harmonizado, visto que muitos apenados, já atingidos os requisitos objetivos e subjetivos para progressão de regime, permaneciam em regime mais gravoso aguardando vaga em estabelecimento que propiciasse a semiliberdade. Sendo assim, a prisão domiciliar vigiada afasta seu beneficiário do ambiente degradante encontrado em muitas unidades penais brasileiras.
3. DISCIPLINA JURÍDICA INFRALEGAL DO REGIME SEMIABERTO HARMONIZADO
A monitoração eletrônica ingressou no ordenamento jurídico brasileiro através do projeto nº 175/2007, que deu origem à Lei nº 12.258/2010, onde foi alterada a Lei de Execução Penal. Essas alterações possibilitaram, desde então, a utilização do dispositivo nas saídas temporárias para os presos do regime semiaberto e também nas hipóteses de prisão domiciliar. (PRUDENTE, 2019).
No que tange as alterações sofridas pela Lei de Execução Penal, foi alterado os Arts. 122 e 124, autorizando o juiz a determinar o monitoramento eletrônico nas saídas temporárias do regime semiaberto e nas hipóteses de prisão domiciliar. Incluiu, ainda, os Arts. 146-B, 146-C e 146-D, reforçando o instituto que permite a aplicação da monitoração eletrônica. (MARCÃO, 2012, pág. 260).
Mais adiante, em 2011, a Lei nº 12.403 incluiu o inciso IX no Art. 319 do Código de Processo Penal, concedendo a liberdade monitorada como medida cautelar. Dessa forma, a monitoração eletrônica que, até então era utilizada exclusivamente na execução penal, passou a ser prevista também como medida alternativa à prisão preventiva (NEVES, 2019).
Em 2016, quando do julgamento do RE 641.320/RS, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o Plenário do Supremo Tribunal Federal apontou a impossibilidade de manutenção dos sentenciados em regimes mais gravosos em razão da ausência de vagas.
A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no Recurso Extraordinário 641.320/RS (BRASIL, STF. Súmula Vinculante 56. DJE de 08.08.2016) (online).
Na oportunidade, acrescentou ainda que a falta de vagas nos estabelecimentos prisionais deveria ser adotada algumas medidas, destacando entre elas a liberdade monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas.
Dessa forma, a fim de resolver o problema da superlotação, o Supremo Tribunal passou a admitir a antecipação da saída de sentenciados que já se encontravam no regime semiaberto, abrindo vagas para aqueles recém-beneficiados pela progressão.
Conforme Murad (2019) explica, está previsto na legislação brasileira a aplicação da monitoração eletrônica para a saída temporária dos sentenciados que cumprem pena no regime semiaberto e também como medida cautelar diversa da prisão.
No entanto, quando não houver vagas ou estabelecimento adequado para o cumprimento da pena privativa de liberdade, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Súmula 56) admite-se o regime semiaberto harmonizado com monitoração eletrônica.
Por consequência, torna-se ampliado os casos em que se aplica a monitoração eletrônica. Através dessa adaptação promovida pelos poderes Judiciário e Executivo surge o regime semiaberto harmonizado com a monitoração eletrônica.
4. JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
A harmonização do regime semiaberto não se deu via poder Legislativo. Ocorre que, a atuação jurisprudencial diante da superlotação e da incapacidade do Estado em oferecer vagas necessárias para o cumprimento da pena em estabelecimento adequado, entendeu ser importante fixar a possibilidade do cumprimento do regime semiaberto de forma harmonizado a fim de evitar a manutenção da reprimenda mais gravosa aos apenados com direito ao regime mais brando.
4.1. O Recurso Extraordinário 641.320/RS como precedente para o fundamento da harmonização do regime semiaberto
A desatenção estatal na criação de novas vagas para o regime semiaberto permitiu que muitos apenados em cumprimento de pena privativa de liberdade no regime semiaberto permanecessem em estabelecimentos destinados a presos em regime fechado.
Nas colocações de Nucci encontra-se o seguinte esclarecimento:
Quanto à ausência de vagas no semiaberto, trata-se de responsabilidade estatal providenciar as referidas vagas em número suficiente para atender a demanda de presos em regime semiaberto, tanto os que o obtêm como regime inicial quanto os que recebem tal regime por progressão. A falta de vagas não pode acarretar prejuízo ao condenado, inserindo-o no regime fechado, enquanto aguarda a transferência ao semiaberto. Em realidade, se assim ocorrer, deve-se transferir o preso ao regime aberto, onde aguardará tal vaga e, quando surgir, verificar-se-á a necessidade da transferência. (NUCCI, 2018, p. 140)
No entanto, os fundamentos elencados pelo autor já estavam em uso pelos Tribunais Superiores. No HC 186.065/PR, o STJ entendeu que é admissível a prisão domiciliar nos casos em que o apenado encontra-se reprimenda mais gravosa que a fixada na sentença ou decisão que concedeu a progressão de regime, além das situações já previstas no Art. 117 da LEP. Pode ser observado no julgado:
HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PACIENTE CONDENADO A 2 ANOS E 6 MESES DE RECLUSÃO, EM REGIME INICIAL FECHADO, PELA PRÁTICA DE NARCOTRÁFICO. PROGRESSÃO PARA O REGIME SEMIABERTO. AUSÊNCIA DE VAGAS EM ESTABELECIMENTO ADEQUADO. EXCESSO DE EXECUÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. PRECEDENTES DO STJ. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM CONCEDIDA, NO ENTANTO, PARA PERMITIR AO PACIENTE PERMANECER NO REGIME ABERTO, ATÉ O SURGIMENTO DE VAGA EM ESTABELECIMENTO PENAL ADEQUADO. 1. Esta Corte Superior tem entendido pela concessão do benefício da prisão domiciliar ou albergue, a par daquelas hipóteses contidas no art. 117 da Lei de Execução Penal, aos condenados que vêm cumprindo pena em regime mais gravoso do que o estabelecido na sentença condenatória ou que foram promovidos ao regime intermediário, mas não encontram vaga em estabelecimento compatível. 2. Ordem concedida, em que pese o parecer ministerial em sentido contrário, para determinar que o paciente permaneça no regime aberto até o surgimento de vaga em estabelecimento adequado.
(HC 186065/PR, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, Dje 1/7/2011) (online).
Ainda nesse sentido, em 2014 o STJ julgou o Agravo Regimental interposto no curso do HC 28644/SP, entendendo como direito do condenado a cumprir sua pena de acordo com o provimento jurisdicional.
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME DEFERIDA NA ORIGEM. AUSÊNCIA DE VAGA EM ESTABELECIMENTO COMPATÍ VEL COM O REGIME PRISIONAL SEMIABERTO. CUMPRIMENTO DA PENA EM REGIME FECHADO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL DEMONSTRADO. DESVIO DE FINALIDADE DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. PRECEDENTES. 1. Em caso de falta de vagas em estabelecimento prisional adequado ao regime semiaberto, deve-se conceder ao apenado, em caráter excepcional, o cumprimento da pena em regime aberto ou, na falta de casa de albergado, em regime domiciliar, até o surgimento de vaga. 2. Se há princípios constitucionais violados - como aponta o Ministério Público Federal no regimental -, são todos eles favoráveis à pretensão estampada no writ. A negligência do Estado em não investir de modo suficiente no sistema prisional afeta negativamente as finalidades da sanção penal e se distancia do que dispõem a Constituição, os pactos internacionais dos quais somos signatários e a própria Lei de Execução Penal. O ônus de tamanha desídia não deve ser debitado ao condenado, que tem o direito líquido e certo de resgatar sua pena conforme o provimento jurisdicional. 3. Agravo regimental improvido.
(AgRg no HC 286440/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 24/4/2014, DJe 6/5/2014) (online)
Não obstante, o Ministério Público avaliou negativamente decisões como essas descritas acima. O órgão ministerial defendia que não cabia ao Poder Judiciário conceder essa benesse ao apenado, mesmo que o estado seja negligente ao oferecer vagas suficientes em ambientes adequados para o regime semiaberto, vez que não estaria em conformidade com o princípio da legalidade. Diante desse fundamento, o Ministério Público do Rio Grande do Sul interpôs o RE 641.320/RS, interessado em reverter o acórdão proferido pela Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que ao considerar a falta de vaga em estabelecimento penal adequado, concedeu prisão domiciliar a um preso condenado a cinco anos e quatro meses inicialmente no regime semiaberto.
No entanto, os fundamentos elencados pelo órgão ministerial foram rejeitados pela maioria dos ministros da Suprema Corte. Prevaleceu o entendimento de que o apenado não poderia aguardar, em regime mais gravoso, a abertura de vagas no estabelecimento penal adequado ao regime que o sentenciado se encontra.
Constitucional. 2. Direito Processual Penal. 3. Execução Penal. 4. Cumprimento de pena em regime menos gravoso, diante da impossibilidade de o Estado fornecer vagas para o cumprimento no regime originalmente estabelecido na condenação penal. 5. Violação dos artigos 1º, III, e 5º, II, XLVI e LXV, ambos da Constituição Federal. 6. Repercussão geral reconhecida.
(RE 641320 RG, Relator (a): Min. Gilmar Mendes, julgado em 16/06/2011, DJe-162 Divulg 23-08-2011 Public 24-08-2011 Ement Vol-02572-03 PP-00474). (online)
Além do mais, o ministro Gilmar Mendes, relator do recurso, ressaltou em seu relatório que é preciso avançar em propostas de medidas que, muito embora não sejam gravosas como o encarceramento, não estejam tão aquém do necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (art. 59 do CP). O ministro, diante da ausência de vagas nos estabelecimentos penais adequados, ainda propôs outras medidas, além do uso da monitoração eletrônica para os apenados que cumprem pena no regime semiaberto.
(...) havendo viabilidade, ao invés da prisão domiciliar, observe-se: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada do recorrido, enquanto em regime semiaberto; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao recorrido após progressão ao regime aberto.
(RE 641320 RG, Relator (a): Min. Gilmar Mendes, julgado em 16/06/2011, DJe-162 Divulg 23-08-2011 Public 24-08-2011 Ement Vol-02572-03 PP-00474). (online)
Embora essas medidas sejam diversas, são consideradas menos gravosas ao condenado. Vale ressaltar que a adesão do condenado é condição para a adoção da medida e, em seu cumprimento, a inobservância das regras disciplinares e não submissão à fiscalização dos órgãos de execução penal poderá resultar em sua manutenção no regime mais gravoso, ou a ele regredir.
Outrossim, essas medidas ocasionariam o abarrotamento de milhares de apenados na monitoração eletrônica. Portanto, prevendo isso, o ministro apresentou a necessidade da criação de centrais de monitoramento para a fiscalização da medida anunciada.
Ademais, houve também a preocupação, por parte do ministro relator, que a aplicação da monitoração eletrônica seja utilizada como impedimento ao apenado de exercer atividades que favoreçam sua ressocialização e sua manutenção econômica, deixando-o dependente de terceiros para satisfazer todas suas necessidades comida, vestuário, lazer.
Desse modo, foi proposta, além do uso da monitoração eletrônica, o fomento ao trabalho do apenado vez que, de acordo com o ministro, a execução da sentença em regime de prisão domiciliar é mais proveitosa se for acompanhada de trabalho, devendo se recolher em tempo integral em sua residência nos horários que não trabalha e nos dias de folga.
Segundo o ministro, não descarta a utilização da prisão domiciliar, pelo menos não até que sejam estruturadas as demais medidas propostas, entretanto, considera ser de difícil fiscalização, sendo ainda que, aplicada isoladamente, se torna pouco eficaz. No entanto, não deslumbra solução imediata possível, embora saiba que é necessário verificar o que fazer com os sentenciados em situação que esteja configurada a falta de vaga.
Ainda sobre as medidas, foi reiterado pelo ministro relator a não pretensão de esgotar as alternativas que podem ser adotadas pelas instâncias ordinárias ao se depararem com a falta de vagas nos regimes adequados ao cumprimento de pena. Os juízos de execuções penais poderão, considerando as peculiaridades de cada região e estabelecimento, apresentar novos rumos ao desenvolvimento dessas medidas, dando a eles a oportunidade de desenvolver soluções que minimizem a insuficiência da execução cumprimento da sentença em prisão domiciliar ou outra modalidade sem o rigor necessário, afirma o ministro.
Sendo assim, restou decidido ainda a possibilidade da saída antecipada do sentenciado que se encontra no regime semiaberto. Essa concessão se daria com a obrigatoriedade do uso do monitoramento eletrônico.
Posto isto, o voto do ministro relator foi acompanhado pela maioria dos membros da Suprema Corte. Dessa maneira, o RE 641.320/RS criou os critérios e alternativas para o juiz da execução penal.
4.2. Súmula 56 do STF
Ainda que a decisão oriunda do julgamento do RE 641.320/RS não teve, por si só, intuito de tratar de forma igualitária todos os apenados em situação igual, quase três meses depois serviu como precedente para a Súmula Vinculante 56, editada pelo STF. A referida Súmula trás em seu texto que a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS (BRASIL, 2016).
Vale ressaltar que, tamanha é a relevância da matéria, a Suprema Corte fixou o entendimento e o tornou vinculativo. Tal efeito vinculante evita decisões conflitantes e faz com que os Juízos da Execução Penal observem, de acordo com o caso concreto, os parâmetros estabelecidos no RE 641.320/RS.
Dessa forma, ao preencher os requisitos objetivos e subjetivos para a progressão de regime, o sentenciado não poderá aguardar abertura de vaga em regime mais gravoso aquele em que se encontra. Nesses termos, pode-se afirmar que o Supremo Tribunal Federal ampliou as hipóteses de concessão do monitoramento eletrônico, contribuindo para o surgimento do regime semiaberto harmonizado.