2.3 ATRIBUIÇÕES CONSTITUCIONAIS DA POLÍCIA MILITAR
As Polícias Militares têm mantido uma dupla função ao longo dos últimos tempos. Isso porque são consideradas órgãos de segurança pública dos estados federados e, ao mesmo tempo, são tratadas como forças auxiliares e reserva do exército brasileiro. Percebe-se que as atribuições da polícia militar estão elencadas no artigo 144 da Lei Maior, a qual lhe incumbe a missão constitucional de preservação da ordem pública, enquanto objeto da segurança pública, por meio da polícia ostensiva (BRASIL, 1988).
No que se refere à expressão polícia ostensiva, a doutrina aduz que se trata de uma expressão inovadora à luz da Carta Margna de 1988, sendo adotada pelo Legislador Constituinte por dois motivos: primeiramente, a fim de esclarecer a exclusividade constitucional e, em um segundo momento, para marcar a expansão da competência das policiais militares para aquém do policiamento ostensivo. Dessa maneira, pode-se asseverar que polícia ostensiva é um termo inovador, que foi inserido no texto constitucional, sendo determinado a exclusividade às policiais militares para atuarem como polícia ostensiva, o quê engloba as atividades de policiamento ostensivo, bem como também abarca o chamado ciclo completo da polícia administrativa (ordem, consentimento, fiscalização e sanção). Ou seja, as polícias militares detém a prerrogatiava de atuar como força de dissuasão exercendo ações preventivas. Não obstante, diante de ruptura da ordem pública, possuem a atribuição de intervir como força de choque exercendo ações repressivas. Por conseguinte, a expressão polícia ostensiva expande, em muito, a atuação das polícias militares estaduais, as quais passam a atuar em todas as fases do exercício do poder de polícia e não somente no policiamento preventivo (SOUZA, 2011).
Por outro lado, é concedida à polícia civil, sem cláusula de exclusividade, a atividade de polícia judiciária e de apuração de infrações penais. À vista disso, extrai-se que o titular do Poder Constituinte estabeleceu de forma expressa as atribuições das forças de segurança pública, reservando aos entes federados (estados) a coordenação e o controle dessas entidades. Tem-se ainda outras regulamentações, como regime de previdência e vencimentos, exceto as da polícia federal (HERRERO, 2019).
Da mesma maneira, é possível constar que os órgãos policiais, em especial as polícias militares, são fundados para assegurar a ordem social, através do poder de polícia exercido pelo Estado, existindo atribuições próprias e exclusivas, constitucionalmente estipuladas. Nesse sentido, para a doutrinadora Di Pietro, poder de Polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público (DI PIETRO, 2021, p. 123).
Além disso, no ordenamento jurídico brasileiro, encontra-se o conceito legal de poder de polícia previsto no Código Tributário Nacional:
Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (BRASIL, 1966).
Assim, analisando o conceito de poder de polícia acima delimitado, a doutrina faz a distinção entre a chamada polícia administrativa lato sensu e a polícia de segurança, a qual está classificada em polícia administrativa (preventiva, que não deve ser misturada com o conceito de poder de polícia lato sensu do Estado) e polícia judiciária (LENZA, 2021).
A partir da análise minuciosa das atribuições dos órgãos de segurança pública, a doutrina estuda o conceito de polícia administrativa e polícia judiciária, cada qual com atribuições e características específicas. Sobre a distinção entre ambas as atribuições policiais, versa Carvalho Filho:
Por pretender evitar a ocorrência de comportamentos nocivos à coletividade, reveste-se a Polícia Administrativa de caráter eminentemente preventivo: pretende a Administração que o dano social sequer chegue a consumar-se. Já a Polícia Judiciária tem natureza predominantemente repressiva, eis que se destina à responsabilização penal do indivíduo. Tal distinção, porém, não é absoluta, como têm observado os estudiosos. Na verdade, os agentes da Polícia Administrativa também agem repressivamente, quando, por exemplo, interditam um estabelecimento comercial ou apreendem bens obtidos por meios ilícitos. Por outro lado, os agentes de segurança têm a incumbência, frequentemente, de atuar de forma preventiva, para o fim de ser evitada a prática de delitos. (CARVALHO FILHO, 2017, p.87).
Partindo da mesma premissa e analisando a distinção entre polícia administrativa e polícia judiciária, Pedro Lenza assevera:
A atividade policial divide-se, então, em duas grandes áreas: administrativa (no sentido estrito indicado) e judiciária. A polícia administrativa (polícia preventiva, ou ostensiva) atua preventivamente, evitando que o crime aconteça. Já a polícia judiciária (polícia de investigação) atua repressivamente, depois de ocorrido o ilícito penal, exercendo atividades de apuração das infrações penais cometidas, bem como a indicação da autoria. Não lhe cabe a promoção da ação penal, atribuição essa privativa do Ministério Público nas ações penais públicas, na forma da lei (art. 129, I, CF/88). (LENZA, 2021).
Observa-se que, pela natureza preventiva da polícia administrativa, a mesma goza de maior discricionariedade, comparada à polícia judiciária, ocasionando relevante diferença entre as polícias militares e as polícias civis (PAIM, 2015).
Nessa perspectiva, almejando regular a forma de atuação das polícias militares, foi editado o Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, que reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, estabelecendo as estruturas organizacionais dessas instituições, com destaque aos artigos 3º e 4º, que definem as suas atribuições de atuação e outras diretrizes:
Art 1º - As Polícias Militares consideradas fôrças auxiliares, reserva do Exército, serão organizadas na conformidade dêste Decreto-lei.
[...]
Art. 3º - Instituídas para a manutenção da ordem pública e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, compete às Polícias Militares, no âmbito de suas respectivas jurisdições: (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)
a) executar com exclusividade ressalvas as missões peculiares das Forças Armadas, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pela autoridade competente, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos; (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)
[...]
Art. 4º - As Polícias Militares, integradas nas atividades de segurança pública dos Estados e Territórios e do Distrito Federal, para fins de emprego nas ações de manutenção da Ordem Pública, ficam sujeitas à vinculação, orientação, planejamento e controle operacional do órgão responsável pela Segurança Pública, sem prejuízo da subordinação administrativa ao respectivo Governador. (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983). (BRASIL, 1969).
Destarte, extrai-se que a polícia militar exerce a função de polícia administrativa, de maneira que é responsável pela atividade de polícia ostensiva e preventiva, bem como pela preservação da ordem pública nos diversos Estados-membros da Federação e no Distrito Federal. Constata-se que o legislador constituinte, ao demarcar as atribuições dos órgãos responsáveis pela segurança pública, em um primeiro momento, institui que a segurança pública é dever do Estado, bem como um direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Nesse viés, deduz-se que o assunto segurança pública é muito amplo e, ainda que a Carta Magna defina as instituições do Estado que detêm responsabilidade sobre matérias afetas à área da segurança pública, não há a exclusão da responsabilidade dos demais, seja Governo ou demais entes da sociedade.
Logo, diante de uma leitura mais atenta dos paradigmas constitucionais afetos especificamente às polícias militares, depreende-se que as atribuições elencadas pelo Constituinte Originário foram intencionalmente ampliadas em relação aos ordenamentos jurídicos anteriores. Não teria sentido ser mencionada nas atribuições da polícia rodoviária federal e da polícia ferroviária federal a designação patrulhamento ostensivo ao passo que para as designações da polícia militar foram retirados os termos policiamento e manutenção e incluídas as atribuições de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública. Ao analisar tais conceitos, Alexandro dos Santos Famoso conclui que:
É evidente que patrulhamento é apenas uma das atividades da polícia, logo confundir com o termo policiamento até seria aceitável face possível desconhecimento profissional dos legisladores sobre a matéria, no entanto, não há como confundir os conceitos de patrulhamento ou de policiamento com o conceito de polícia.
Afirmar que à polícia militar cabe apenas o exercício do policiamento é abrir mão das possibilidades do emprego nos mais variados segmentos da atividade policial o que, a cada dia, prejudica e assola ainda mais a comunidade. (FAMOSO, 2016, p.10).
Por conseguinte, tem-se que as funções a serem exercidas pelas polícias militares, de cunho preponderantemente administrativo, visam à preservação da ordem pública, ensejando uma ampla gama de atribuições a serem desenvolvidas para obtenção desse fim, conforme já analisado no tópico anterior ao tratar do conceito de ordem pública.
Ademais, no que se refere à competência de preservação da ordem pública, pondera-se que tal conceito é de fundamental importância para entender qual o papel que a polícia deve desempenhar na garantia dessa ordem. Nesse sentido, tem-se que o conceito de ordem pública possui uma amplitude que acarreta diversos afazeres que garantem sua implementação, motivo pelo qual a atuação da polícia militar torna-se, de igual maneira, dilatada e diversificada. Logo, analisando uma das principais funções do policial militar, qual seja, o policiamento ostensivo e, consequentemente, a atuação repressiva quando se depara com a situação de flagrante delito, questiona-se o atual modelo adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro em relação às situações de flagrância delitiva, no qual a polícia militar efetua a prisão em flagrante do indivíduo que está cometendo um crime (captura) e o conduz até a delegacia mais próxima para a lavratura (formalização) da prisão.
Assim, conforme analisar-se-á a seguir, a partir da compreensão do conceito e dos procedimentos da prisão em flagrante, as funções de policiamento e preservação da ordem pública, bem como o poder de polícia outorgado às polícias militares, permite-se uma interpretação que insere o oficial de polícia militar, em especial aquele com graduação em direito como pré-requisito para ingresso no cargo (mesmos requisitos exigidos para o delegado de polícia), no chamado conceito de autoridade com atribuição para lavratura do auto de prisão em flagrante.
3 DA PRISÃO
Os conceitos acerca do termo prisão, de forma ampla, são os mais diversos possíveis na doutrina, tendo em vista que cada autor define o modo com que as suas classificações façam sentido. Consoante o dicionário Priberam, a palavra prisão pode ser definida das seguintes maneiras:
substantivo feminino
1. Ato de prender.
2. Captura.
3. Local onde se cumpre uma pena de detenção.
4. Pena de detenção que um réu ou arguido tem de expiar na cadeia.
5. Estado de quem se acha preso.
6. [Figurado] Qualquer coisa que restringe a liberdade.
7. Laço, vínculo, cadeia.
8. Corda que prende uma cavalgadura.
9. Dificuldade no movimento.
10. Coisa que enleva a alma, que a atrai e cativa, que a prende e a desvia de toda outra qualquer influência.
11. Portugal: Artefato usado para prender o cabelo ou para prender a roupa que está a secar. (PRIBERAM, [s.d]b).
À luz do entendimento doutrinário acerca do conceito de prisão, Guilherme de Souza Nucci assevera que prisão consiste na privação da liberdade, tolhendo-se o direito de ir e vir, através do recolhimento da pessoa humana ao cárcere (NUCCI, 2020, p. 937). Na mesma linha de pensamento, Renato Brasileiro aborda o assunto prisão da seguinte forma:
A palavra prisão origina-se do latim prensione, que vem de prehensione (prehensio, onis), que significa prender. Nossa legislação não a utiliza de modo preciso. De fato, o termo prisão é encontrado indicando a pena privativa de liberdade (detenção, reclusão, prisão simples), a captura em decorrência de mandado judicial ou flagrante delito, ou, ainda, a custódia, consistente no recolhimento de alguém ao cárcere, e, por fim, o próprio estabelecimento em que o preso fica segregado (CF, art. 5º, inciso LXVI; CPP, art. 288, caput). (LIMA, 2020).
A Constituição Federal promulgada no ano de 1988 assegura, dentre outros, o dieito à liberdade como garantia fundamental da população, motivo pelo qual somente permite sua privação, ainda que temporariamente, nos casos especificados e enumerados em sua redação, proibindo medidas que prive a liberdade do cidadão de forma perpétua. Nesse sentido, a supressão da liberdade de locomoção ocorrerá por intermédio da prisão, a qual, nos termos da Lei Maior, somente poderá ocorrer por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, decorrrente de condenação criminal ou em decorrência de imposição de medida cautelar e, ainda, na hipótese de flagrante delito (BRASIL, 1988).
Depreende-se que a Carta Magna permite a privação de liberdade em outras situações que não demandam natureza penal, as quais não são objeto da presente monografia, motivo pelo qual dedica-se atenção nas modalidades relacionadas ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal.
Nesse sentido Iasley Almeida aduz:
Tem-se duas formas de prisão penal: a) prisão-pena: decorre de sentença penal condenatória transitada em julgado, caracterizada por seu caráter definitivo e pela disposição expressa do prazo inalterável de sua duração; b) prisão provisória ou processual: decorre de decisão judicial, e imposta durante a prersecução criminal (investigação policial ou processo criminal), mas antes do trânsito em julgado da condenação. (ALMEIDA, 2021, p.44)
O Código de Processo Penal previa várias modalidades de prisão provisória, tais como: prisão em flagrante; prisão preventiva, prisão temporária; prisão decorrente de sentença de pronúncia e prisão decorrente de condenação recorrível. Contudo, com a publicação da Lei nº 11.719/2008, as duas últimas formas de privação de liberdade foram revogadas. Por isso, atualmente, o magistrado somente poderá decretar a prisão preventiva e a prisão temporária. Posteriormente, a partir da vigência da Lei nº 12.403/2011, houve uma nova regulamentação das prisões sob a argumentação de se recepcionar os princípios constitucionais e a garantia de direitos. Destarte, somente é admitida prisão decorrente da condenação irrecorrível e as prisões de natureza cautelar ou provisória, quais sejam, prisão preventiva, prisão temporária e prisão em flagrante (ALMEIDA, 2021).
Ou seja, no ordenamento jurídico brasileiro, a doutrina nacional aponta a existência de dois gêneros de prisão: as prisões processuais, as quais são decretadas para garantir os efeitos do processo e a prisão para cumprimento de pena, decorrente de condenação criminal. Ainda, Renato Braisleiro indica a existência de uma terceira espécie de prisão, qual seja, a prisão extrapenal, a qual tem como subespécies a prisão civil e a prisão militar (LIMA, 2020).