2.1 CONCEITO DE POLÍCIA E SISTEMAS DE SEGURANÇA PÚBLICA
Primeiramente, para compreender melhor a matéria e alcançar o objetivo da presente monografia, necessário definir o conceito de polícia, a qual se trata de um instrumento da administração pública, designada a preservar e restabelecer a paz pública. Como será observado mais adiante, o principal fundamento da segurança pública é a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Sendo assim, antes de adentrar na análise das funções a serem executadas pelos órgãos de segurança pública, faz-se necessária a análise do real significado do termo polícia e de qual maneira a Constituição Federal convencionou o chamado sistema de segurança pública. Nessa sistemática, no que tange ao conceito de polícia, afere-se que:
Etimologicamente polícia advém do grego politeia, derivação de polis (cidade), que significa governo ou administração de uma cidade. De fato, a polícia enquanto instituição sempre esteve presente na vida em sociedade, surgindo no Ocidente com a criação das Cidades-Estados da Grécia antiga, assumindo um papel de conformadora social, no momento em que sua principal tarefa estaria intimamente relacionada à conservação do próprio Estado.
Mais modernamente, e na contemporaneidade, polícia é uma expressão que pode assumir múltiplas acepções a depender do ângulo que se pretende lidar. Polícia pode ser vista enquanto poder, função ou instituição. Por poder, se entende aquilo denominado como poder de polícia, que é inerente a todos os órgãos ou instituições que compõe a Administração Pública (por exemplo, o poder de polícia exercido pelo órgão de vigilância sanitária ao fiscalizar um restaurante). (SIENA, 2021).
Consoante se extrai do Dicionário Online Priberam, o termo Polícia apresenta os seguintes significados:
substantivo feminino
1. Ordem e regulamentos estabelecidos numa localidade ou nação.
2. Força pública encarregada de garantir a segurança e a ordem públicas e combater infrações à lei.
3. Civilização, cultura de costumes.
substantivo de dois gêneros
4. Indivíduo pertencente a uma corporação ou instituição que tem como função garantir a segurança e a ordem públicas e combater infrações à lei. (PRIBERAM, [s. d.]a).
Considerando os termos genéricos de polícia abordados pelo dicionário, é imperiosa a constatação da forma como José Cretella Júnior trata sobre o assunto, aduzindo:
Dum modo geral, polícia é termo genérico com que se designa a força organizada que protege a sociedade, livrando-a de toda vis inquietativa mas "a livre atividade dos particulares, na sociedade organizada, tem necessariamente limites, cujo traçado cabe à autoridade pública". (CRETELLA JÚNIOR, 1985).
No mesmo sentido, Rodrigo Foureaux, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, refere:
a expressão polícia pode ser definida como o poder atribuído ao estado para assegurar o cumprimento do ordenamento jurídico, ainda que tenha que condicionar e restringir direitos individuais, o uso e o gozo de bens, com o fim de se assegurar um interesse superior. (FOUREAUX, 2020).
Partindo de uma análise funcional do termo polícia, a doutrina tem se utilizado de um critério de controle social, trazendo duas categorias de polícias presentes no ordenamento jurídico. Para tanto, tem-se utilizado a função exercida pelas Polícias como critério para distingui-las (LEIRIA, 2009).
Nesse viés, é possível mencionar uma primeira função, chamada de polícia preventiva, a qual foi concebida para atuar antes da ocorrência da infração penal, ou seja, prevenindo ou evitando a prática do delito. Trata-se de uma função que se aperfeiçoa anteriormente às mais variadas formas de comportamentos delitivos. Por este motivo, a principal característica da polícia exercida de forma preventiva é a ostensividade, isto é, visível à população, podendo ser observada a sua presença por qualquer indivíduo onde se encontre os seus agentes. Por outro lado, existe a função de polícia repressiva/investigativa que, por sua vez, desenvolve um papel complementar em relação à polícia preventiva. Nesta função, a polícia desenvolve seus trabalhos após a ocorrência do crime, competindo-lhe a comprovação da existência do fato e a indicação do suspeito pela sua prática. No desempenho desta missão, é indicado aos policiais destas agências que atuem de maneira discreta, ou seja, não ostensiva, sob pena de prejudicar a busca pela informação (SIENA, 2021).
Fundamentando-se nessa dicotomia de conceitos de polícia (preventiva e repressiva), a Constituição Federal de 1988 estabelece o chamado sistema constitucional de segurança pública, o qual contempla a especialização dos órgãos, bem como a repartição de funções, dividindo a atuação estatal em dois momentos distintos: a prevenção e a repressão às infrações penais. Logo, foram estabelecidos órgãos de natureza policial, sendo fixado de forma expressa qual a função a ser exercida pelas instituições. Analisando o artigo 144 da Carta Magna, Márcio Alberto Gomes Silva aduz:
Fazem parte da polícia preventiva, voltada a coibir a prática de crimes pela sua presença ostensiva, suas viaturas caracterizadas, seus homens e mulheres fardados, suas rondas e pontos de bloqueio, as polícias militares dos Estados, a polícia ferroviária federal e a polícia rodoviária federal.
Caso a infração penal seja materializada, entra em cena a polícia repressiva (ou judiciária), com o objetivo de elucidar a prática supostamente delitiva e, caso constada a ocorrência de infração penal, coligir elementos probantes capazes de propiciar a deflagração de processo penal em face do autor do fato. Aqui temos as polícias civis dos Estados e a polícia federal. (SILVA, 2015).
Partindo desse pressuposto, a Lei Maior declara, em capítulo específico destinado à segurança pública, que o assunto se trata de um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, determinando que tais funções serão exercidas para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, sendo efetivada por intermédio do chamado poder de polícia, no seu aspecto especial de assegurar a segurança da população. Referida política de segurança será concretizada através da polícia administrativa e da polícia judiciária. Assim, tem-se que os órgãos indicados pela Carta Magna como os encarregados pela segurança pública são: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis e Polícias Militares, Corpos de Bombeiros Militares e Polícia Penal (MASSON, 2016).
No que se refere especificamente às polícias militares, consoante leitura do artigo 144, § 5º, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), depreende-se que lhes foram outorgadas as funções preponderantes de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, motivo pelo qual os policiais militares detêm o poder/dever de intervir na sociedade para a manutenção da ordem. Ademais, para o cumprimento do dever constitucional, restou disponibilizado pelo Poder Constituinte a possibilidade de fruição de mecanismos e instrumentos que permitam a intervenção adequada por parte das polícias militares para manutenção da ordem pública. Nesse sentido, a intervenção na hipótese de ocorrência de uma infração penal é um dever constitucional de preservação da ordem pública, fato este que permite, por si só, atuação dos militares estaduais para solucionar um caso de flagrante e custodiar o flagrado para deliberação do Poder Judiciário, conforme será estudado nos próximos capítulos.
Não se pode olvidar que os vocábulos polícia ostensiva e preservação da ordem pública são termos abrangentes. A chamada polícia ostensiva abarca as quatro fases do poder de polícia, quais sejam: ordem de polícia, consentimento de polícia, fiscalização de polícia e sanção de polícia. Já a preservação da ordem pública, compreende sua manutenção e a restauração, motivo pelo qual envolve uma questão de grande importância em qualquer sociedade. Diante desse cenário, faz-se necessária a discussão, análise e entendimento acerca das verdadeiras atribuições das polícias militares, haja vista a amplitude do termo ordem pública, envolvendo inclusive as atribuições exclusivas dos demais órgãos de segurança pública em caso de falência operacional dos mesmos, bem como a outorga constitucional de atribuições nas hipóteses em que não for atribuída a nenhum órgão policial e o ato que vise preservar a ordem pública (FERRIGO, 2013).
Diante dos termos e conceitos expostos, constata-se que a polícia tornou-se parte do Estado moderno, tendo por finalidade precípua manter a ordem interna dos países que a constituíram (MULLER NETO, 2008, p.15), tratando-se de instituição de suma importância para garantir o ordenamento constitucional de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Para tanto, a Constituição Federal, em capítulo específico, estabeleceu o chamado sistema de segurança pública, com o estabelecimento de diversos órgãos policiais, bem como especificando suas atribuições. De igual forma, restaram especificadas as atribuições das polícias militares, constatando-se que lhes incumbem as funções de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Destarte, necessária a compreensão do conceito de ordem pública, o qual está intrinsicamente ligado à função da polícia militar, bem como à possibilidade de lavratura do auto de prisão em flagrante.
2.2 ORDEM PÚBLICA E SUA CONCEITUALIDADE
Primeiramente, faz-se necessário alertar acerca da dificuldade que recai sobre o tema, constando-se uma grande dificuldade doutrinária em estabelecer de forma uníssona uma definição para o conceito de ordem pública. Inclusive, corroborando com a presente afirmativa, Luciana Silva aduz:
A garantia da ordem pública constitui uma cláusula aberta e, por carecer de uma melhor e mais precisa delimitação conceitual, vem sendo interpretada pelos Tribunais e pela doutrina de diversas formas. (SILVA, 2008).
Partindo do mesmo entendimento acerca da dificuldade de se conceituar a referida terminologia, Brunela Vieira de Vincenzi e César Rossi Machado afirmam:
Primeiramente, para demonstrar tal dificuldade, destacamos que há linha de entendimento doutrinário que tende a conceituar a Ordem Pública como a tradução do sentimento de toda uma nação (DOLINGER, 1997); e que há também outros pesquisadores, que entendem que a Ordem Pública está intrínseca no sistema jurídico de um Estado Soberano (GRECO FILHO, 1978), de modo que uma situação notadamente estranha à cultura jurídica, à Constituição, ao interesse social e aos direitos mais basilares de um povo seria contrária à Ordem Pública. (VINCENZI, MACHADO, 2009).
Como ponto convergente, pode-se constatar que ordem pública consiste em uma situação de tranquilidade e normalidade garantida pelo Estado, a qual deve (ou deveria) ser assegurada a todos os membros que compõem a sociedade, em obediência às normas jurídicas. Nesse sentido, Oscar Joseph de Plácido e Silva assevera que ordem pública é "a situação e o estado de legalidade normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto" (PLACIDO E SILVA, 1994, apud SILVA, 2008).
Na mesma linha de pensamendo, José Lauri Bueno de Jesus sustenta que:
Numa acepção sistêmica, a ordem pública é o pré-requisito para o funcionamento do sistema de convivências pública, sendo imprescindível a existência de um polissistema social, pois viver em sociedade importa, necessariamente, um conviver publicamente. Nessa convivência pública o homem, em qualquer relação que se encontre, deve gozar de sua liberdade, agindo sem ser perturbado, e participar de quaiserquer sistemas sociais e atividades que deseje, sem impedimentos e restrições. (JESUS, 2004).
Sendo assim, faz-se necessário traçar um conceito de ordem pública, tendo em vista que muitos doutrinadores entendem que a expressão ordem pública possui vaga e ampliada definição, de modo que seu conceito pode se diversificar no tempo e no espaço, sendo mais fácil a sua percepção na vida social. Logo, a ordem pública pode ser analisada como:
A ausência de desordem. Em verdade muitos respeitados juristas, ao tentarem esmiuçar o conceito, perderam-se, e confundiram-no com outros. Bernard acrescenta ainda que a ordem pública compõe-se de três aspectos tão somente, a saber, segurança pública, tranquilidade pública e salubridade pública. Explica Lazzarini que estes três aspectos têm por objeto a própria ordem pública, e a partir de tal colocação se pode fazer melhor interpretação do caput do art. 144 da Constituição Federal, entendendo-se que a relação colocada pelo jurista, de uma ser aspecto da outra, é a estipulada pela norma. (FRANCO, GENGHINI, [s. d.], grifo nosso).
Percebe-se, então, que a ordem pública se constitui pelas condições mínimas necessárias a uma convivência social, qual seja: segurança pública, salubridade pública e tranquilidade pública. Nessa perspectiva, Edson José de Souza entende que ordem pública é uma situação normal de legalidade e moralidade, ou seja, a ordem pública estará presente na ausência de desordem, de atos de violência de qualquer espécie (SOUZA, 2011). Consequentemente, constata-se consenso doutrinário no sentido de que a ordem pública se materializa por intermédio de um convívio social pacífico e harmônico, disciplinado pelo interesse público, pela estabilidade das instituições e pela obediência aos direitos individuais e coletivos.
Outrossim, depreende-se que o legislador se imiscuiu em alçar um conceito legislativo de ordem pública. Para tanto, editou-se o Decreto Federal nº 88.777/83, o qual é responsável por regulamentar as atividades das polícias militares, definindo o termo ordem pública da seguinte maneira:
Ordem Pública - Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum. (BRASIL, 1983).
Ademais, depreende-se que o referido diploma legislativo faz referência ao termo manutenção de ordem pública, asseverando que:
Manutenção da Ordem Pública - É o exercício dinâmico do poder de polícia, no campo da segurança pública, manifestado por atuações predominantemente ostensivas, visando a prevenir, dissuadir, coibir ou reprimir eventos que violem a ordem pública. (BRASIL, 1983).
Ainda no âmbito do assunto ordem pública, o referido Decreto faz menção ao termo perturbação da ordem pública:
Perturbação da Ordem - Abrange todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública que, por sua natureza, origem, amplitude e potencial possam vir a comprometer, na esfera estadual, o exercício dos poderes constituídos, o cumprimento das leis e a manutenção da ordem pública, ameaçando a população e propriedades públicas e privadas. (BRASIL, 1983).
Promulgada após a pubicação do Decreto nº 88.777/83 e, diferentemente do que preconizavam as Constituições pretéritas, a Constituição Federal de 1988, ao definir as atribuições das polícias militares estaduais, apresentou o termo preservação da ordem pública, em detrimento do termo manutenção da ordem pública. Nesse sentido, constata-se que a palavra preservação detém um significado mais amplo do que a palavra manutenção, isso porque está inserido dentro do sentido de preservação da ordem pública, a manutenção da ordem pública. Ou seja, a preservação da ordem pública, nada mais é do que a manutenção da ordem pública, com o acréscimo do chamado restabelecimento da ordem pública (FERRIGO, 2013).
Diante dos conceitos acima expostos, depreende-se que o desempenho das atribuições do oficial da polícia militar deve ser considerado abarcado pelo conceito de autoridade policial previsto no Código de Processo Penal, o qual dispõe em seu artigo 304, caput:
Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. (BRASIL, 1941, grifo nosso).
Isso porque, diante da missão precípua das polícias militares no que diz respeito às ações em âmbito repressivo de forma instantânea, tem-se que os casos que envolvem a prisão em flagrante delito são afetos ao conceito de perturbação à ordem pública. Ou seja, a prisão em flagrante (segregação física do flagrado captura) e a sua formalização é atribuição afeta aos oficiais de polícia militar, existindo atribuição concorrente entre estes e os delegados de polícia. Por conseguinte, passa-se a compreensão específica das atribuições das polícias militares para, posteriormente, analisar o conceito de prisão em flagrante e sua formalização, almejando extrair conclusões acerca da competência para a preservação da ordem pública, bem como diante da inexistência de cláusula de exclusividade aos delegados de polícia, havendo permissão para a lavratura do auto de prisão em flagrante pelos oficias de polícia militar.