A União Estável e a Expectativa de Efeitos do Contrato de Namoro no Contexto Brasileiro da Pandemia de Covid-19

22/07/2022 às 23:13
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Diego Lima do Nascimento[1]*

Introdução

O direito de família tutela a relações mais sensíveis da vida humana, dita normas proibitivas ou que preveem possibilidades de condutas que dizem respeito diretamente ao modo de socialização das pessoas com seus entes mais próximos: pais, filhos ou outros parentes, por exemplo. Nesse sentido, as entidades familiares dispõem sobre relações ainda mais sensíveis e íntimas, as uniões de afeto, que são feitas entre pessoas que escolhem se vincular se relacionar se vincular com a intenção de construírem suas próprias famílias.

Justamente por se tratar de relações tão pessoais e sensíveis, é também no âmbito das normas que regem as entidades familiares que se dão os conflitos mais desgastantes, que impactam de modo mais severo a vida privada de cada cidadão. Por isso, é onde o cidadão espera ver a menor incidência de normas que lhe gerem obrigações a contragosto. E no sentido de se desobrigarem, procurará e criará meios e dispositivos os mais diversos.

Diante do cenário da pandemia da Covid-19, todos os elementos mencionados anteriormente encontraram contexto e espaço excepcionais para se ampliarem e produzirem efeitos inesperados. A imprevisibilidade dessa nova realidade que se impôs exigiu que se tomassem decisões que interferiram em todas as dimensões da vida das pessoas, afetando-lhes individualmente e em suas relações sociais.

A Origem da União Estável como Entidade Familiar

O conceito de família diz respeito à forma de organização mais básica e mais íntima entre os indivíduos de uma sociedade e, não é nenhum exagero afirmar, se trata do verdadeiro núcleo das sociedades humanas. É por essa razão que a preservação da família é uma das funções mais importante de qualquer Estado, enquanto ente gestor das relações humanas, pois se pode dizer que a organização dos indivíduos e grupos familiares antecedem até mesmo a criação dos Estados modernos. Nesse sentido, importa entender as normas que visam dar suporte e regular a organização das pessoas nesses núcleos sociais essenciais esse é o objeto do direito das famílias (DIAS, 2021, p. 44), que define as entidades familiares no ordenamento jurídico.

Conforme os ensinamentos de ilustre civilista (LÔBO, 2018, passim), ao longo da história da civilização humana de que se tem registro, é possível perceber que houve, em diversos momentos, ao menos dois tipos possíveis de formação de entidade familiar  uma que se constituí por meio de um rito cerimonial formal; outra que se constituí pela constatação de uma situação fática. Hodiernamente, o primeiro caso diz respeito ao casamento e, o segundo, à união estável. Embora atualmente apresentem cada vez mais semelhanças, trata-se de dois estatutos jurídicos distintos que não possuem hierarquia entre si.

As origens do estatuto jurídico do casamento remontam a concepções teológicas, afirmadas pelo direito canônico. O objetivo primordial do casamento era a firmação de um pacto ou contrato com o fim consagrar os laços de matrimônio entre um homem e uma mulher, que assim estariam ligados até o fim de suas vidas, para que pudessem se eximir de viver sob a sombra do pecado original da conjunção carnal. Trata-se de um ato jurídico negocial solene, público e complexo, mediante o qual o casal constitui família, pela livre manifestação de vontade e pelo reconhecimento do Estado (LÔBO, 2018, p. 69). Atualmente, no ordenamento jurídico brasileiro, o casamento é regulado pelo Código Civil (Lei n. 10.406/2002), cujos principais dispositivos que dele tratam e até mesmo servem como pilares para as outras entidades familiares encontram-se nos artigos 1511 a 1590.

Como a lei incialmente regulava apenas o casamento, as relações de parentesco e de filiação, foi pela jurisprudência que se reconheceram os vínculos sociais e afetivos entre pessoas que vivam juntas e constituíam famílias de fato, mas que não tinham o selo de oficialidade do Estado (DIAS, 2021. p. 48). Assim, outras relações afetivas ditas extramatrimoniais começaram a ganhar espaço no ordenamento jurídico, em vista do que o legislador se viu obrigado a regular tais relações e suas repercussão no âmbito do direito, inclusive com o fim de se ter maior segurança jurídica. Então surgem normas que dispõem sobre a formação da família por meio de outras entidades familiares, como é o caso da união estável.

Apesar de sempre ter havido a coexistência entre a forma oficial de constituição de família e outras que eram tidas como organizações de segunda classe, o legislador civil pátrio tardou muito para criar leis que regessem as outras formas de organizações familiares. Isso só veio a acontecer com a promulgação do Código Civil de 2002, antes do qual muitas uniões de fato eram tratadas de forma precária e até mesmo discriminatória, como por meio do chamado concubinato e da criação das chamadas sociedades de fato, que visavam regular as relações patrimoniais dos bens gerados por pessoas que construíam suas vidas juntas, mas não eram amparadas totalmente pelas leis vigentes (DIAS, 2021, p. 587).

Conforme o tempo evoluiu, houve maior aceitação dos outros modos de uniões extramatrimoniais e ampliou-se a concepção de família, que se passou denominar pelo termo entidade familiar, para englobar o reconhecimento jurídico de famílias constituídas pelo vínculo de afetividade que se torna o elemento essencial para tal, em detrimento do ato solene do casamento. Assim, reconhece-se a união de fato entre o homem e a mulher como a entidade familiar da união estável, que passa então a ter o mesmo status hierárquico do casamento, mas com regramentos próprios, e limitados, o quais se complementam pelas regras do próprio casamento, inclusive com a possiblidade de conversão para este último (ibidem).

Então, o estatuto da união estável e o conceito de entidade familiar foram alçados ao mais alto nível do ordenamento jurídico pátrio e encontram, hoje, previsão no próprio texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/1988). O art. 226 da CF/1988 dispõe sobre a união estável  § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento bem como define o conceito entidade familiar  § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. O mencionado artigo constitui verdadeira cláusula geral de inclusão, pela qual não se permite excluir nenhuma forma de organização que preencha os requisitos mínimos para a constituição de uma entidade familiar., como já mencionada afetividade, a estabilidade e ostensibilidade (ROSA, 2014).

Constituição da União Estável e Arbítrio

Enquanto por meio do casamento se unem os denominados cônjuges, por meio da união estável se unem os companheiros  denominação de quem integra uma união estável tal qual prevista na própria Constituição, em seu artigo 201, V, ao assegurar a pensão por morte do segurado ao cônjuge ou companheiro e dependentes (LÔBO, 2018). Para que se verifique a constituição de uma união estável, são necessários alguns elementos fáticos, mas nem todos esses elementos dependem da vontade desses companheiros que se unem. Ou seja, não se faz necessário aqui, a realização de uma cerimônia ou ato solene, nem mesmo que se assinem documentos oficiais.

Os requisitos necessários para que se verifique a união estável estão previstos no art. 1.723, caput, do Código Civil. Esses requisitos são cumulativos, ou seja, necessitam estar presentes concomitantemente. São eles: a convivência pública, contínua e duradoura e a vontade de estar junto para constituir família. Assim diz o texto expresso do mencionado dispositivo: É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Observa-se ainda que o texto é claro quando diz entre o homem e a mulher, mas cabe mencionar que o STF ­ por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 ­ estendeu a compreensão do estatuo da união estável para que contemple também a união estável homoafetiva, compostas por companheiros do mesmo sexo

A convivência pública, mencionada no art. 1.723, se refere ao requisito exclusivo, que se traduz como uma convivência afetiva componente da vida a dois. O casal de companheiros então deve viver juntos e ostensivamente, de forma que a sociedade saiba desse convívio. Porém, o termo público não aduz ao entendimento de que o relacionamento tenha de ser exposto e declarado para todos, pois a cada um cabe velar pelos seus direitos a intimidade e privacidade. Basta, então, que a relação seja conhecida dentre os que convivem no mesmo meio social que o casal (SILVA, 2010)

Quanto a essa convivência ser contínua, quer dizer que não se trata de um relacionamento casual, com encontros meramente esporádicos, sem a intenção de se formar vida a dois, ou cheio de idas e voltas; requer-se um mínimo de estabilidade. A parte de ser duradoura também tem atualmente um sentido similar, significando somente que se exige certa permanência, pois a própria lei não prevê mais um prazo mínimo (SILVA, 2010).

O derradeiro e mais subjetivo de todos os requisitos para a união estável é o de estar juntos com o objetivo de constituir família. Não significa dizer que a mera intenção interna, a reserva de vontade subjetiva, seja o suficiente para a verificação da união estável. Requer-se que essa vontade seja objetivamente observável, por meio das atitudes manifestas do casal com o sentido de por em prática essa vontade, que vivam como se fossem casados, convivam sempre, manifestem a terceiros, façam planos etc. Não é uma mera intenção futura, no plano das ideias, precisam ser presentes e atuais (DIAS, 2021).

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Por fim, nenhum desses requisitos devem ser interpretados no sentido de que a convivência do casal deva se dar sob o mesmo teto, porque também não há essa previsão no ordenamento jurídico atual. No atual contexto de desenvolvimento da tecnologia de comunicação, por vídeo inclusive, devido também à velocidade dos transportes que permitem ir de um lugar ao outro cada vez mais rápido, nada mais comum que existam casais que convivam à distância, por conta de obrigações profissionais, ou mesmo devido a situações inesperadas, como o atual contexto social da pandemia de Covid-19. Prevalece ainda a Súmula 382 do STF: A vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato, que, embora mencione o concubinato, também vale para as outras entidades familiares, especialmente para a união estável (LÔBO, 2018, p. 120).

Todos esses requisitos necessários para a verificação da união estável são verificados objetivamente, independente da vontade das partes de não quererem constituir união estável, isso significa que, caso o relacionamento viesse a ser rompido de forma litigiosa e um dos ex-companheiros levasse o caso a juízo, essa união estável seria declarada pelo juiz por meio da verificação dos fatos. A decisão do juiz seria meramente declaratória e com efeitos ex tunc no sentido de reconhecer que a união estável existia a partir do momento em que se verificou todos os requisitos para tal, independentemente da vontade dos companheiros de quererem decidir por vontade deles mesmo qual foi esse momento de início (LEITE, 2020, p, 21).

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Isso acontece por se tratar de a união estável se tratar de um ato-fato jurídico, que não necessita da manifestação da vontade de nenhuma das partes, para que produza efeitos jurídicos, sendo necessário somente sua configuração no plano factual, para que se incidam as normas legais e constitucionais. Inclusive, já adiantando outro assunto, pode acontecer inclusive de uam das partes não quererem a constituição da união estável, de quererem ter apenas um relacionamento afetivo sem efeitos jurídicos, especialmente no que tange ao patrimônio, mas, ainda assim, a lei incidirá sobre os fatos. E, assim como se inicia juridicamente sem qualquer ato jurídico, para pode ser dissolvida sem nenhum ato jurídico formal, se ambas as partes assim o quiserem (LÔBO, 2018).

O ampliamento do conceito de união estável e eliminação da hierarquia entre as entidades familiares  tornando-as todas merecedoras de igual proteção  tem tornado a união estável um estatuto cada vez mais recorrente e usual, ao qual os casais recorrem com mais facilidade e frequência, até com uma certa preferência atualmente, devido à facilidade que oferece em face do casamento, por exemplo, que é muito mais burocrático (DIAS, 2021). E isso tudo gera algumas consequências e efeitos reacionários.

Contrato de Namoro e Voluntariedade na Convivência durante a Pandemia

No início do ano de 2019, o mundo inteiro tomou conhecimento da existência do corovonavírus, agente causador da doença respiratória altamente contagiosa, de maneira geral, bem como extremamente agressiva e letal, para determinados grupos de indivíduos. Essa doença ficou amplamente conhecida por Covid-19 e foi causadora da pandemia de mesmo nome, que, no presente momento, muitos acreditam finalmente estar chegando ao fim

Com o fim de diminuir a propagação dessa doença e evitar que ela vitimasse ainda mais pessoas, diversas medidas foram tomadas  pelas autoridades públicas e coletivamente ­, a mais relevante das quais, para os fins desta exposição, foi a do distanciamento social. Por conta do distanciamento social, as pessoas passaram a ficar mais isoladas uma das outras por longos períodos, confinadas em suas casas, sozinhas, ou com seus parentes familiares. Também por conta dos efeitos desse isolamento/confinamento e devido a necessidade de se distanciar de todas as demais pessoas para não disseminar a Covid-19, muitos casais de namorados decidiram por se isolarem e se confinarem juntos, sob o mesmo teto, para que pudessem ao menos disfrutar da companhia uns dos outros (SILVA, 2020).

Por conta disso, diversos intérpretes do Direito de Família (SILVA et al, 2020) passaram a se preocupar com os reflexos jurídicos do confinamento ­ a pandemia da união estável , pois como já se viu aqui, a união estável se constitui por meio da constatação objetiva de uma situação fática, com a existência de alguns requisitos, o quais encontraram, durante a pandemia Covid-19, uma realidade demasiadamente favorável para que se verificassem. Essa realidade favorável à união estável pode ser tanto boa quanto ruim, a depender dos interesses de cada um dos integrantes desses casais que se uniram durante a pandemia. Isso fez ressurgirem, com bastante força, antigos questionamentos a respeito das fronteiras que delimitam normativamente as relações entre as pessoas, como as de namoro e de união estável.

Durante o período da pandemia, esses casais de namorados que resolveram morar juntos para melhor enfrentarem o período de isolamento e manterem suas relações afetivas a salvo, depois de todo esse período vivendo sob o mesmo teto, constituíram automaticamente união estável? E os que já viviam em união estável antes e viram-se forçados a se separar, para cuidar de parentes enfermos, por razões profissionais ou qualquer outra diversa, só por isso dissolveram a união estável? É nesse sentido que as questões se impõem (SILVA, 2020).

Nessa situação, muitos aproveitaram para se unir em definitivo e estão contentes com isso, prosperaram em meio ao caos. Mas, assim como muitas outras coisas nos tempos modernos, as relações afetivas humanas não são sempre pensadas para durar (XAVIER, 2014, p. 40). Alguns casais simplesmente não almejam evoluir forçadamente de um relacionamento afetivo simples e sem compromisso, diretamente para uma união estável que não havia planejado. Em razão disso, voltam à moda antigas ideias, a fim de evitar essas situações indesejadas para alguns.

Semelhante ao que se observou quando da regulamentação do estatuto da união estável (pela a Lei n. 9.278/1996), em que houve um pânico generalizado, especialmente entre homens, pelo receio de que relacionamentos fugazes ou simples namoro pudessem gerar obrigações patrimoniais (DIAS, 2021, p. 617), também idealizam novamente a necessidade de que os casais façam os famigerados contratos de namoro, com o fim de garantir a ausência de comprometimento recíproco e a incomunicabilidade presente e futura do patrimônio, bem como para tentar afastar a eficácia dos requisitos fáticos que constituíram a união estável no caso concreto. De acordo com Gustavo Tepedino, conforme citado por Berenice Dias:

por receio de que relacionamentos afetivos não inteiramente maduros, em linha limítrofe com a convivência familiar, pudessem ensejar comunicação patrimonial. Iniciou-se, com isso, a prática dos chamados contratos de namoro, pactos por meio dos quais casais de namorados passaram a estabelecer convencionalmente a ausência de comprometimento recíproco e a incomunicabilidade de seus respectivos patrimônios, em busca de segurança jurídica. Tratar-se-ia, como se percebe, de contrato com intuito de tentar evitar a priori a configuração de união estável, declarando-se, expressamente, a inexistência de vida em comum (DIAS, 2021, p. 617)

No entanto, verifica-se muita dificuldade de se distinguir um namoro mais sério de uma união estável nos casos concretos, visto que em muitos namoros mais sérios às vezes se verificam quase todos os requisitos legais para a constituição da união estável. Muitos namorados vivem quase como casais, com intimidade, passam a maior parte do tempo juntos, ainda que não estejam movidos pelo ânimo formar uma família naquele dado momento. Em muitos casos as vezes basta uma pequena mudança, como a visita da cegonha, para que a família se constitua de fato.

Outra grande dificuldade ao se tentar delimitar e conceituar uma relação afetiva complexa como o namoro, com o fim de se fazer um contrato, por exemplo, é o fato de que o afeto humano pode se dar das mais diversas maneiras. Enquanto alguns namorados ficam juntos durantes vários anos e mantém entre si um relacionamento superficial, até finalmente terminarem; outros são bem mais carinhosos e generosos um com o outro, trocam vários presentes ou fazem doações entres si, muitas vezes até de montante considerável, dormem juntos toda noite, vivem juntos por vários anos: dois, três, cinco ou mais, mas também acabam se separando, sem constituírem uma união estável (ROSA, 2014, p. 207).

Nesse mesmo sentido, atualmente nem mesmo a união estável exige uma estabilidade por tempo específico ou um prazo mínimo de duração da convivência afetiva como requisitos para sua constituição. Mas não foi sempre assim. Após a inclusão dessa entidade familiar o no texto constitucional pelo pode constituinte originário em 1988, a lei n. 8.971/1994 havia estabelecido como requisito mínimo cinco anos de relacionamento, salvo em caso em que o casal tivesse filho, o que encurtaria esse prazo. No entanto, promulgou-se a Lei n. 9.278/1996, que excluiu a referência a qualquer período específico, restado como norte apenas o enunciado pelo caput do art. 1.726, do Código Civil de 2002 (LÔBO, 2018).

Evidencia-se, assim, ainda mais as dificuldades de delimitação entre namoro e união estável, tanto no plano elementar, quanto no plano temporal. No caso concreto, torna-se difícil decidir quando um relacionamento deixa de ser um namoro para se tornar união estável. Até mesmo porque uma união estável geralmente começa como um simples namoro, mas, com o decurso do tempo e o aumento da intimidade entre o casal, surgem os requisitos que faltavam e constitui-se a união estável (ROSA, 2014).

Nessa perspectiva, João Henrique Miranda Soares Catan (apud DIAS, 2021) defende a possibilidade de previsão em um contrato de namoro de uma cláusula de evolução (cláusula darwiniana), segundo a qual se poderia determinar que, em caso de o namoro progredir de fato e configurar-se uma união estável, as partes poderiam decidir livremente sobre adotar o regime de separação de bens ou outro que resolvessem mais conveniente futuramente.

Ainda com essa intenção de resguardar o patrimônio de uma das partes e de excluir os direitos da outra por meio do enfraquecimento do estatuto da união estável, alguns doutrinadores tentam convencer sobre a existência ou criação de um meio termo sob a figura jurídica do namoro qualificado. Segundo Berenice Dias, Luciano Figueiredo sustenta que o namoro qualificado tratar-se-ia de uma relação em que se verificam os elementos de publicidade, continuidade e durabilidade, e atém mesmo o elemento subjetivo da vontade de constituir família. Mas essa vontade seria de constituição de uma família futura, e não atual, o que, como já explicado, não seria o suficiente para cumprir esse requisito essencial da união estável e, portanto, seria justamente o elemento diferenciador do namoro qualificado em relação à união estável. A ideia do namoro qualificado é também defendida por Leonardo Amaral Pinheiro da Silva, segundo o qual teria essas características:

Namoro qualificado: convivência intima, sexual, de duas pessoas podendo ou não haver coabitação, em que os namorados frequentam as respectivas casas, eventos sociais, viajam, passam ferias juntos, comportam-se no meio social ou profissional como se encontrando num relacionamento amoroso. Objetivamente, assemelha-se a uma união estável, faltando-lhe, porém, um elemento inafastável presente no critério subjetivo a constituição imediata como entidade familiar. Subjetivamente, a ausência da vontade de constituição imediata de uma entidade familiar. Mesmo que o namoro seja longo, consolidado, daí a nomenclatura namoro qualificado, não há nos namorados o desejo imediato de constituir uma família, ainda que se o admita futuramente, mas não o é no momento. Por esta razão não há de se falar em direito e deveres jurídicos, notadamente de ordem patrimonial entre os namorados, não se cogitando em falar de regime de bens, alimentos, sucessão, partilha e outros direitos (SILVA apud DIAS, 2021, p. 620).

Eficácia do Contrato de Namoro

O contrato de namoro é negócio jurídico celebrado entre indivíduos que manifestam a vontade de manter entre si um relacionamento concebido por eles estritamente namoro. Esse tipo de contrato geralmente tem como objetivo imediato afastar a eficácia das normas que incidem sobre as situações de fato para a configuração de uma união estável. Por meio desse objetivo, é possível determinar por mecanismo meramente obrigacionais o regime de separação de bens conforme as partes envolvidas bem desejarem. Raciocínio semelhante se aplica ao namoro qualificado, com a diferença principal e que este último não seria estabelecido por um instrumento contratual, mas por uma construção jurídica doutrinária.

A doutrina majoritária e jurisprudência brasileira tendem a rechaçar o contrato de namoro, por entenderem que não cabe ao arbítrio das partes decidir, por meio de um instrumento de convenção, sobre assuntos cuja disciplina é dada por lei, sob pena de se aceitar verdadeira fraude à legislação. Nesse entendimento, o contrato de namoro é nulo, visto que as normas que dispõem sobre a união estável são indisponíveis. Segundo Rosa (2014), havia se manifestado nesse sentido Rolf Madaleno (2011, p. 1.082), Pablo Stolze Gagliano (2013) e Maria Berenice Dias (2011, p. 186).

Porém, conforme manifestações mais recentes de Berenice Dias (2021), a figura do namoro qualificado não é digna sequer de consideração, pois não possui respaldo algum, e por se tratar de uma tentativa de desfigurar a união estável, blindar patrimônio e excluir direitos, [...], expressão horrível, que não dispõe de qualquer conteúdo jurídico e que visa tão só subtrair efeitos patrimoniais de relacionamentos afetivos em que há coabitação, há aquisição de bens, mas não se identifica a afectio matitalis (DIAS, 2021, 619). Mas em relação ao contrato de namoro, a autora atualmente sustenta que o contrato de namoro, se for firmado por escritura pública e houver cláusula de previsão de eventual casamento com eleição de regime de bens, pode servir pacto antenupcial (ibidem).

Carlos Roberto Gonçalves (apud DIAS) é da posição de que esse tipo de avença, com o intuito de prevenir responsabilidades, não dispõe de nenhum valor, a não ser o de monetizar singela relação afetiva. Afinal, o namoro não é concebido como fato jurídico, visto que é incapaz de gerar qualquer efeito jurídico.

Por outro lado, também há manifestações veementes no sentido contrário, não legalista, e completamente a favor da autonomia da vontade manifestada pela convecção das partes. É o caso de manifestação já um tanto antiga de Leonardo Amaral Pinheiro da Silva que se manifesta de forma expressa sobre o Pacto de Namoro ser uma alternativa eficaz para proteger para proteger, patrimonialmente, na esfera das uniões não-matrimonializadas, a parte que melhores condições têm em caso de eventual ruptura daquela menor aquinhoada em face do modo como o nosso ordenamento jurídico tutela a União Estável (SILVA, 2010).

Nesse mesmo sentido, familiaristas que atuaram em casos mais recentes, no contexto da pandemia da Covid-19, também parecem execrar as normas regem as uniões familiares não-matrimonializadas e apostam todas as fichas no contrato de namoro como mecanismo de afastar a incidência da união estável, visto que não é comum presenciarmos uma pessoa que, movida por espírito de vingança e almejando vantagens indevidas, pleiteia o reconhecimento da união estável desde o primeiro encontro ou desde o dia em que conheceu o seu antigo par romântico (SILVA, 2020).

Considerações finais

Diante de contextos atípicos como o da pandemia da Covid-19, é razoável defender certa flexibilização as leis escritas, com o intuito de readequá-las ao novo contexto fático imprevisto. Essa readequação, no entanto, deve ser idealizada sempre com especial consideração aos mais vulneráveis, não para defender os interesses e o patrimônio das camadas mais privilegiadas. Decerto que injustiças podem ser cometidas contra indivíduos de qualquer extrato da sociedade, por qualquer indivíduo mal-intencionado, independentemente da camada social de origem também. Contudo, costuma ser justamente nos momentos de caos e convulsão social que os detentores do poder de tomada de decisão  especialmente aqueles responsáveis diretamente pela execução de medidas de eficácia mais imediata aproveitam-se para exercer o poder em benefício próprio e de seus apaniguados e para retirar direitos dos mais necessitados. Exatamente por isso, não se deve admitir o retrocesso representado pela total desfiguração das entidades familiares não-matrimonializadas aqui tratadas, nem mesmo diante do contexto da pandemia, pois representam uma conquista histórica, longa e demorada, e beneficiam camadas da sociedade historicamente discriminadas e marginalizadas.

Por outro lado, não se pode negar que o contrato de namoro é um fato, ou seja, ele existe, é usado e até mesmo aceito atualmente no nosso ordenamento jurídico e, portanto, não seria coerente ignorar sua existência. Se adequadamente usado, também pode servir como instrumento a ser usado com o fim de se evitar desentendimentos e desgastes, e justamente numa das esferas mais sensíveis da vida humana: a das relações afetivas. Desde que se verifique a boa-fé entre as partes, tanto no momento da celebração, como em todos os posteriores, o contrato de namoro tem a capacidade de esclarecer melhor o elemento da vontade, requisito essencial para união estável, com o fim de adiar a incidência desta e assim garantir algum resguardo para a parte que poderia ser prejudicada no caso de reconhecimento de união estável requisitada pela outra parte, com intuito visível de tirar vantagem.

Contudo, sempre existe a possibilidade de ser usado de má-fé para negar direitos legítimos e adquiridos a quem lhes era devido, ou seja, o contrato de namorado pode sempre ser usado como mecanismo de fraude à lei, então, sua aceitação deve ser sempre bastante ponderada, caso a caso. Desnecessário dizer, que a figura do namoro qualificado constitui tentativa de previsão extralegal de meio enfraquecimento das entidades familiares tuteladas pela lei e pela Constituição.

Por fim, conclui-se que a análise de eficácia do contrato de namoro, bem como o bom uso desse instrumento, no espaço que lhe é cabível, recaem no âmbito de competência do magistrado instado a tomar a decisão diante do caso concreto que se lhe puser. Nesse intuito, deve o magistrado ter em conta os princípios constitucionais que tutelam a união estável e as outras entidades familiares, as legislações pertinentes e, só então, no que lhes couber, a vontade das partes, representada, se for o caso, pelo instrumento do contrato de namoro.

Referências Bibliográficas

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. Ed. Salvador: JusPodivm, 2021.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 8. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. v. 5.

MELO, Natália Barbosa de. O Contrato de Namoro e suas Implicações Jurídicas. 2021. 57f. Monografia (Bacharelado em Direito) Escola de Direito e Relações Internacionais. Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiás.

MENEZES, Eduardo Resende Leite. A (In)eficácia do Contrato de Namoro. 2020. 42f. Monografia (Bacharelado em Direito)  Unilavras. Centro Universitário de Lavras, Lavras.

ROSA, Viviane Lemes da. O Contrato de Namoro e os Princípios Constitucionais do Direito de Família. RFD-Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, v. 2, n. 26, 2014.

SILVA, Leonardo Amaral Pinheiro da. Contrato de Namoro e a União Estável. Revista Movendo Ideia. Vol. 15, No 1 - janeiro a junho de 2010.

SILVA, Regina Tavares da. A Pandemia da União Estável e a Pandemia da União Estável In: Impactos da Pandemia Covid-19 no Direito de Família e das Sucessões. Brasília, OAB  Conselho Federal, 2020. p. 153-168

XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de Namoro: Amor Líquido e Direito de Família Mínimo. 2011. 129f. Dissertação (Mestrado em Direito das Relações Sociais)  Faculdade de Direto. Universidade Federal do Paraná, Curitiba.

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Sobre o autor
Diego Lima do Nascimento

Bacharel em Ciência Política (UnB) e bacheralando em Direito (UnB), artigo apresentado submetido como forma de avaliação do curso de Direito Penal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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